Temos repetido neste espaço, não sem alguma frustração, a observação que temos feito ao longe do desenvolvimento do mercado brasileiro da banda desenhada, não só em termos de traduções e de diversidade de frentes, como no surgimento de toda uma nova geração de autores, que atravessam vários géneros e estilos e humores com uma descontracção muito contemporânea, como igualmente a presença de agentes - editoras, sobretudo - que permitem alguma circulação dessa mesma produção. É possível que haja obstáculos, dislates e problemas, mas num breve contraste com Portugal, não deixa de provocar algum desejo de que pudéssemos seguir algumas das pisadas ali verificadas. (Mais)
Memória de elefante é uma autobiografia do ilustrador e autor de banda desenhada Caeto, pautada por muitos dos instrumentos que têm constituído este género relativamente recente nesta arte, e marcada, não tanto em termos de influência, mas de condições de possibilidade, que a banda desenhada moderna e contemporânea norte-americana permitiram nesse mesmo campo. Pelo menos desde Harvey Pekar, a aliança entre o quotidiano e a aparente vida banal do comum dos mortais como sendo palco de uma vida que é singular, capaz de tecer fábulas e retratos da sociedade em que se vive. Caeto, habitando uma São Paulo boémia mas quase indigente, veste esse papel. No entanto, haverá margem para a entrada de linhas temáticas e de vivências “menos comuns”, por assim dizer, que são exploradas no livro.
A história é atravessada por algumas elipses, por isso não estamos aqui a testemunhar um intervalo de tempo concentrado, mas antes um percurso mais ou menos contínuo do protagonista. Os capítulos não seguem também uma direcção unívoca, mas permitem que troços da vida do protagonista se espraiem de acordo com uma organização particular, que têm a ver com a memória humana. Cada episódio surge por ser desperto por outro. Estando todo o passado disponível à nossa memória, e à sua, mesmo que parcial, re-experiência, pode cada bocado relacionar-se com outro, trazendo assim uma nova lição. No entanto, a opção de desarrumo temporal no livro presente, aliada igualmente às estratégias visuais e composicionais, às quais voltaremos, impõem uma certa velocidade que impede momentos de pausa e reflexão interna, e aquilo que se adivinhava como núcleos de grande carga emotiva - tal como a última vez que vê a avó (mas perguntamo-nos se não estaremos demasiado influenciados por um tratamento mais dramático de uma relação similar em Persépolis) - é dissipado no ritmo da narrativa. Sensivelmente depois de metade do livro, quando somos relançados no “presente” em que havíamos começado o livro, os intervalos diminuem e há uma maior concentração do dia-a-dia, alterando muito as características do que havíamos lido até então, sobretudo por essa “segunda parte” se concentrar na relação de Caeto e o seu pai. Essa alteração de ritmos, essa existência de dois “blocos estratégicos”, porém, não é de todo negativa, e até poderia revelar algumas ligações com as estruturas clássicas da épica (começo in media res, divisão episódica, regresso ao “presente do narrador” e relançamento da narrativa, finalmente no imo da sua questão principal, em direcção ao desenlace). Frank Kermode, em The Sense of an Ending, explana o modo como a estrutura narrativa convencional, de princípio-meio-fim, funciona: o fim cria ressonâncias com o princípio como modo de esclarecer as resoluções finais, re-iluminando os elementos apresentados então, e oferecendo no fecho um qualquer sentido de progresso ou de revelação. Ora, apesar da matéria narrativa de Memória de elefante ser dolorosa e, nalguns momentos, desorientadora, Caeto acaba por impor uma estrutura clássica, límpida, que a impede de ser tornar melancólica em excesso.
Na página 39, vemos uma imagem em que a cabeça do autor se abre com ímpeto (veja-se a mola esticando-se e a porca voando), libertando toda uma série de pensamentos. O último diz: “queria ter com quem dividir os meus pensamentos”. Ora é precisamente esse o propósito do livro, que não apenas serve de palco para expor - de uma maneira que imaginamos ser genuína ou pelo menos próxima das sensações e experiência do próprio Caeto - os acontecimentos, mas o que de mais íntimo ele experiencia mas não partilhava com os demais. A integração no plano de composição dos balões de pensamento é mesmo uma forma ficcional clara a eficaz de “revelar” esses segredos ao leitor, e apesar de haver esporádico acesso ao pensamento de outras personagens, como Ulisses, com quem divide o apartamento (mas membro responsável pelo arrendamento e as tarefas mais consolidadas), essa intromissão na cabeça de terceiros serve mais para tornar fluida e esclarecida a narrativa do que para explorar as consequências do pensamento, que se centram no próprio Caeto. Veremos, porém, que a melancolia a que fazíamos menção se encontra num equilíbrio precário entre distanciações e proximidades que o autor opera, o que é algo de muito próprio nste tipo de narrativas que expõe “a cru” a pessoa do autor.
A dimensão do confessionalismo bruto - as relações com amigos; as conquistas sexuais; a relação física com uma namorada, Cristina, mas o coração batendo por outra, Adriana; o que pensa dos outros; o “chiqueiro” em casa da família do amigo Shaquil, onde vive; a deterioração da saúde do pai com SIDA, e as rememorações da difícil relação com ele, e que passam mais tarde pela exploração da vida sexual explícita dele; e até a forma como Caeto entende o seu próprio alcoolismo crescente e suas consequências, e tentativas de “reforma”, etc. - é respeitada ao longo do livro, e em parte esse é sempre um perigo para a vida real, quotidiana dos autores que optam por estes registos. A discussão (descoberta, interpelação, negociação) da homossexualidade do pai, por exemplo, é um dos pontos mais significativos na formação da personalidade do Caeto-personagem - isto é, menos interessará a vida real do autor, do que a maneira como a personagem do livro se vai formando aos olhos do leitor nesse confronto - e que pode, conforme a leitura e posicionamento dos leitores, ser vista sob vários valores. Mas talvez o mais importante seja o facto de que o que nasce dessa forma é-lhe próprio, e caberá ao leitor, não aceitar ou rejeitar, nem sequer compreender, mas antes criar um elo de empatia e, então, lê-lo, escutá-lo, até ao fim. Isto é, o leitor não deve confundir o autor real com aquilo que lhe é proposto através da obra de arte – mesmo que esta se arrogue de um “valor de verdade”, como é usualmente o caso da autobiografia -, e deve respeitar essa distância à matéria precisamente para dela se aproximar.
Isso torna-se visível também em termos figurativos. Neles, há um domínio suave da anatomia, dos movimentos e da expressão, que recorda Matt Madden de uma forma superficial, se bem que a mão de Caeto seja mais trémula, e por isso insufle um certo nervosismo ou particularidade manual (um “lust for life”) de que o autor norte-americano abdica na sua busca consciente, quase científica, dos efeitos da banda desenhada. Há também uma quase permanente distância de focalização em relação às personagens, que nos são ofertadas em planos americanos, e muitas vezes isolados numa auréola de luz, como se estivessem num pequeno teatro, mas há alguns outros momentos em que se fazem planos mais aproximados, insuflando algum movimento no olhar, mas sem jamais permitir uma intimidade demasiada com as mesmas. Como se se tratasse de um mecanismo de impedimento à abusiva identificação do leitor, importando antes um diálogo respeitoso com aquelas personagens. Há, portanto, um estranho equilíbrio no tom confessional, íntimo (marcado pelo acesso aos balões de pensamento), e também doloroso que perpassa pelo livro, sobretudo a última parte (em torno da morte do pai), e a distância a que o autor nos obriga em termos visuais. Mas, de novo, é esse o fito da empatia: criar uma distância de um braço, digamos assim, que nos afasta, mas ao mesmo tempo nos toca. Repitamos, não se pretende que o leitor se misture, mas se aproxime respeitosamente.
O autor segue, na esmagadora maioria do livro, uma grelha regular de 2 x 3 vinhetas, dando assim a sensação de uma progressão inadiável dos acontecimentos, ainda que haja pequenos desvios ora de fragmentação adicional (explicando um gesto, um diálogo) ora fundindo para construir um panorama maior (na tipologia de Chavanne, falar-se-ia de pranchas irregulares). Essa centralidade organizativa com os seus pequenos mas significativos desvios também se espelha nas oportunidades - que imaginamos não serem ficcionadas - em que a rede de relações de Caeto com outras personagens, por mais leves ou secundárias que pareçam ter sido nas suas primeiras instâncias (como, por exemplo, com uma proprietária de um alfarrabista, ou sebo, para a qual trabalhará mais tarde), se expande mais tarde, e assim vai revelando a gravidade que as faz, às personagens, voltar a convergir e que cria uma malha apertada de coincidências e até de um certo conforto, em se saber viver numa cidade em que existe referências seguras, como lugares ou abrigos aos quais retornar. Aliás, a metáfora, parcimoniosamente repetida, de um elefante que marca os contornos fechados da cidade, sublinha essa condição.
Ainda voltando a Madden, Caeto também emprega, aqui e ali, outros pequenos jogos visuais que realizam na imagem a metáfora verbal expressa. A esmagadora maioria delas está de facto subsumida à expressão verbal, e não ganham uma autonomia visual que viesse a ser explorada materialmente, mas ainda assim servem de pequenas inflexões ao ritmo inexorável dos acontecimentos, e de mais um outro grau de distanciamento irónico. Ainda que possam ser vistas como formas não-narrativas, o modo como suplementam a representação narrativa não é particularmente disruptiva ou contestadora, mas são locais de tensão. Em contraste com a pintura de Caeto - que tem lugar na história, ora “traduzida” em desenhos ora sob a forma de colagens, mas sempre lhe sonegando a camada cromática -, que parece ter uma abordagem mais próxima da apropriação, da assemblage, e pela busca de efeitos formais, quase pareceria que a abordagem “realista” dos desenhos de Caeto é um esforço para se aproximar da realidade, ou da genuinidade, ou então é uma maneira de distinguir que a pintura é um campo de expressão que não tem de responder ao mundo da mesma maneira. Logo, há no plano de composição uma distanciação entre as duas linguagens artísticas: uma que é alvo de representação na diegese mas não surge como tal (a pintura) a outra que apenas surge tangencialmente – veja-se já adiante - como objecto de atenção na história mas é o próprio plano dela (a banda desenhada).
Outro aspecto já “clássico” nalgumas abordagens à autobiografia em banda desenhada é a inclusão da cena que diz respeito à própria génese ou produção do livro que estamos a ler. No caso presente, essa cena tem lugar sensivelmente a meio do livro, o que poderá indiciar a sua própria assunção enquanto eixo na obra, e provavelmente a vida, do autor. Não deixa de ser reveladora a cena quando Caeto mostra a uma nova namorada, Luana, as três páginas deste mesmo livro, e ela pergunta se ele sabe “como vai acabar”… E quando ele responde “as coisas ainda estão acontecendo…”, essa tautologia ganha uma força significativa. A vida do si, do eu, não acaba nunca, a não ser na morte, e essa impediria uma obra em nome próprio de se formar. Qualquer criação – literária, artística, fílmica, de banda desenhada – que coloque o “eu” no centro da atenção obriga sempre a uma qualquer “torção”, ou “auto-ficção”, como havíamos debatido a propósito de Marco Mendes, ou tantos outros autores possíveis. É uma questão de grau, portanto, a que os autores podem explorar para formar um “fim” nas “coisas que vão acontecendo”: é uma opção, uma manipulação, uma imposição de ordem que ajude não tanto a fazer desaparecer a desorientação própria da vida, mas pelo menos a dar-lhe uma direcção.
Todavia, há igualmente um outro “eixo” em Memória de elefante, mas desta feita, “falhado” ou “ausente”. Quando o pai, sofrendo do avanço da SIDA, débil e deprimido, se encontra num dos piores momentos, Caeto propõe que o seu livro, a sua autobiografia, abra espaço para que o pai conte também a sua história - imaginando-se algo na senda das “memórias dos outros” que foram criadas, magistralmente, por Emannuel Guibert em La guerre d’Alan, ou autores como David B., art spiegelman, Miriam Kaitin, etc. Ainda é tentado um “rascunho”, que ganha imediatamente forma, isto é, no momento “presente” em que o pai partilha a primeira ideia, o leitor tem acesso às transformações visuais que Caeto-o-narrador opera sobre essas palavras (numa cena que desarruma a causalidade temporal, pois podemos pensar serem apenas pranchas imaginadas naquele momento por Caeto-a-personagem, ou traduções de facto tardias – mas em que momento exacto em relação ao tempo da história?; veja-se a segunda prancha neste post). Só que essa linha de desenvolvimento nunca acontece, e fica vincada como uma dobra invisível na obra restante. Uma fenda. É talvez parte dessa ausência, que ganha um peso muito grande, que explica o momento confessado de ficção no fim do livro, um simples gesto, que passa a acontecer no livro, e que mais uma vez representa aquele gesto de braço estendido, que marca a distância mas também o toque. O gesto de Caeto – ficcional, gráfico – passa a “substituir” a sua inacção real (a que alude também no livro, precisamente para a diferenciar desta última). Caeto aponta assim, de modo positivo, para uma possibilidade de “concluir” as coisas, de lhe impor uma ordem e um significado possível. Em relação às críticas que podem legitimamente surgir em relação à crença, trivializada, indolente, culturalmente empobrecida, de que é possível um qualquer fechamento (aquilo que em inglês, quer na literatura quer em termos psicológico se chama de “closure”), Caeto mostra como tampouco se precisa de radicalizar o desespero de se saber que ele é impossível de satisfazer. Isto é, ele apresenta uma negociação que serve de momentâneo e movente consolo, nem que seja apenas no espaço e no intervalo do livro.
Nota: agradecimentos ao autor, pela disponibilização do seu livro em formato digital.
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