Este post na verdade começou na previsão de falar de um recente livro intitulado Tintin. Noir sur Blanc. L’Aventure des Aventures, de Marcel Wilmet (Casterman, a quem agradecemos o seu envio). Pensávamos que se tratava de um guia histórico, contextualizador, e um olhar crítico da produção dos nove primeiros livros das Aventuras de Tintin, compreendidas entre 1930 e 1942. No entanto, a mais superficial consulta revelaria de imediato que se trata de mais um desses instrumentos de reificação da obra de Hergé que serve apenas os propósitos de coleccionadores, especuladores do mercado do livro, paladinos da nostalgia de uma falsa inocência, enfim, a amorfa tintinofilia. Fazendo a história minuciosa e material das edições, tiragens, projectos de capa, números de exemplares, preços e circulação e distribuição, e integrando aspectos que têm a ver com o mercado da época e técnicas de reprodução e impressão (que se podem ou devem revelar assuntos importantes no estudo histórico da banda desenhada), é raro encontrar passagens, se de todo, em que se revele alguma distância crítica em relação ao que é retratado nesses mesmos livros. Aliás, a insistência de que Tintin é o “mito absoluto” revela de imediato o problema.
Mas outro factor levou a um desvio significativo, a saber, o recente veredicto do tribunal belga em relação ao processo instado pelo cidadão congolês Bienvenue Mbutu Mondondo em relação à edição de Tintin no Congo. Sem surpresas, a resposta de júbilo da parte dos tintinófilos, ou tintinólatras, mesmo os mais avisados, não se fez esperar. O que leva antes a uma nossa tentativa de (re)pensar o papel de Tintin (e da banda desenhada em geral, enquanto produto cultural e artístico ancorado num tempo e espaço específicos) em relação a questões hodiernamente interpelantes, como o colonialismo, o racismo, e outras. Como não é igualmente surpresa, o ataque (pessoalizado) a Mondondo pela sua acção demonstra muitas vezes como a sobrevivência da mentalidade colonialista não precisa de um quadro legal efectivo para se expressar. Não querer compreender as raízes e os instrumentos que a história dos colonialismos modernos europeus representam em termos de silenciamento do outro, ou redução radical da sua voz a sinais e possibilidades circunscritos (“os negros são um povo musical”, “os índios têm uma ligação espiritual com a natureza”, “eles são assim mesmo”, etc.), as políticas de extermínio, físico, cultural, político, que implicaram, a base radical de xenofobia do seu plano de crescimento e mesmo condição de possibilidade, e a herança continuada nas formas de pensar o “mercado global contemporâneo”, as relações desiguais entre antigas potências colonizadoras e os países colonizados (cujo corolário de ignorância se expressa no repetido “não se sabem governar a eles mesmos”), é um posicionamento insustentável, de descrédito ao pensamento e à ética: “não resistir é não pensar (…), e não pensar é não arriscar o risco”, escreve Alain Badiou em Abrégé de métapolitique (apud João Barrento, O mundo está cheio de deuses).
E, no nosso pequeno território, um desserviço ao espaço que a banda desenhada pode conquistar enquanto linguagem livre e não aparelho da continuidade dessa hegemonia opressiva. Para mais, como se não existisse uma bibliografia académica especializada, isto é, de um saber disciplinar enleado à banda desenhada, e tanto crítico como relevante, sobre esta questão. Mas dá sempre mais trabalho apreender esses esforços, e pensar individualmente, do que repetir os encómios e alabanças ao “grande clássico”, “que toda a gente adora”, no meio do apoio dos fãs (basta haver apoio de uma chusma dos “mesmos”, sem mais, para parecer que se está “com razão”)… Autores como Sfar integram na sua própria obra, porém, modos de impedir essas “histórias únicas” e repetidas.
Acabámos de mencionar, ainda que de passagem, as representações potencialmente (paninhos quentes?) racistas de Robert Crumb, e é muito curioso, ou não, que tenhamos deparado com alguns argumentos virando o bico ao prego, em que se afirma que também “do outro lado” (sublinhando sempre a separação) podem ser racistas, ou criar imagens preconceituosas. Vamos dar de barato e dizer sem dúvida. Mas isso não é desculpa nem para aceitarmos ser possível incorrermos nós mesmos nos crimes ou erros, sendo nossa responsabilidade sermos o melhor possível nesse papel público, tal como não o é para fingirmos que as relações de poder são idênticas. A violência perpetrada por um homem sobre uma mulher não pode equivaler jamais à de uma mulher sobre um homem. Isso é claro. E na nossa sociedade (ocidental, capitalista, liberal, procurem os apodos mais viáveis e du jour) a representação da parte da hegemonia das (suas) minorias não será o mesmo que o contrário (esse argumento é usualmente o do “racismo invertido”, aqui desmontado por Nick Thorkelson). Não nos esqueçamos que “a violência foi o primeiro bem exportado pela Europa” (Sven Lindqvist).
Como tivemos ocasião de o escrever no blog de Pedro Cleto, a quem agradecemos a breve troca de ideias, esta foi uma oportunidade perdida para instaurar uma discussão séria, balizada e sustentada sobre o papel desta obra no quadro social contemporâneo. Não se procurando uma contextualização maior, uma preocupação em compreender o processo, o gesto de Mondondo, ou até mesmo de reler o livro de Hergé, tudo se resumia a um “achas que o Tintin é racista?”, “Claro que não!”, e pronto. Claro, usualmente tudo isto do lado daqueles que, como nós, portugueses contemporâneos, somos herdeiros de um império colonial que ainda olha as suas ex-colónias como palcos preferenciais de negócios e exploração e constante rebaixamento (“Nem se souberam governar…”).
É claro que com a multiplicação de produtos derivados desta personagem no mercado, até à saturação, e que o (medíocre) filme de Spielberg veio exponenciar (bonecos em PVC, livros especializados num qualquer tema ou variação, t-shirts, miniaturas, etc.), passa a se constituir um desejo de consumo que adia para sempre a ponderação do que existe e deveria subsistir no centro, que é a leitura. E antes que surjam aquelas vozes, ainda mais ridículas, que dizem que Mandondo se deveria preocupar com o estado actual do seu país mais do que com um livro de banda desenhada, dizemos, então o que estamos nós a fazer nas nossas tentativas de ler e pensar a banda desenhada? É só um prazer superficial? Então que se o sinta e cale. Mas essa é uma das grandes ferramentas do capitalismo: a de absorver a própria produção da cultura, controlando - ou apagando? - pela grande exposição mediática e a formação de consumo a possibilidade da crítica, que leva a uma consequente dessensibilização e dessocialização dos seus clientes - e a qual se nota precisamente pela forma, se não tanto pelas palavras, como se expressaram as tomadas de posição em relação a todo o processo. “Miséria simbólica”, escreve ainda Barrento.
A esmagadora maioria dos argumentos esgrimidos contra Mondondo - repetimos que a pessoalização desse ataque é um dos aspectos infelizes da “defesa” de Tintin - revela de imediato toda uma série de mal-entendidos e, francamente, de um desejo em não pensar sobre a questão mais profunda. Alguns dos comentários encontrados um pouco por toda a internet, em relação à notícia, revelam de maneira claríssima que a questão racial não está resolvida, e que a ignorância pode tomar várias faces, sendo a pior aquela que pensa ser informada e “justa”. Há apenas uma automática e acrítica “defesa” por uma “pureza” da obra original - talvez esquecendo a natureza de palimpsesto das sequentes edições de Tintin, que, essa sim, deveria ser obrigatoriamente estudada pelos amantes da série - ou por uma vaga e suposta “liberdade de expressão”, que apenas tem uma direcção, claro. A ideia de “censura” é também esgrimida, não se sopesando a ideia de que se deve também morder a língua antes de dizer disparates ou abusar do poder que se tem (de representação, de autoridade, de posição, etc.). Este processo ainda não terminou, tendo em conta o recurso que se irá seguir, apoiado pelo Conseil Répresentatif des Associations Noires. Algo que apenas surpreenderá aqueles que pensam que as palavras dos tribunais são finais, como se os quadros legais vigentes fossem justos sempiternamente…
Apesar de desejarmos responder a essa questão, falta-nos infelizmente a cultura, a inteligência e a clareza de pensamento para escrevermos tudo aquilo que gostaríamos de dizer, de implicar e até de estarmos seguros de ser útil a esta discussão. Mas felizmente existe a possibilidade de recorrer a pessoas com todas essas qualidades. Seguem-se dois textos. O primeiro foi escrito pelo autor britânico China Mélville no seu blog rejectamentalist manifesto, no fim de Fevereiro. Subscrevemos quase na íntegra as suas palavras, estando ele a seguir todos os pontos que desejávamos tocar, mas tendo aprendido muito com esse texto. Apresentamos uma tradução “de leitura”, que simplifica algumas passagens, optando mais pela clareza que a manutenção do estilo particular do autor, e apenas deixamos activos alguns dos links directos no texto do autor para páginas internacionais (e egotisticamente alterando um). O texto original encontra-se aqui. Procurámos de vários modos aceder à autorização desta tradução, mas em vão. Retiraremos o texto se nos for pedido, naturalmente. O segundo texto é uma anotação de Leonard Rifas, investigador de banda desenhada norte-americano, desmontando o raciocínio por detrás da nota que saiu na edição em língua inglesa de 2006 do livro de Hergé.
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Texto 1. Parem: a literatura derrotou a Polícia do Pensamento. O Supremo Tribunal belga venceu as manigâncias da lamurienta brigada dos politicamente correctos. Tintin não será banido. Viva! por China Miéville.
«A maldade da má-fé que tem transparecido na discussão por comentários deste assunto, a constante presença das elipses categóricas, a falta de chá do canto de vitória, nada disto deveria ser surpresa.
A raiz de todo este processo nunca foi sobre banir-se seja o que for. É verdade que Bienvenue Mbutu Mondondo havia apelado ao tribunal para que Tintin no Congo fosse declarado inaceitável no quadro da lei de relações raciais da Bélgica. Todavia, Mondondo deixou claro durante estes anos todos que ele ficaria satisfeito se, como acontece na Grã Bretanha, o livro fosse publicado com um aviso visível, uma nota sobre o contexto em que foi escrito (talvez até mesmo sobre a ideologia tóxica que o livro defende). O que Mondondo pretendia era um reconhecimento oficial de que este texto era um insulto na sua cara. Que se tenha resolvido com aquilo que sempre se revelou como uma opção nuclear deve-se à recusa resoluta dos editores em aceitarem isto - e portanto em aceitarem a responsabilidade por aquilo que publicam. As instituições belgas lançaram-se numa guerra cultural, e não o fez em nome da liberdade de expressão, mas sim pelo seu próprio direito em não pedirem desculpas por insultos racistas.
Quando o advogado de direitos humanos David Enright [num processo similar no Reino Unido] pede que o livro seja vendido como um trabalho para adultos, ao mesmo tempo que sublinha explícita e repetidamente que não está a defender um banimento puro e simples, mesmo assim lá vêm os dissimulados cuspidores de ressentimento nos comentários insistindo que ele na verdade está a apoiar a “censura”. Esse é um tal grau de não perceber a coisa que até é difícil de acreditar que não é de faz-de-conta.
(Na verdade, uma proporção incrivelmente muito pequena dos argumentos “pela liberdade de expressão” e “contra a censura” ou o “banimento” são, na verdade, sobre a liberdade de expressão, a censura ou o banimento. É deprimente ter de apontar, mais uma vez, que há uma grande diferença entre ter o direito legal a dizer uma coisa e ter o direito moral de não assumir a responsabilidade pelo que se de diz. Pedir-se que se peça desculpas por dizer uma coisa não-prevista [unconscionable] não é a mesma coisa que perder-se o direito legal de a dizer. Não é assim tão complicado, porra! Grite-se Liberdade de Expressão! em contextos desta natureza, e está-se a reclamar o direito de dizer qualquer porcaria que se deseje sem desculpas ou medos de represálias. Não se estão a pedir direitos legais desta maneira, mas antes o fim do debate sobre o que se diz e da crítica ao que se diz. Desde quando é que a intolerância se tornou tão pedinchona? Esta falha estúpida e assertiva em compreender que a permissibilidade jurídica apoiada pelo estado não é o fim da política e da moralidade é absurdamente resistente).
Existem muitas poucas tentativas na insistência de que o Tintin no Congo não é na verdade racista, mas este é um caminho difícil de percorrer, dada a vergonhosa procissão dos grotesco negros e o pomposo suprematismo branco. Então como poderá esse assunto-chave, a do racismo de um livro que representa congoleses estúpidos, de lábios grossos e que rolam os olhos, incapazes de compor uma frase correcta completa e de somar 2 mais 2, que adoram o cão do rapaz branco e o consideram a ele um “grande bwana”, ser evitado?
1. Pode-se admitir que alguns desses aspectos são de facto infelizes, mas simplesmente negar-se em discutir a questão do racismo.
Um comentador, que orgulhosamente anuncia a sua predisposição em lutar contra os bem-pensantes liberais (e fá-lo, ainda que de um modo extremamente confuso), é forçado a admitir que o livro é “chocantemente condescendente e insensível”. Mas ele simplesmente evita a questão central se é ou não um livro racista. De um modo similar, Guy Staggs, do Telegraph, acentua apenas que “os autores desta campanha declaram que Tintin no Congo é ofensivo”: e de facto declaram mesmo, e até se poderia pensar se o acertado ou errado que essa declaração é faz parte integrante da questão principal. Desesperada e acriticamente, continua-se essa via, com Staggs a admitir gaiamente, ignorando as questões de raça, que o livro “não é lá grande coisa”.
Como se fosse isso o que estivesse em questão. Esta ideia - “Não é racista, simplesmente não é lá muito bom” - é uma espécie de variante do mau irmão gémeo da posição mais comum “Como é que o Little Black Sambo pode ser racista se o li quando era criança e o adorei, e mais, pelo que percebi o Sambo era o herói” (comparar a “Como é que posso ser machista se adoro mulheres?, na verdade prefiro-as a elas que aos homens“, também conhecido por “Como é que é ser-se racista achar-se que ter um ritmo natural é uma boa coisa?”).
2. Podemos insistir que as atitudes do livro “reflectem o seu tempo”, como reza a decisão do tribunal.
Há dois aspectos muito interessantes nesta defesa demasiado comum para todo e qualquer texto inegavelmente racista (e machista, homofóbico, etc.) existente. O primeiro é que é, em termos históricos, uma treta. Essas ideias, como todas as ideias, eram - são - contestadas. É óbvio e claro que as ideias institucionalizadas [mainstream] mudam, que o equilíbrio das forças se altera, mas a ideia implícita ou explícita de que não existiam vozes dissidentes em relação às políticas supremacistas é uma mentira. Pensar que todas as pessoas falavam como o Tintin sobre o Congo na sua época é (sejam quais foram os outros argumentos políticos sérios que se discutam) uma calúnia à memória de, por exemplo, Félicien Challyae, Albert Londres, e o movimento socialista francês, o qual proclamara na [Convenção da Haia] de 1907 que o colonialismo “dependia na conquista violenta e institucionaliza a sujeição dos povos asiáticos e africanos”.
O segundo aspecto é que mesmo que essas atitudes “reflictam o seu tempo” no sentido de reflectirem a política então-mais-convencional…, e depois, porra? A questão das atitudes é que elas mudam, em resposta às lutas, ao combate pelas ideias. A questão é saber se Tintin no Congo é racista ou não. E é. E a razão para isso, pelo menos em parte, é que o supremacismo branco era menos contestado na sua época - então ainda bem que não estamos a viver esses tempos, não é mesmo? E por isso vivemos nos nossos tempos, quando a resistência daqueles que se pensava não serem capazes de somar 2 mais 2 conseguiu levar ao reconhecimento que este tipo de merdas são merda. Nos dias que correm, deveria desencadear-se uma “sinapse colectiva” “forjada pelos movimentos de massas… que forçara muitas pessoas, sobretudo aos homens brancos heterossexuais, a perceberem a coisa”.
3. Insistir que Hergé não era racista.
Ah… intenção! O talismã infalsificável de displicente exoneração. Eis a segunda corda vibrante do arco do tribunal belga, a insistência, indignada, de que o artista não era racista, nem tinha qualquer intenção em “criar um ambiente intimidatório, hostil, degradante e humilhante”.
A grande vantagem de quem joga esta defesa é que não há como prová-la de uma maneira ou outra. É por isso que, seja qual for que seja a opinião do que seja a verdade, é usualmente uma melhor estratégia focarmo-nos no que a pessoa diz ou escreve, em vez daquilo que pensam ou são.
O que é exactamente o que Mondondo e Enright fizeram: a reivindicação de ambos é de que é o livro que é racista. Porque é. Intenção o tanas: seja qual tenha sido a intenção de Hergé, são estas figuras de sub-menestréis [minstrel, no seu sentido muito específico de figuras de entretenimento negras e ridicularizáveis] no livro “degradantes”? Aquele que não responder “sim” é um tolo ou um velhaco.
Há esta hipérbole absurda que é tornar a cultura do perpetrador numa vítima. No seu esforço para desviar a conversa, Staggs insiste que o “trunfo” do racismo é “empregue para apagar qualquer parte da nossa herança cultural que possa causar vergonha”. “Apagar”. Pois. Quem é que pode esquecer, afinal, o monstruoso apagamento pela parte de Estaline da figura de Trotsky, colocando um autocolante de aviso sobre ele e recusando-se a colocá-lo na mesma prateleira que um livro infantil [The Gruffalo]? O Tintin desaparece. Rápido, juntem-se imagens de malta a queimar livros! Primeiro vieram para capturar o Jovem Repórter e puseram-no ao lado de Persepolis e de The Sandman, e eu não disse nada porque eu não era um Jovem Repórter, etc.
Staggs deve seguramente desejar injuriar qualquer pessoa que não só esteja disposta a contextualizar mas até a, na verdade, alterar o sacrossanto texto original: isto seria uma capitulação ante a Polícia do Pensamento. Alguém como, ah…, Hergé, que décadas depois da primeira edição do livro o revisitaria e reformularia, expressando o seu embaraço pela versão anterior. Quase como se ao regressarmos a trabalhos sobre o qual temos alguma vergonha à luz de uma nova compreensão fosse a opção mais civilizada. (Mas essa reformulação foi totalmente inadequada, uma vez que parece ter sido fruto tanto de uma preocupação pelas cenas de caça como pelas do racismo).
Com a sua referência a “qualquer parte” da cultura, Staggs concentra num ápice um outro argumento da treta: o perigo da escalada. A de que se aceitarmos que o livro seja adaptado, ou apenas contextualizado, ou colocado numa prateleira diferente, então tudo o que “possa causar vergonha” (mais uma vez se nota o evitar da questão se essa vergonha - ou raiva - é ou não justificada) está ameaçado, e tudo acabará por ser banido.
Que ninguém tenha sugerido tal coisa é-lhe totalmente irrelevante. Com efeito, o que se sugere, na verdade, é que no caso de arte controversa se tenha uma discussão ponderada sobre o que é ou não apropriado e em que circunstâncias. Mondondo não defendeu quaisquer medidas em relação a nenhum outro livro do Tintin, independentemente de outras representações de africanos, nem de nenhum outro clássico que tenha raízes profundas no racismo. Se esse argumento alguma vez surgir, discuti-lo-emos em seu próprio nome. Não há qualquer perigo de escalada.
Existirão casos complicados e áreas cinzentas, sim. Claro que sim. Somos pessoas inteligentes: conseguiremos lidar com isso. Nenhum original será alguma vez “apagado”, perdido da memória para os investigadores, especialmente nesta era de arquivos digitais. Tal como a Sunflower, a “centaura” negra caricatural de Fantasia, não foi esquecida, apesar dos melhores esforços da Disney, tal como não o foi o título original de And Then There Were None, de Agatha Christie. Nem ninguém está a dizer que essas figuras questionáveis não devem ser usadas outras vez - a questão está antes em saber o que se faz com isso. Bramidos, nostalgia e ressentimento são respostas lamentáveis e inadequadas.
De facto, o argumento de que “Tudo Será Banido” de Staggs não só é uma mentira pegada, mas reversível. A lógica totalitária que imputa aos seus oponentes reside antes nele mesmo. Mondondo não sugeriu jamais que tudo o que é vergonhoso fosse apagado. Staggs, porém, insiste que nada, não importa quão repulsivo, deveria precisar de ser sequer contextualizado, quando mais, por vezes, até, num certo contexto, adaptado… É ele o totalitário. De acordo com esta lógica, ele deve desejar viver num mundo em que qualquer criança negra - qualquer criança - alegre por ver Fantasia deve ficar chocada (sem que se permita qualquer aviso!) e sofrer a ver a figura de Sunflower, ou deve entrar nas livrarias e encarar livros comercializados em massa a chamá-las de "esc***bas" nas capas.
Esta é uma moralidade estranha e distorcida que prefere uma fidelidade incansável aos textos racistas do que a consideração das vidas diárias das crianças ou outras pessoas. Ou, para explicá-lo de outra maneira, “vão-se foder, preocupamo-nos mais com os nossos bonequinhos de negrinhos do que com vocês!”. Este não é um debate somente sobre textos antigos. O “Golliwog”, por exemplo, foi recentemente invocado, não apenas num insulto peculiar, mal e porcamente desculpado [feito por Carol Tatcher] a um jovem negro, mas também, sem qualquer caução ou rigor, por artistas famosos e celebrados, um dos quais proclamando estar a reivindicar a personagem. Como se não existissem racistas hoje em dia que não chamassem crianças negras de “golliwog”…
Não, isto não é apenas sobre crianças (pois os adultos têm o mesmo direito de esperar de não serem rebaixados pela cultura que os circunda) mas é, sem dúvida alguma, sobre elas. Mondondo deu início a esta acção judicial preocupado com o seu jovem sobrinho. Enright requereu a mudança de prateleiras devido à ideia de que as suas crianças poderiam ver-se a si mesmas neste espelho viciosamente distorcido. É assim uma coisa tão má fazer uma adaptação, pelo menos como ponto de partida? Ou sugerir que não devemos tratar insultos culturais que tornam a vida das crianças mais difíceis como algo de inocente [estudo de Derman-Sparks]? É mais difícil ou mais fácil para uma criança de etnia cigana depois de uma piada sobre ciganos [na rádio ou televisão nacionais]? Será um bom dia quando uma criança congolesa encontra um Tintin no Congo sem contextualização ao lado de um livro da Miffy, ou um mau dia?
Já vimos como isto não se trata de censura, nem banimento. Nem se trata de uma Polícia do Pensamento, nem o politicamente-correcto-no-seu-mais-excessivo. E se for, no mínimo dos mínimos, a puta da decência? A civilização?
Nos fóruns de discussão em torno de Enid Blyton, os guerreiros queixam-se de que a Brigada dos PC lhe está a retirar a “palavra N” [nigger] e, acima de tudo, os Golliwogs. Tal como os defensores de Hergé deveriam, para serem rigorosos, apontar a sua ira ao próprio Hergé, também as tropas de choque de Blyton detestam e odeiam as suas filhas: pois foram elas quem decidiu retirar essas tão saudosas caricaturas racistas: “A minha irmã e eu chegámos a conclusão nos anos 1980 que, dada a sociedade multicultural em que agora vivíamos, os ‘gollis’ deveriam desaparecer dos livros… Sentíamos que não era correcto na nossa época utilizá-los se eram considerados uma paródia de parte da nossa população”.
Uma jogada? Uma justificação após o facto? Um improviso ligeiro? Não poderemos saber. Mas seja o que for que tenha desencadeado essas palavras e pensamentos, é notável - e vergonhoso - que a atitude de boa vizinhança apolítica e educada com mais de 30 anos das próprias filhas de Blyton mostre maior preocupação pelos sentimentos das pessoas, e uma compreensão mais pragmática dos problemas e políticas da cultura, do que os defensores arruflados do Menino Repórter dos nossos dias, ou os revivalistas “pós-irónicos” de insultos.»
Texto 2. Anotações de Leonard Rifas
«Na edição em língua inglesa da Egmont de 2006 de Tintin no Congo, surgia um aviso, voluntário, como parte da introdução pelo tradutor. O primeiro parágrafo dessa introdução promove este livro como “um volume essencial para coleccionadores”. O aviso completo aparece como o último dos seus cinco parágrafos:
“Na sua representação do Congo belga, o jovem Hergé reflecte as atitudes coloniais do tempo. Ele próprio admitiu que representou o povo africano de acordo com os estereótipos paternalistas do período - uma interpretação que alguns dos leitores contemporâneos podem achar ofensiva. O mesmo pode ser dito da sua representação de cenas de caça grossa.”
Qual é o valor deste aviso? Quem protege? Valeria a pena lutar num processo judicial pela inclusão de um aviso deste tipo?
Eis os meus pensamentos sobre este parágrafo:
“Na sua representação do Congo belga, o jovem Hergé reflecte [o verbo transitivo ‘reflectir’ sugere um espelhamento passivo, o que absolve o artista de responsabilidades. Mas de facto Hergé não estava simplesmente a ‘reflectir’ a situação através da sua banda desenhada, mas a trabalhar num projecto que o seu editor lhe tinha encomendado em nome dos propósitos propagandísticos de fazer as crianças belgas se sentirem orgulhosas pela sua missão civilizadora em África] as atitudes coloniais [ao escrever ‘as’ atitudes coloniais está a condensar-se várias atitudes numa só, para que pareça que a perspectiva promovida por este livro seja um simples facto histórico e menos uma das várias posições políticas históricas existentes. Ao não mencionar explicitamente as atitudes anti-coloniais desse tempo, perde uma oportunidade em explicar como é que o livro também representava aqueles que se opunham ao controlo belga do Congo nesta história, mas como vilões] do tempo. [Aqueles que resistem a colocar seja qual for o aviso neste livro apressam-se a descrevê-lo como uma obra de uma era desaparecida, como a extracção da riqueza do antigo Congo belga para benefício de investidores estrangeiros não tivesse qualquer relevância contemporânea. Um ano depois da publicação desta introdução, o Fundo Monetário Internacional conseguiu reescrever com êxito o orçamento da República Democrática do Congo (o antigo Congo belga e depois Zaire) de modo a colocar as exigências dos negócios estrangeiros acima das necessidades urgentes do povo dessa nação marcada pela guerra.] Ele próprio admitiu que representou o povo africano de acordo com os estereótipos paternalistas do período [Este parágrafo, nesta frase e na sua primeira frase, mostra mais preocupação com o modo como a controvérsia poderá afectar a reputação de Hergé do que como o livro será interpretado pelos seus leitores contemporâneos. Aqui os tradutores parecem reforçar uma defesa preventiva contra o argumento de que estariam a criticar Hergé injustamente. Afinal de contas, não estão a dizer nada contra Hergé que ele não tenha já dito antes. Muitos dos que defendem este livro dizem que os seus estereótipos não promovem o ódio racial, mas eram ‘meramente paternalistas’, tratando os congoleses como crianças. Este parágrafo de aviso não providencia qualquer informação histórica sobre como o sistema colonial havia abusado dessas ‘crianças’] - uma interpretação que alguns dos leitores contemporâneos podem [o verbo [auxiliar] ‘poder’ nega que ‘algumas’ pessoas já haviam afirmado, por escrito, que consideravam este livro racialmente ofensivo] achar ofensiva. O mesmo pode ser dito da sua representação de cenas de caça grossa [Esta frase conclusiva tem o efeito de dizer que já se esgotou o tema das caricaturas raciais ofensivas deste livro, e que as queixas sobre essas representações podem ser pensadas como mais um desses problemas em que ‘não podemos agradar a gregos e troianos’, que uma obra popular pode atrair].
As frases que usei acima (“sugere”, “parece”, “tem como efeito”) admitem que estas são matérias de interpretação. As questões mais amplas e difíceis que este livro implica incluem pensar sobre os efeitos globais do colonialismo.»
Retornando brevemente a um dos pontos indicados acima, sobre a inversão de papéis (aqui programada pelo artista iambickilometer), será que as coisas seriam assim tão pacíficas? Será que aguentamos assim tão bem um humor que se alia ao insulto que venha na nossa direcção? São tantos os casos em que se verificam os abusos do racismo (que muitas vezes surge disfarçado de um "é só a brincar" ou "não percebeste a piada" ou "compreenderam-me mal"), mas também os casos em que o ódio pelo outro surge quando esse outro faz a tal piada (atenção: faits divers!), que este assunto não teria fim...
Nota final: agradecimentos à Comix Scholars List, pelas informações preciosas e discussões, e Leonard Rifas em particular.
Este texto foi também publicado no site Buala.org, aqui. Obrigado!
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