Serve o presente post para indicar aos leitores do lerbd que está patente no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian uma exposição de Jorge Varanda, até 2 de Setembro de 2012. A exposição intitula-se Pequeno-almoço sobre cartolina, partindo de um dos (não-)desenhos incluídos na mesma. A razão pela qual alertamos para isso deve-se ao facto da comissária desta exposição, Lígia Afonso, ter tido a amabilidade e tomado o risco de nos convidar para escrever um texto, presente no catálogo, a propósito de As Quatro Gémeas, fanzine de 1979.
Jorge Varanda foi aquilo que se pode chamar um polimata. Tirando partido de qualquer material, por mais “baixo” que parecesse, que tivesse à mão para dar corpo à arte que criou, as disciplinas atravessadas e os objectos criados são múltiplos: a exposição contempla pintura sobre papel e madeira, desenhos, biombos recortados e pintados, e aquilo a que se poderia dar o nome de instalações, assim como de filmes de animação (que importa ver com tempo, atenção e instrumentos específicos que ultrapassem as notórias limitações técnicas e lhes perscrutem o “espírito”). A banda desenhada - Varanda participou numa série de projectos e publicações, como o jornal Se7e e a revista Lx Comics - era um dos outros ingredientes, e ela não é tratada como suplemento nesta exposição, mas, bem pelo contrário, parte integrante. Mais, ela é tratada respeitando a sua especificidade expressiva: sendo o catálogo uma espécie de caixa com vários fascículos, cada um deles apresentando uma série de trabalhos mais ou menos unificados por um princípio material ou configurador, revelando desde logo a noção de série, narrativa, unidade, do autor, um deles é um fac-símile preciso desse mesmo fanzine.
Transcrevemos o parágrafo que torna clara a condição de produção: “A encenação, marcada por uma relação de proximidade com o teatro e a sua escrita, ganha um lugar de destaque na produção de Jorge Varanda. A propósito da peça Ninguém (1979), posta em cena por Ricardo Pais para o grupo Cómicos a partir de Frei Luís de Sousa, Varanda realiza uma banda desenhada homónima que integra o boletim editado aquando da exibição daquela no Teatro da Trindade, e que foi posteriormente publicada no semanário SETE. No mesmo ano, Varanda publica As Quatro Gémeas, banda desenhada gore que parte do texto integral da peça de teatro de Copi e da respectiva tradução de António Barahona, cuja realização teria decorrido de uma encomenda do encenador Victor Garcia para a publicação simultânea (que não ocorreu) à estreia da peça levada à cena pela Empresa Sérgio de Azevedo, em 1977 (com Eunice Muñoz, Vicente Galfo, Graça Lobo e Carlos Cristo).”
Teresa Gouveia, na breve introdução institucional do catálogo, fala de “contaminação”, mas a transversalidade presente na obra de Varanda parece-nos mais da ordem da expressão de facto - ele fê-lo assim porque assim o deveria ser - do que da ordem de uma programação e emprego de elementos, estruturas ou estratégias de uma linguagem sobre outra. Isto é, tudo isto faz parte da natural respiração artística de Varanda. Lígia Afonso, na nota biográfica, emprega mesmo a expressão “sistemas combinatórios”, visível de peça para peça, na manipulação a que algumas delas convidam (biombos, telas tridimensionais, com peças móveis ou destacadas, com ambos os lados pintados, pequenos puzzles, teatrinhos de papel, etc.), mas também pelo toque de exacerbação constituído pelo desenho do espaço da exposição e pela estratégia visual de montagem do catálogo. Se a primeira permite mesmo que a navegação do espectador se torne um potencial acto de “leitura contínua” e, por isso mesmo, se transformem todos os elementos apresentados como parte de um texto contínuo, os fascículos do catálogo, para além da sensação de série coesa, como afirmámos, permite outros jogos ainda de combinatória, ou até de contaminação, de desejarem. De resto, a própria configuração temática, que voga por entre espaços domésticos e cheios, misteriosos e modernos gabinetes de curiosidades, labirintos e espaços fechados sobre si mesmos, espaços urbanos mas reminiscentes de pequenas vilas, convida a esta ideia de concentração.
Há, pensamos nós, uma sensação de que as personagens que habitam todas estas imagens se passeiam entre elas, se cruzam, dialogam. Tal como Varanda parece ter sido adepto da respingadura, do reaproveitamento, da recondicionação (hoje falar-se-ia de “reciclagem”, o que não era de todo a despropósito), da reformulação dos objectos, também as suas figuras parecem ter ganho uma espécie de autonomia ideal que lhe permite reaproveitá-los em situações diversas. Personagens com volume, com história, portanto. Talvez esta seja, porém, o nosso próprio olhar “contaminado”, formado a partir da banda desenhada, sobre todo o corpus apresentado.
O nosso texto é tão-simplesmente uma close reading d’As Quatro Gémeas (aqui usamos imagens do zine original). Uma peça teatral de um outro autor, também de banda desenhada, Copi, através de uma tradução e de “actores de papel”. O objecto circulou num grupo reduzido de amigos, em dois formatos diferentes (A3 e A4), e tentamos estudar o que significa esse “gesto caseiro”, como escrevemos, em termos de linguagem estética, materialidade, e veículo expressivo, que relação estabelece com as temáticas, as figurações e a sexualidade do texto de Copi, e outros trânsitos específicos à banda desenhada. Este pequeno melodrama acelerado e celerado de um acto, que envolve quatro mulheres cujas interrelações são desde logo problemáticas em termos de interpretação, tiram partido de uma violência tragicómica que ganha uma força inesperada nos desenhos a preto-e-branco e Varanda, devedor em alguns aspectos a Crepax, neste trabalho em particular (a nível da figuração, mas sobretudo na composição de página, pequenos pormenores técnicos, no uso da matéria verbal, etc.), mas encontrando uma voz muito própria.
Apesar de menções esparsas a este livro em livros de referência, As Quatro Gémeas não faz parte de um imaginário vivo na historiografia da banda desenhada portuguesa - já de si circunscrita em muitos aspectos e com obstáculos ainda a ultrapassar. Como perguntamos no nosso texto: “O que é tem lugar quando vemos pela primeira vez publicamente uma obra com décadas de idade? Poderá ela integrar-se numa tradição histórica retrospectivamente se não se havia inscrito nela a tempo?” Esta é uma obra dessassossegada e irrequieta que importa recuperar e integrar de pleno direito na história contemporânea da banda desenhada portuguesa, até pela dimensão de abertura e transversalidade que ela apresenta - isto é, expandindo a própria ideia e campo social da banda desenhada. É possível que a exposição de todas estas obras torne o nome de Varanda novamente num factor a ter em conta no pensamento da arte do seu tempo, e esperemos que pelo menos este seu título passe a ser igualmente redivivo.
Aproveitamos ainda para mostrar um pequeno fanzine, intitulado História da Digestão, publicado pelo Ministério da Educação (portanto, um instituizine?), possivelmente datado de 1989, criado a propósito de um programa sobre alimentação saudável. A história, pedagógica, foi escrita por Jorge Varanda e Isabel Loureiro, e desenhada por Alice Geirinhas, que se acabara de formar na ESBAL. Apenas um conhecimento mais profundo da obra de Varanda revelaria se se trata de um trabalho meramente - e literalmente! - alimentar, ou se há elementos que permitam entender em que medida se integra na continuidade. Mas serve esta breve menção pour prendre date.
Nota: agradecimentos a Lígia Afonso, pelo convite que nos estendeu, e ao CAM/CG, por tudo o resto; a Alice Geirinhas, pela oferta do História da Digestão.
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