Temos repetido recentemente, sobretudo devido a estudos referentes à banda desenhada produzida através dos comic books, à ideia de serialização, que é garante de uma determinada fruição, bem diversa daquela patente na leitura de um livro ou de uma série de álbuns. Infelizmente, e repetimo-nos, pelo tipo de abordagem escolhida no lerbd, é muito raro, e até contraproducente, dar conta de leituras feitas regularmente desse formato, ao contrário da de colecções em trade paperbacks, por exemplo. No entanto, nem tudo o que se produz em formato comic book terá como finalidade vir a ser coleccionado em formato de livro, e há mesmo casos que vivem o mais enraizados possível nesse formato, que o é em termos económicos, editoriais, estruturais e estéticos. Um dos territórios, e encaixado num outro ainda que também é algo negligenciado no lerbd, é o dos comic books da banda desenhada infantil. As mais das vezes, quando se pensa na criação para crianças, pensa-se em estratégias anódinas, ou pior, pedagógicas, ou pior ainda, moralistas, ou tremendo, tudo isso ao mesmo tempo. Ou então pensa-se nos “clássicos” que estão desfasados a anos-luz da sociedade que nos rodeia e, mais importante, deveríamos construir.
Haveria seguramente outros exemplos a dar e/ou a seguir, mas queremos prestar atenção a um título em particular, que está associado a uma série de animação - ou desenhos animados, sem pejo - da Cartoon Network: Adventure Time, with Finn & Jake. Esta é uma série criada por Pendleton Ward, mas, como se quer nesta indústria em particular, tanto os episódios da série televisiva como os materiais desenvolvidos para esta revista são produzidos por outros autores, parte do esforço colectivo da indústria e do estúdio. A Kaboom! tem criado livros ora baseados em séries anteriores (como no caso dos Peanuts de Schulz) quer em outras séries de animação, e mesmo tem termos históricos, não estamos de forma alguma perante uma experiência inédita.
A série de televisão desenvolve-se a partir de premissas organizadas, isto é, há uma certa continuidade de episódio para episódio: se cada um tem uma história conclusiva, outros aspectos são desenvolvidos ao longo da série, uma estratégia muito típica da escrita contemporânea de televisão (é verdade que isso já existia noutros momentos da sua história, mas hoje em dia as séries norte-americanas pautam-se por esta economia). Daí se depreende que estas bandas desenhadas não demorem muito tempo na apresentação de cada personagem, elas são já familiares aos seus leitores, mesmo que não sejam necessariamente espectadores da série. Este princípio sempre foi (ou quase sempre) imperativo nas bandas desenhadas que adaptavam personagens de desenhos animados televisivos infanto-juvenis, desde as produções Disney à Hanna-Barbera, e mais recentemente todo o material da Nickelodeon ou da Cartoon Network.
Adventure Time conta as histórias de Finn, um rapaz humano - vestido como uma espécie de Max de Where the Wild Things Are mas preparado para aventuras urbanas -de uns 14 anos, e Jake, o seu cão com poderes de plasticidade. Ambos são “110%“ compinchas um do outro. Eles vivem na Land of Ooo, sendo amigos da Princesa Bubblegum e da Rainha Vampira Marceline, e antagonistas do Rei do Gelo, que parece estar a perseguir sempre princesas para se casar (mas ao mesmo tempo adora escrever “fan fiction” sobre os próprios Finn & Jake). Aparentemente, nada de muito estranho. No entanto, Adventure Time faz parte de uma nova forma de criar animação seriada para crianças, que tanto bebe de uma espécie de retro-cool em termos de referências culturais, como de modos de produção e publicidade (veja-se a origem da série), como ainda de uma certa atitude de liberdade e loucura que recentemente tem pautado este tipo de trabalho (veja-se Yo Gabba Gabba, Foster Home for Imaginary Friends, ou o mais famoso, por cá, Spongebob Squarepants). Pessoas que, de várias gerações, terão visto Pee-Wee Herman’s Playhouse ou Ren & Stimpy.
O aspecto que torna este - mas poder-se-iam falar de outros títulos, é certo - projecto interessante é que cada revista tem uma história principal (a actual escrita por Ryan North e desenhada por Shelli Paroline e Braden Lamb adivinha-se que continue por alguns números, em continuidade), mas também conta com histórias secundárias mais curtas e auto-conclusivas, para as quais são convidados vários artistas. Isto é prática corrente neste tipo de projectos, e o que aqui se nota é uma sobreposição muito curiosa entre o círculo de autores da banda desenhada alternativa e estas produções de banda desenhada infantil mais contemporânea, a qual também engloba uma experiência da contemporaneidade na maneira como misturam géneros, optam por uma estratégia visual muito vincadamente pós-moderna, a intricada rede de referências a outros textos culturais, etc. Daí que encontremos muitos nomes de autores famosos na área “adulta” a fazerem trabalhos - mesmo que curtos, mesmo que apenas ilustrações - para estas produções (e em termos financeiros, seguramente que recompensadores). Por exemplo, a Nickelodeon contava com Richard Sala, Nick Bertozzi, Craig Thompson ou Jason Lutes. Até agora (3 números), esta Adventure Time teve, pelo menos, Aaron Reiner, também ele autor de um dos mais interessantes livros de banda desenhada infantil de (nossa) recente memória, Spiral-bound, a nova estrela do momento da “art comics crowd”, Michael DeForge, e ainda Lucy Knisley e Zac Gorman (de quem mostramos esta história de uma página).
Isto implica que cada revista tenha mais do que um estilo gráfico na representação das personagens principais, algo que nada tem de surpreendente quer nos modos de trabalho da indústria norte-americana (vide mainstream) quer nas revistas históricas de banda desenhada infantil, que apresentava sempre várias histórias de durações variadas com vários artistas (recordam-se do Almanaque Disney, ou outras revistas da Abril traduzindo essas produções norte-americanas?). O importante está em que não se cria propriamente um “house style” fechado - como no caso paradigmático, ainda que tenha sofrido alterações recentemente, da Mônica e ca. de Maurício de Sousa -, mas antes um largo intervalo no interior do qual há a possibilidade de experimentar várias variações de linha, de composição, de escolhas cromáticas, etc. O convite a vários ilustradores para fazerem variantes de capas, ainda que aumentando o jogo económico típico (e cansativo) desta indústria, mostra também algumas possibilidades lúdicas e de formação de estilo. Este, diga-se de passagem, não está longe de tendências actuais quer junto a uma nova geração de autores de banda desenhada alternativa pós-Fort Thunder (presente sobretudo no círculo dos fanzines e small press) quer de toda uma forma de criar ilustração (como se vê, por exemplo, em revistas como a Anorak).
O encontro entre esses dois territórios - que são apenas descrições, e nada têm nem de incompatível nem de contraditório mas tampouco de convergente - é porém quase suave. O tipo de abordagem psicadélica (que Paper Rad fez linguagem principal), de reutilizações de estratégias da fantasia (como C.F. ou Brian Chippendale) ou da ficção científica (como Mat Brinkman), e de absurdo quase surreal (de Gary Panter, que participara activamente no programa de Paul Reubens/Pee Wee Herman, à, para sairmos do território americano, malta da Argh! ou da Les Requins Marteaux) repete-se aqui, e mãos dadas, ou fundidas, no trabalho destes autores.
Que encontramos em Adventure Time, então, como elementos disruptores de uma mais clássica, ou mais conservadora, abordagem na banda desenhada infantil? Brincadeiras como a chamada “quebra da quarta parede”, ou melhor dizendo, apartes directos ao leitor, consciência das personagens de que estão numa ficção de banda desenhada, fingimentos de anúncios, manipulação das expectativas dos leitores pelas estruturas típicas das histórias (como um “fim” que vem cedo demais), soluções deus ex machina - mas gozando consigo mesmas através de explicações em bom humor - para os problemas que se vão apresentando, etc. E, citamos novamente, a ficção que o Ice King escreve sobre Finn & Jake não deixa de ser um dispositivo caricato, quase convidando os leitores a fazerem o mesmo, alimentando a força da presença das histórias curtas.
Pendleton Ward explicou em entrevistas que esta ficção desenrolar-se-ia na nossa própria terra, mas num futuro pós-apocalíptico, em que a magia emergiria “de novo”. Isso é visível, na banda desenhada, nesta vinheta, em que Jake e Finn saltam por sobre um abismo criado pelo seu primeiro antagonista, The Lich, e vemos as várias camadas de terra que correspondem a vários momentos da história do planeta: a antepenúltima camada corresponderia, portanto, ao nosso estado de civilização (vemos objectos associados à existência do urbanismo dos séculos XX/XXI), seguido de uma camada mais fresca com o que parecem ser elementos deste tempo retro-mágico (uma caveira de um ser fantástico, espadas, baús, capacetes de cavaleiros, mas também um torpedo e a cabeça de um robot, possivelmente).
Se os sistemas culturais devem obedecer também aos imperativos selectivos do tempo, este “futuro” é tão distinto e distante no nosso próprio tempo com o nosso tempo o é das eras ou idades que nos antecederam. O filtro da ficção permite, porém, que a projecção aqui feita use livre e mescladamente elementos do passado quer reais quer fictícios (é notável como se fala de um “retorno da/à magia”). A diferenciação/comparticipação não é feita de um modo progressivo, à la ficção científica de antecipação social e cultural, mas sublinhando, a um só tempo, as possibilidades discursivas, transgressivas, humorísticas e transgenéricas permitidas por este feliz encontro entre o pós-modernismo e a criação para crianças, assim como pela exploração do retrocesso a um estado não-positivista da humanidade. Visto como positivo, também pode ser um regresso descomplexado a todas as fantasias típicas da infância, quando atar uma toalha à volta do pescoço é mesmo uma capa, ou um testo de panela é mesmo um escudo, ou um passa-montanhas com duas bolas de ping-pong é mesmo um capacete…
Talvez seja essa frescura e descomplexidade lúdica que torna Adventure Time, pejado de 1001 clichés e frases-feitas - mas mergulhando nisso com uma alegria contagiante -, num contributo sem pedagogia, moralismo ou expectativas de bom comportamento, e, logo, para o alargamento da banda desenhada enquanto território, e desta feita, dirigido de maneira tonta, e tão inteligente, aos mais novos.
Ward é o J. L. Borges da animação!
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