Daquilo que nos foi dado a entender, a Roménia não é um país no qual a banda desenhada esteja enraizada de forma contínua. Apesar de historicamente terem tido, de resto como toda a Europa, publicações sob a forma de jornais e revistas com banda desenhada, sobretudo infantil, mas com alguns exemplos de sátiras sociais e políticas, e a geração de 1970 ter tido também alguma exposição a “clássicos” europeus, contemporaneamente a banda desenhada não é uma das disciplinas tentadas pelos artistas, mesmo de forma comercial. Os quiosques não vendem quase banda desenhada nenhuma, as livrarias generalistas raramente têm títulos, e muito menos secções. Apenas algumas livrarias especializadas ou com uma escolha mais judiciosa terão alguma escolha, entre importações a produções nacionais (onde se encontravam exemplos esparsos, nunca repetidos, o que faz imaginar problemas de distribuição ou de quantidade de edição). The Book of George, por exemplo, é uma espécie de embaixada do que se produz localmente, mas digamos que o seu gesto é muito mais único e isolado do que, se nos permitem, Tinta nos Nervos. Se este catálogo apenas é sinal de uma escolha entre um panorama bem mais diversificado e com vários graus de fortuna, aquele projecto romeno quase cobre os autores que ainda procuram fazer manter esta linguagem naquele país. Comparativamente, Portugal tem uma cena dinâmica, viva e com leitores! A nossa visita ao Salão Europeu local serviu, não para um estudo cabal e exaustivo, mas pelo menos para uma exposição à cena local, à discussão com alguns autores, e apercebermo-nos de que o impacto é ainda mais circunscrito. E, de facto, sem leitores, por menor número que constituam, é difícil que um autor ou uma linguagem medre.
Tal não significa, porém, que não haja projectos de interesse extra-nacional. Quer dizer, projectos que parecem ter contornos suficientemente desenvoltos para serem lidos para além das suas circunstâncias locais. É claro que esta interpretação é perigosa, pois o que pode constituir interesse a um leitor pode não o ser para outro, e há quem se mova por questões estritamente locais, mas convenhamos que há nível de opacidade que torna uma obra ilegível por falta de compreensão cultural… Não falamos da língua, atenção, mas sim do tratamento da matéria narrativa, gráfica, visual, temática, em questão. A primeira de duas publicações que trazemos aqui à consideração é The Year of the Pioneer. Trata-se de um retrato da Roménia de 1986, sob o regime, cada vez mais brutal e absurdo, de Ceaucescu, sob a perspectiva de uma jovem menina de sete anos, projecção da própria autora, Andreea Chirica (não conseguimos utilizar o diacrítico do “c”).
O livro é composto não tanto por uma narrativa contínua e de episódios encaixados, mas antes de cenas singulares seguidas. Cada página apresenta uma imagem, as mais das vezes, com texto em legenda, e de vez em quando alguns balões de fala, que constituem por sua vez uma cena isolada. Uma colecção de postais, de memórias, apontamentos diarísticos quase. E tudo apresentado sob a forma de um estilo ingénuo, de desenhos simples, ditos “infantis”.
Acreditamos que o gesto de Satrapi tenha aqui uma influência marcante. Afinal, esse livro, apesar de ter surgido num circuito independente de publicação, viria a ter um sucesso incomparável com qualquer outra obra nas mesmas circunstâncias, sendo o seu único par o Maus de spiegelman. Porém, a o estilo naïf de Satrapi, que procurava devolver aos seus leitores uma certa perspectiva infantil da pequena Marji (que funcionando melhor na primeiríssima parte, vai perdendo a sua força no desenvolvimento do livro, mas que ganha uma estilização equilibrada nos outros projectos da autora), seria rapidamente adoptado por algumas autoras, sendo o caso, também com sucesso, de Zeina Abirached, o mais programático. O desenho de Chirica é menos desenvolto que o de Satrapi e Abirached, recordando-nos antes o de Rosalind B. Penfold, ainda que integrando num outro programa. Ao passo que essa autora norte-americana transformava o seu estilo ingénuo numa espécie de curto apontamento para cimentar o seu trauma, Chirica tira partido dos seus desenhos ainda mais “infantis” (preferência pelo perfil ou pela vista frontal, redução dos traços dos rostos, uso expansivo dos brancos ou de manchas negras a feltro, dispensa de pormenores realistas, esquematização dos espaços e dos objectos, abolição da perspectiva, uso de texto de forma decorativa/expressiva) para recriar, na sua própria matéria, o ano de 1986, quando a autora tinha 7 anos, ou, o ano dos “pioneiros”, isto é, um estádio que todas as crianças atravessavam no seu programa educativo do regime. É importante, de facto, compreender que o livro não apresenta as memórias de uma mulher em 2011 recordando-se da sua infância - projecção que obrigaria à distância da narração mas possivelmente das estratégias visuais -, mas antes surge como sendo um diário, no momento, da parte da pequena Andreea.
Andreea nunca faz juízos de valor ao que a rodeia. Mas a sua própria exposição faz o leitor compreender os problemas inerentes a essa realidade, agora longínqua no tempo. A Roménia moderna ainda tem resquícios do regime de Ceaucescu, mas ao mesmo tempo a emergência do capitalismo apagou traços drásticos desse tempo (se bem que introduzindo outros problemas, também eles graves). Presumimos, portanto, que este contraste com um passado seja tão significativo para um leitor estranho do que para aqueles que partilham esta experiência com Chirica, se não, naturalmente, mais ainda para estes segundos. O facto de haver apenas um dia com água quente por semana, apenas uma marca de champô, haver quotas obrigatórias para as crianças de entregarem papel e vidro para reciclar, a consideração de “falta de patriotismo” por não se ter jeito num desporto com bola, os inúmeros hinos e canções patrióticas que atravessam a vida escolar, a pressão sobre as crianças para se tornaram “pioneiros” (uma espécie de grau do regime, à escuteiros ou lobitos) contrastando com a passagem automática a nível nacional, o exercício de pedagogia prepotente da parte dos “camaradas professores”, a convoluta “caça” aos alimentos, o mal-disfarçado trabalho forçado de crianças em idade escolar no campo, o agradecimento que se faz ao “amado partido” pela falta de aquecimento nas escolas pois isso “torna-nos fortes”, a macambúzia existência quotidiana, tudo isso vai tecendo um retrato sobre algo a que não se deseja retornar, e sobre o qual não pode haver uma nostalgia muito séria. Algumas leis, como as da circulação dos carros por números pares ou ímpares ao fim-de-semana, é tão arbitrária e patética, que se compreende de onde emergem as imagens de Ionesco. Porém, é precisamente pela autora optar pela discursividade da menina-personagem, e não o seu julgamento de adulta, que ainda assim perpassa por este livro uma espécie de aura de leveza, de brincadeira, dando-nos a ver a forma como a(s) criança(s) é capaz de tirar algum partido positivo e alegre da mais profunda das depressões económicas e de liberdades individuais. Como, por exemplo, brincar ao faz de conta através das páginas de um luxuoso catálogo de compras ocidental (Neckermann).
De certa forma, poderíamos mesmo imaginar que este método de assimilar tal qual as percepções originais (ou a sua impressão) revela mais o absurdo da época do que um discurso culturalmente ancorado no presente e tecendo críticas directas desmontando essas mesmas realidades antigas. Contudo, existem pistas desse jogo. Na última imagem do livro, antes de um suplemento sobre frases feitas ou palavras que usa no livro, a pequena Andreea volta à escola. Uma colega diz que “mal pode esperar”, mas a protagonista declara, para si mesma talvez, “não posso esperar crescer e esquecer tudo isto!”. Esquecer, como compreendemos, não esqueceu, mas exorciza essa memória ao colocá-las neste mecanismo criativo.
O livro está em inglês, mas muitas vezes o romeno emerge ora nas construções frásicas ou em expressões e nomes de objectos e marcas, como se fosse impossível a sua transição linguística. Ao mesmo tempo, nalgumas instâncias, como os nomes dos jogos infantis (como o “elasticu” que não é mais do que o “jogo do elástico” idêntico que conhecemos), ou as lenga-lengas, surgem tal qual como se desejasse marcar não tanto a “romeneidade” infrangível mas a sobrevivência intacta da memória da infância, como que congelada, e a sua tradução “quebraria” essa mesma memória. Seja como for, esses termos são então alvo do tal suplemento final, o qual também não se apresenta com a distância temporal esperada, mas inscrita no tempo da ocorrência, tornando The Year of the Pioneer um projecto muito interessante para o contínuo edifício de como a banda desenhada responde às questões da memória pessoal, colectiva, histórica, as resoluções dos traumas e a distância focalizadora que esta arte permite confundir.
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