Gaylord Phoenix é um objecto difícil de categorizar em adjectivos que nos permitam explicar-lhe os horizontes habituais de expectativa. É um livro de art comix, por um lado, mas por outro uma saga de ficção científica/high fantasy relativamente linear. É uma narrativa cujos elementos são muito fáceis de identificar e devolver numa sinopse mas a sua forma altera a maneira habitual com que eles são manipulados. É um livro que tem uma faceta estranha, contemporânea, disruptiva, mas que a ancora numa tradição nítida e convencional.
Tendo sendo publicado sob a forma de fanzines, este volume reúne toda a saga e torna-a acessível a um público mais alargado. Essa, na verdade, é uma tendência verificada em vários sectores contemporâneos dos mini-comics norte-americanos, que têm acesso à colecção através de toda uma série de plataformas editoriais independentes pequenas, mas mais dadas a projectos que dificilmente se encaixam nas categorias já previstas quer no dito circuito mainstream quer no alternativo (falamos de selos tais como Secret Acres, mas também AdHouse, Wow Cool, Koyama Press, mas também a britânica NoBrow, entre tantas outras).
Como já havíamos apontado a respeito de Forming, este livro integra-se nessa tendência, então, de estratégias expressivas e comerciais, cada vez mais visível e influente. Nela, misturam-se pressupostos da banda desenhada mais convencional (em termos de género, narrativos, de elementos episódicos, etc.) e da alternativa (uma atenção particular para com a camada formal e estilística da banda desenhada em detrimento de uma fluidez maior, temas dissonantes à homogeneidade, etc.). De facto, verifica-se em Gaylord Phoenix uma mistura estranha entre a experimentação formal, inclinações independentes mas também elementos temáticos e narrativos afectos ao mainstream (a ideia de aventura, as cenas de luta, gradualmente mais complexas e difíceis, a estrutura devedora quer à ficção científica quer à high fantasy). E, o franco processo de queering up destes temas e configurações é provocador.
Este é um livro, a um só tempo, belo, divertido e comovedor. Seguimos a vida de uma personagem que explora a superfície de uma paisagem fantástica mas que é atacada por uma criatura feita de cristal, que o infecta com uma doença, a “bloodlust”. No entanto, esta apenas se manifesta no momento em que o protagonista se abandona ao prazer sexual. Ele encontra uma outra personagem, pela qual se apaixona, mas a tal doença transforma-o numa versão facínora de si mesmo que trucida o amante, e o põe em fuga. O livro mostra não apenas a tentativa do protagonista, Gaylord, depois transformado em Phoenix, de “curar” a sua condição violenta, como a de recuperar o seu amado, mas igualmente o progresso desta personagem secundária, na sua descida aos infernos e envolvimento com outras personagens. As interpretações poderiam seguir por aí… Uma fábula em torno do amor, que tanto desperta o que mais de doce e suave existe em nós como o mais violento, sobretudo o “monstro verde” do ciúme? Ou simplesmente de uma espécie de raiva que pode advir da satisfação sexual? A eterna batalha maniqueísta entre Eros e Thanatos? Ou, possivelmente, algo que se relaciona com a vida sexual, mas igualmente clínica e política, dos homossexuais?
Como se depreende do título, da descrição e das imagens, os dois protagonistas são masculinos (mesmo que haja aqui uma exploração de questões pós-sexuais e pós-humanas, mas que também podem ser vistas como típicas da fantasia). É nesse sentido que o livro assume características abertamente engajadas com a ficção LGBT - isto é, em que o tratamento, a perspectiva, a contextualização das personagens e das histórias seja sensível à vivência das pessoas que partilham essa sexualidade, e não somente uma utilização de temas ou personagens “homossexuais” (ou de outras sexualidades) por razões de choque, exploração mediática ou pura e simplesmente para criar humor ou, pior, ódio, baseado em estereótipos vazios (infelizmente, a nenhuma destas situações a banda desenhada é alheia). Por vezes, o apodo “literatura” ou “banda desenhada gay” (ou lésbica, ou trans, ou do 3º sexo, ou outras modalidades por vir) é vista com alguma resistência, num entendimento, algo pateta, da sexualização do próprio meio de expressão. Mas não é o que está em causa. Trata-se antes em permitir uma categorização temática - com todos os perigos que isso pode acarretar - em torno de preocupações específicas e que não têm a veleidade de se pensarem “universais”, o que outros títulos, porém, precisamente por serem cegos ao campo normativo de que partem e onde vivem, querem sempre almejar (Tintin e Tarzan, Astérix e Batman). O perigo é relativamente claro: se a sua descrição enquanto tal pode permitir uma distribuição em canais específicos - por exemplo, uma prateleira numa livraria generalista - ao mesmo tempo pode surgir como impedimento a que seja lido e tratado por leitores “fora desse campo”.
Será esta uma perspectiva errada? Que tipo de recepção terão Maurice Vellekoop, Alison Bechdel, Roberta Gregory, Howard Cruse, nos seus trabalhos mais sexualizados? Não será diferente das expectativas relativas à banda desenhada erótica e/ou pornográfica “heterocêntrica” ou “heteronormativa”? Mesmo que procurem uma diferença mínima, como a Bd Cul? Não se fazem homenagens a “mestres” como Manara e Serpieri mais rapidamente que a Tom of Finland em contextos alargados, e não “de nicho”? E se pensarmos em títulos como Shirt Lifters ou Girlfiend?
Queer começa por ser uma palavra associada ao “desvio”, o que pressupõe desde logo uma norma. Mas se essa palavra teve um momento ofensivo, ela foi apropriada pelos próprios homossexuais (ou pessoas noutras configurações sexuais não-hegemónicas ou não-normativas) para destrinçar a sexualidade dos determinismos biológicos, e sublinhar os constructos sociais que imperam sobre a identidade da pessoa e sua sociabilização. Acima de tudo, a palavra visa expressar um combate à categorização e uma abertura do fragmentário, poroso e fluido. O facto de Edie Fake se apropriar de uma aparente novela fantástica mas colocar nos papéis actanciais personagens declaradamente masculinas e homossexuais cria de imediato um curto-circuito na normatividade desses mesmos géneros narrativos, usualmente subsumidos a perspectivas heteronormativas, quando não homofóbicas, sexistas, misóginas (estejamos a falar de Flash Gordon, Barbarella, Wanya, Valérian ou a trilogia Nikopol, e até Astro Boy). Isto não significa que não existam narrativas no interior destes géneros que busquem outras configurações ou pelo menos outras valências e distribuições dos papéis (pensemos em Colleen Doran com A Distant Soil, no breve Adventures of Crystal Night, de Sharon Rudahl, ou até o recente Saga de Brian K. Vaughan e Fiona Staples), mas ainda existe uma clara distinção entre norma, pequena negociação e transgressão. Gaylord inscreve-se na terceira classe.
A desestabilização que a distribuição de papéis da teoria queer propõe ou estuda encontram-se presentes na maneira como o protagonista sofre e se sente ameaçado pela força que lhe é interna, a tal doença, que pode ser vista tanto como infecção como fantasma. Se nos é permitido o reparo, perguntamo-nos se não haverá aqui uma claríssima referência à “saga da Fénix” dos X-Men de Claremont? Mas a disrupção criada por Fake é também interior à própria expressão da sexualidade. Não estamos aqui a ler um livro cujos temas abordem as relações homossexuais na nossa sociedade, quer vistas da perspectiva dos obstáculos sociais e políticos que se enfrentam (como no caso do já clássico Stuck Rubber Baby ou no Journal de F. Neaud) quer na da celebração alegre (outro significado original de “gay”) da sexualidade (por Tom of Finland, por exemplo). A dimensão da ficção e dos elementos típicos de certos géneros torna-a mais “universal”, naquele sentido de texto legível para fora das fronteiras que se lhe quisessem impor.
Na sua tese publicada, La bande dessinée et son double, Jean-Christophe Menu discute a noção da “erosão progressiva das fronteiras” em relação à banda desenhada, território o qual, sobretudo nos tempos presentes, em que já não se trata de uma linguagem de massas, mas antes uma disciplina atomizada em diversos campos sub-culturais, ela se encontra aberta à contiguidade com outros campos artísticos. A banda desenhada, escreve Menu, “quando não se contenta em se imitar e se digerir a si mesma [o que ocorre em larga medida no seio dos territórios mainstream, alegres em repetir fórmulas ad aeternum], sabe-se abrir-se a muitas outras disciplinas, bebe de outras experiências, e, abrindo-se a outras coisas, desdobra-se”(pág. 366). Fake mistura saberes que vêm da tatuagem, da ilustração, do desenho livre, da música, da composição tipográfica, da colagem, do détournement de materiais gráficos de várias origens, e emprega tudo no propósito narrativo desta saga de Gaylord Phoenix.
Parte da transfiguração sexual operada nestas páginas deve-se à estruturação das imagens, à composição das unidades de acção, que dispensam as vinhetas marcadas e antes se apresentam em pranchas livres. Algumas cenas, por exemplo, são sexualmente explícitas, mas sem serem pornográficas, uma vez que a sua forma de apresentação procura menos efeitos de realidade e sugestão sexual do que a expressão da união carnal mas também espiritual entre as personagens. Esta prancha, por exemplo, fora do seu contexto poderia ser vista como uma composição visual geometrizante, e recordará os exercícios formais de Trondheim em La Nouvelle Pornographie, mas onde o autor francês era sugestivo de facto, aqui a cena explícita acaba desprovida e ganha outra dimensão, mais formal talvez.
O objecto-livro, na sua materialidade, é muito belo. O arranjo da capa (assim como as das versões originais), a organização dos cadernos, a utilização gradual de uma segunda cor, a alteração desta mesma cor, o uso de padrões e estratégias decorativas, a paginação, etc., concorre para a tal dimensão estética formal que tanto respeita a contemporaneidade visual, mais do que um mero programa narrativo-figurativo. Porém, a escolha de ter algumas imagens em duas páginas, e mais, o fulcro da acção no centro da mesma, coordenada com a encadernação - tradicional, com oito cadernos dobrados e colados à espinha - é feita de uma maneira que nos impede de ver a imagem completa, o que é senão, e muitas vezes é até um momento importante em termos da acção.
No cômputo final, talvez o prazer da leitura de Gaylord Phoenix não e encontre exclusivamente na apreciação da sua história, nem das suas imagens, nem tampouco no próprio objecto - ainda que cada elemento, assim destacado, tenha os seus fortes. Encontrar-se-á antes na constatação de uma nova diferenciação e negociação entre os géneros da banda desenhada, as categorias artísticas, os supostos “mundos”, e o modo como demonstra que o trânsito é de facto cada vez maior, diversificado e inevitável, em nome do desenvolvimento descontraído desta área de expressão.
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