Sempre que um novo projecto de Joann Sfar arranca, e é com alguma regularidade que isso acontece, temos uma dupla sensação paradoxal: por um lado, a frustração de não vermos continuidade nalguns dos seus projectos interrompidos, acima de todos Les Olives Noirs, por outro, uma espécie de contentamento - que tem de ser confirmado pela leitura - de ver a possibilidade que o autor conquistou de dar a lume a miríade de projectos que consegue levar a cabo.
Os interesses de Sfar têm sido mais ou menos conduzidos, a um só tempo, por linhas de força e temáticas coerentes mas procurando contextualizações diversas, que compõem de uma maneira mais variegada esse mesmo projecto. Falamos, por exemplo, de uma certa pesquisa da herança judaica na cultura francesa, o papel que a cultura francesa tem na construção da Europa multicultural contemporânea e a forma como o pensamento filosófico (que compreenderá a religião, a política, o social) pode ser exercido quer através dos discursos intelectuais quer através das acções efectivas dos cidadãos. E tudo isso expresso por formas muito características da banda desenhada de Sfar.
No que diz respeito à metodologia gráfica de Sfar, este livro continua a seguir a sua abordagem “caligráfica”, como temos repetido, mas desta feita nota-se o abandono das pranchas regulares 2 x 3, por uma abordagem bem mais flutuante, que faz uso dessa fórmula, mas por vezes procura outras variações, como a de três vinhetas a todo o longo da página sobrepostas, criando como que pequenos nódulos ou “estrofes” temáticas: uma vez que o livro parece vir a ser estruturado em torno de um trio (e trata-se de uma trilogia, julgamos), temos momentos dedicados aos pensamentos íntimos e solitários dessas três personagens.
O autor inventa um casal aristocrático burguês fictício, mas seguramente que se baseando em figuras reais da época: o marido, um proprietário de um negócio dito do “triângulo da escravatura”; a mulher, a condessa do título, uma alma dada aos prazeres da carne, à libertinagem luxuriante e às fantasias delirantes através das belles letres, ainda que privadas; e uma criança da África negra, oriunda de um dos muitos territórios que serviam para colher mão-de-obra escrava… (se os próximos títulos da série, “Alarmé” e “Antinôme”, fazem imaginar uma distribuição equitativa destas personagens pelos álbuns, uma negociação sempre eficaz em Sfar entre as fórmulas clássicas e a abordagem contemporânea, no interior deste livro há uma atenção distribuída pelos três, ainda que com um foco maior na condessa).
No entanto, enquanto este triângulo não se consolida, a matéria desta série é abertamente a história da escravatura na França iluminista. Aquela prática económica dita do “triângulo” consistia no tráfico de escravos, sobretudo negros africanos, angariados pelos negreiros situados nos vários portos africanos (colónias das metrópoles europeias - e se o livro de Sfar se centrará na realidade associada a França, a Portugal não faltam exemplos), para as Américas, pagando não apenas com dinheiro, mas igualmente têxteis manufacturados, álcool e até armas, e depois recebendo das Américas produtos agrícolas tais como açúcar, algodão, tabaco, e por aí fora, cujo lucro na Europa seria substancial. Mas a esse “triângulo” também se poderia chamar de “círculo”, não só vicioso como vergonhoso historicamente - e pouco adianta dizer que “foi a história” ou “era o espírito do tempo”, ou querer comparar com toda a história da escravatura desde a Antiguidade clássica ou mesmo com os casos reais e que não têm outro nome, que ainda hoje ocorrem em certos países e certas indústrias (os curtumes na Índia, por exemplo, ou no Brasil). No entanto, esta personagem parece ter alguns laivos de consciência quando descobre uma jovem criança, escrava, que conseguiu escapar ao trânsito entre continentes e chegar a França. Na ideia do proprietário, que se entrega a alguns exercícios filosóficos, tem de se procurar um equilíbrio, e chega mesmo a ponderar se não seria mais equitativo também entrar no negócio dos escravos brancos com os Turcos, ou procurar uma “escravatura de rosto humano”, o que não deixa de ser uma contradição de termos. Aliás, o diálogo que vai tendo com o seu funcionário, o qual mete as mãos na massa e compreende toda a máquina económica envolvida, é palco de uma espécie de triste comédia, em que o simples pragmatismo do embarcador (julgamos ser essa a sua função) acaba por ser mais realista, apesar de horrível, do que o idealismo absoluto utópico do proprietário do negócio, o qual, mais tarde, ainda exacerba esse paradoxo: por um lado, acredita piamente que não precisa de abdicar do seu negócio (e fortuna) - essa ideia é da mulher e é vista como “uma ideia feminina” -, podendo antes combater as condições da escravatura através das “letras filosóficas”, por outro, pinta-se de preto com graxa e fica fechado uma noite num baú (com os títulos da companhia!) para melhor “conhecer” os escravos, “parecer-se” com eles…
A parte de leão do livro, porém, é dedicada à personalidade da condessa (até pelos "complementos" no fim do livro, pranchas ou episódios adicionais, estudos de personagem, etc.), que se abandona a sonhos acordados, affairs sexuais com um dos ajudantes de cozinha, e à escrita de diários lascivos e fantasiosos, os quais poderão tornar-se matéria fictícia da herança libertina da França da época. Parte da fantasia da condessa é imaginar - ou será real no interior da ficção do livro? - um minúsculo mosqueteiro, que lhe serve de duende para todo o serviço. Os leitores de Sfar reconhecerão nessa brevíssima descrição a menção de uma personagem de alguns dos seus títulos anteriores, permitindo assim a ideia de um retorno à prática do autor de construir um pequeno universo fechado de referências e personagens, que já não explorava há muito.
Além disso, a vida da criança, até agora sem nome - apesar de ser chamada de “bom selvagem” pelo proprietário, leitor de Diderot e embebido nesse ideal eurocêntrico - é também explorada, se bem que mais esquematicamente e, apesar de ser uma espécie de parêntesis abrindo o volume, à margem da expressão das demais personagens: a narração é feita pela criança, mas sob a forma de legendas, não de balões de fala, o que pode ser interpretado de duas maneiras: ou a de que não tem direito ao mesmo tipo de “voz” das outras personagens (apenas a conquista brevemente no fecho), ou a de que se tratará de uma procura por uma diferenciação da sua experiência, uma vez que diz respeito ao “passado”, à “memória”. Veremos com o desenvolvimento da série.
Sfar cita toda uma série de livros que lhe serviram de fonte e de inspiração, para criar um enquadramento cultural que tanto se pautava pela mais burilada das poesias e dos discursos profundos como pela consciência de que certos direitos básicos não eram existentes. São três grandes grupos que apresenta: textos académicos, textos clássios contemporâneos da época retratada, e ficções nossas contemporâneas que abordam a mesma era, inclusive uma obra maior da banda desenhada dos anos 1980, Os Passageiros do Vento, de François Bourgeon, que aborda as mesmas questões num estilo bem diverso do de Sfar.
Recordemo-nos que é nesta época que se vêem surgir dois documentos fundamentais para a emergência de uma mentalidade que poria fim a toda uma série de tiranias vistas como eternas e “inevitáveis” (para empregar uma palavra muito em voga pelos políticos hodiernos), a Bill of Rights de Jefferson e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, associada à Revolução Francesa. A leitura da recente banda desenhada biográfica Olympe de Gouges, sobre a autora da Declaração dos direitos da mulher e da cidadã (dois anos depois do documento francês citado) e anti-esclavagista, pela dupla Catel e Bocquet, é um excelente bloco da mesma matéria para ser lido em conjunto com este(s) volume(s) de Sfar. De certa forma, no seio da banda desenhada, constituem contra-narrativas numa tradição que tem uma pesada “herança colonialista” (para citar o estudo de Mark McKinney sobre a banda desenhada francesa), e que ainda hoje surte os seus efeitos, como vimos a propósito de Tintin. Logo, são gestos necessários. Até certo ponto, em Portugal, a questão da escravatura sempre foi desvalorizada mesmo pela historiografia, senão mesmo escamoteada através de vários mitos, como aquele do “bom colonialismo”. E a cultura popular - em que a banda desenhada se pode parcialmente integrar - raramente aborda esta questão, apesar de termos uma história rica em exemplos (bastará pensar na população descendente de africanos no século XVIII em Lisboa, o Marquês de Pombal, a Madeira). Aqui fica um exemplo.
Sem comentários:
Enviar um comentário