O sincretismo sempre - ou melhor, desde que as condições se proporcionaram, na existência da diferença entre sistemas culturais e religiosos, para que se o tentasse - exerceu um grande fascínio. Mesmo que tenha servido propósitos políticos (Alexandre o Grande) ou de protecção face à intolerância assassina (os Marranos), a tentativa de encontrar elos de ligação, reflexos ou padrões entre os mitos e as famílias de deuses e personagens fantásticas de cultura para cultura levaram à emergência de narrativas fabulosas. Muitas vezes, essas travessias são até mesmo fundadoras de novas histórias, seja em que os sistemas religiosos se mantenham separáveis (pense-se na figura do Rei Macaco chinês e do Hanuman hindu) ou em que há uma fusão total (o caso das religiões afro-brasileiras). Não deixa, claro está, de ser uma forma de aproximação redutora, já que pormenores que não se encaixem são eliminados, perdendo-se assim os condimentos subtis que fazem de cada cultura algo de preciso e impossível de traduzir em elementos simples e isoláveis. Pautar a compreensão (muitas vezes de modo racional, o que já leva a uma perda substancial no que diz respeito a crenças e integração cultural) de um sistema pelas regras de construção de outro (usualmente a nossa bitola é precisamente o enquadramento ocidental, derivado de uma mescla entre a gnose antiga, a pistis cristã, e a razão pós-iluminista) levará sempre, sem surpresas, ora à eliminação da identidade própria do sistema que não faz parte da nossa experiência, ou, paradoxalmente, levará somente à incompreensão.
Jesse Moynihan havia já demonstrado um interesse vívido por este tipo de matéria narrativa na sua obra anterior, The Backwards Folding Mirror, bebendo livremente de várias fontes ou ecos reconhecíveis para criar as suas pequenas sagas. No entanto, Forming, de que este volume aparenta ser o primeiro tomo, é mais directo no uso das suas fontes. E estas são múltiplas. Moynihan emprega personagens, figuras, elementos, símbolos, episódios retirados um pouco de todo o lado, vasculhando mitos com origens gregas clássicas, persas, judaicas, cabalísticas, zoroástricas, célticas, ou até mais recentes, mágicas, com a presença do rei maléfico dos gnomos, Ghob (tristemente tornado célebre entre nós), ou ficcionais, como na citação da “energia vril”, de Bulwer-Lytton. E, quase um must, os reptilianos… Mas algumas passagens já haviam sido tentadas: por exemplo, a união secreta entre Noah e Gaia em Forming poderá parecer estranha, mas em muitos sistemas sincréticos ou de religião comparada, a mulher do Noé bíblico, que não é nomeada na Bíblia, é vista como sendo Gaia, equivalendo Urano a Noé; o hebraico Japeth é comparado ao titã Jápeto, ou Iapetus, que é o nome empregue neste livro.
Esta saga, que foi sendo (e é) publicada em curtos episódios de duas pranchas cada no site do autor, encontra agora esta edição luxuosa pelas mãos dos editores de uma bela colecção de novos autores, de um território que mescla ilustração e banda desenhada, character design e experiências contemporâneas no packaging de livros, e uma certa abertura de espaços expressivos em que públicos usualmente separáveis se podem encontrar. Aparentemente, parece ser uma história do nosso universo, empregando então elementos dessas mitologias citadas, para tecer um só fio, sincrético, que exponha as transformações assistidas na Terra. A história apresenta vários eixos temporais diferentes, que se vão cruzando entre si, contribuindo para uma novela complexa (e que mima os dramas à escala humana de muitas destas mitologias, sobretudo a helénica, mas também a hebraica).
Vejamos. Um dos ramais narrativos, digamos assim, passa-se entre 10 000 e 9 000 AC, com a chegada de Mithras à Terra, enviado por Ahura Mazda, e aterrando em Atlantis. Segue-se a sua subjugação dos terrestres para que minem vários elementos que compõem a riqueza dos deuses-astronautas, a sua união com Gaia, e o surgimento da sua família (que conta com ciclopes, Cronus/Crono e Rhea/Reia) que se irá rebelar mais tarde. Entretanto, em segredo, Gaia une-se a Noah, com quem tem dois filhos, Iapetus e Themis. Além disso, Gaia e os seus filhos recebem ordens crípticas do rei Ghob. Em Canaan aterra um outro grupo liderado pelo assassino hermafrodita Serapis, com a sua guarda, os Nephalim, e cuja missão é observarem Mithras e os seres humanos locais, mas mais tarde passam a interagir com eles, sobretudo Adão e Eva (representados como negros, o que aponta a aspecto político importante, apesar de não serem nem os primeiros nem os únicos humanos na Terra). Outra linha narrativa que aprendemos é que Lúcifer se encontra enclausurado no centro da Terra, tendo-se separado do infinito, ou Ain Soph, no início do tempo, ganhando forma autónoma; o arcanjo Michael, querendo fazer retornar Lúcifer ao todo, combate-o, e, milhões de anos depois, acabam por gerar o universo material, no qual Michael fica igualmente preso. Do outro lado do universo, encontramos ainda Atys, um assassino rival de Serapis, que vem à Terra para o combater, mas perde sistematicamente, sendo salvo por uma espécie de Yeti, sem nome, mas que parece representar a Terra. Também Nommo, que no fundo quer ser apenas um escultor mas tem de trabalhar nas comunicações entre o centro de Ahura Mazda e as missões na Terra, recebe um rolo misterioso que o lança para o centro da acção, mas a 65 milhões de anos AC. E parece que se espera um papel importante da parte dele no futuro (presente de Mithras/Cronus/Serapis/leitor), com a ajuda de Lúcifer. E esta descrição é, acreditem, incompleta.
Havendo já citado fontes cabalísticas, destacando-as da família maior do Judaísmo, aponta-se também a possibilidade de que o autor não tenha seguido apenas fontes ortodoxas, mas igualmente apócrifas, lendárias (textos agádicos), comentários (midrásticos) ou derivações, quiçá mesmo fruto de especulações fictíciais autorais anteriores (na banda desenhada, o emprego da religião para fundar novos mitos não é de todo inédita, e seria impossível determinar quantas vezes terá estado na origem de projectos mais ou menos famosos, mas citemos apenas Super-Homem, The Invisibles e Testament). O caldeirão tremendo que tudo isto representa torna esta saga numa procura, divertida, por um sentido único e coerente entre todas estas correntes, ao mesmo tempo que funda um novo mito, no seu mais básico sentido etimológico de “narrativa”.
Quando falámos de The Backwards Folding Mirror já havíamos exposto os elos de ligação com autores tais como Thomas Herpich e Mat Brinkman. Mas além disso, e com uma distância de alguns anos, vemos que a emergência de uma nova tendência plástica da banda desenhada nos Estados Unidos está cada vez mais consolidada. Não temos a certeza se a nomenclatura de “art comix” se tornará normativa, mas tem sido indicada aqui e ali; seja como for, é uma maneira de assinalar algo que se desenvolve a partir da banda desenhada alternativa mas fazendo colidir em si mesmo dois elementos aparentemente paradoxais. Por um lado, estes autores usam instrumentos figurativos, cromáticos, plásticos, de composição que nasceram das abordagens libertas de “house styles” das várias escolas alternativas, se é que as podemos chamar assim. Depois da revolução estética pós-moderna pela geração da RAW, e de vários autores a título individual, e com o surgimento dos mini-comics, a internet, etc., mas também uma certa tendência do design e da ilustração (do Pictoplasma à Anorak), a estilização, a nostalgia por certos capítulos da história do design e da arte, as várias linhas de desenvolvimento da pintura figurativa dos Estados Unidos e outros locais dos anos 1990, vários artistas encontraram na banda desenhada um território tão livre para se criarem imagens como outro qualquer, mas sem a preocupação de seguirem estilos vistos como comerciais - do realismo à la Marvel/DC aos contornos plastificados e redondos à la Disney e ca. Há uma simplificação de formas, uma explosão de cores primárias, de gradientes permitidos por materiais riscadores vistos como inferiores até há pouco tempo (como lápis de cor ou marcadores de feltro), a intrusão de artes gráficas como a serigrafia, o stencil, etc. Ao mesmo tempo, em termos de género, narrativos, de organização da acção, de desenvolvimento de personagens, não há qualquer pejo em revisitar clássicos: super-heróis tipo Kirby, space operas, desenhos animados frenéticos e/ou psicadélicos, combates de luta livre da televisão, sitcoms. E de facto, tal como Kirby havia aproveitado alguns elementos de 2001 e de Eram os deuses astronautas?, parece verificarmos nesta obra de Moynihan, assim como em outros autores, uma leitura de The Fourth World ou The Eternals mas sob o prisma de Ren & Stimpy…
Além dos artistas citados (e todo o grupo do Fort Thunder), ainda se poderiam incluir nesta intricada tendência muitos outros, tais como Michael Deforges, de que falaremos em breve, sendo ele colega de Moynihan no grupo associado ao desenvolvimento gráfico de Adventure Time. Este estranho conjunto de artistas, trabalhos e abordagens conta ainda com artistas tão diversos quanto o hiper-pastiche de Thomas Scioli e o queering do género por Edie Fake. Ou o grupo associado à Les Requins Marteaux. Historicamente, é óbvio que se poderiam agregar outros artistas, de Gary Panter a Paul Pope.
Como se compreende, é como se fosse possível fazer um batido tutti-frutti com a banda desenhada e servir fresco. O prazer de leitura de Forming é um prazer adolescente, de ver todas estas coisas como se fosse a primeira vez, mas naquela fase em que se revela algo que nos muda para sempre a percepção das coisas e temos a claríssima sensação de termos crescido um pouco mais. Nada há aqui de pesado, de soturno, de majestático. Bem pelo contrário, é de uma leveza (cf. Italo Calvino) bem-vinda e, ao mesmo tempo, tão difícil de atingir. Até se poderia falar de uma abordagem outsider (há quem compare a primeira prancha a imagens conhecidas de Hank Fletcher, e o autor diz que é possível que estivesse no fundo da sua memória), mas o propósito de Forming é nítido, conduzido e controlado.
Se bem que o título deste livro se refira literalmente à formação do universo, do mundo, da matéria que compõe a força dos deuses, dos próprios deuses e outras personagens heróicas que participam, e até a momentos em que nos combates vemos os elementos a transubstanciarem-se entre si, não será por acaso que o autor o escreveu no gerúndio. Não é tanto as formas em si que importam, mas a sua formação enquanto ocorre, sublinhando a estrutura complexa temporal da saga.
Portanto, o mito que Moynihan cria nada deve a uma abordagem crente dos textos, fés, crenças, e sistemas originais, nem numa adaptação das suas histórias (fosse esta literal, próxima ou livre), mas tampouco a uma ideia de ter encontrado uma explicação séria para a natureza humana (como Testament parece querer ser entendido). É precisamente um mergulho na cultura popular para ir fazendo esta alucinação de intertextualidade, mas sem se tornar num cliché estupidificante e pouco inteligente e de fácil absorção (que muitas vezes é o que surge e conquista os leitores). Os contornos políticos, raciais, sexuais, etc., e a ideia de liberdade do individuo, dão a esta história aparentemente simples em termos “morais” um peso no que diz respeito à representação bem superior a outras obras que parecem revestir-se de maior “seriedade”.
Em quase todos os momentos, quer os de combate quer os de exposição, e ainda os momentos mais solenes que testemunhamos, o tipo de linguagem empregue pelas personagens revela uma total inscrição no momento actual: o tipo de gíria, de calão, as expressões feitas, são o que circula neste momento por toda a cultura americana popular pela via de tantos instrumentos… Não há qualquer desculpa nem esforço para fugir dela ou estar à sua tona. Moyhihan atasca-se nessa lama indistinta para falar destas entidades divinas e poderosas, tornando-as tão familiares quanto possível e, ao mesmo tempo, torná-las novamente estranhas.
Há uma palavra em inglês perfeita para esta obra, e que deve ser entendida quer no seu sentido corriqueiro (“fixe”, “cool”, etc.) quer no seu sentido profundo (de “espanto sublime”): awesome.
assim de repente fez-me lembrar o trabalho de olivier schrauwen, também muito interessante.
ResponderEliminarÉ uma boa aproximação, sem dúvida, se bem que a abordagem de Schrauwen me pareça mais "formal", e menos expressiva. Mas o tratamento da cor, e a liberdade de composição é similar, de facto.
ResponderEliminarObrigado,
Pedro