À medida que o campo dos estudos de banda desenhada se expandem, complexificam e adensam, veremos multiplicados gestos que parecem desenhar circunferências bastante restritas em termos temáticos. Tal não significa que não haja resultados, metodologias ou até somente gestos de iniciativa que não possam ter repercussões para além dessa aparente circunscrição. É o caso desta antologia de ensaios. (Mais)
Tudo aquilo que comporá o tecido imaginário do Sul dos Estados Unidos é de uma grande variedade e complexidade, e confessemos a nossa ignorância sobre essas particularidades e essa história, o que encurta a nossa própria recepção crítica destes estudos. De Huckleberry Finn a Beloved, de Toni Morrison, de Birth of a Nation a North and South, são muitos os textos que contribuem para essa imagem, e a banda desenhada não é alheia a essa construção, se bem que lhe seja um objecto – mesmo no interior da produção norte-americana – relativamente secundário.
Os editores começam por citar um episódio da saga de Swamp Thing (por Alan Moore et al.), em que a Liga da Justiça, no seu quartel-general em órbita, observa impotente os acontecimentos que têm lugar nos pântanos de Lacroix, Louisiana. É claro que nem toda a banda desenhada, mesmo norte-americana, se resumirá aos super-heróis, mas essa metonímia pode servir de facto de metáfora sobre todo o campo criativo, ou pelo menos uma sua percepção generalizada. Ela parece ser composta sobretudo por narrativas de personagens de grande poder, coloridas e usualmente em contextos urbanos, cosmopolitas e até planetários ou mesmo extraplanetários, ecoando de certa forma as próprias origens da banda desenhada norte-americana como estando associada a órgãos de comunicação tipicamente citadinos como os jornais e as revistas de quiosque. Aliás, a esmagadora maioria da produção é feita por autores urbanos, sendo menos os autores “locais”, mas essa “externalização autoral” poderá, como é informado pelos ensaios, trazer questionamentos pertinentes. Isso não significa que não haja tratamentos, representações ou vozes do “Sul” na banda desenhada, e é precisamente esse o objecto de estudo dos ensaios coleccionados. Estes aliam-se ao que é chamado de Southern Studies, que elegem precisamente temas de representação e vozes deste espaço cultural altamente localizado como foco.
Estes estudos pretendem eleger aqueles textos de banda desenhada que fazem parte quer dessa construção quer da sua renegociação permanente. De tiras de jornal históricas e imensamente populares, como Lil’Abner de Al Capp ou Pogo de Walt Kelly, a outras mais contemporâneas, como Kudzu de Doug Marlette, de séries de comics books ou webcomics que incluam ou se dediquem particularmente a esse “local cultural”, como Swamp Thing, Preacher, Hellboy: The Crooked Man, Bayou, a graphic novels como Stuck Rubber Baby, Incognegro e Nat Turner, mas englobando ainda projectos multimédia como A.D.: New Orleans After the Deluge, de Josh Neufeld, e também considerando a escrita literária de Randall Kenan sob a perspectiva dos comic studies, há uma multidão de facetas presentes nessa visão.
Este Sul indicado no título é uma região particular que compreende uma série de estados da zona sudeste dos Estados Unidos, abarcando aqueles que haviam composto a Confederação – e a maneira intricada como isso se relaciona com a Guerra Civil -, inclusive o Texas, que é visto como espaço de transição para aquilo que seria conhecido por “Oeste” (mesmo que este se tenha transformado no século XX, sobretudo no que diz respeito à Costa Oeste). Isso leva-nos a compreender que, apesar da contínua consideração dos Estados Unidos como um bloco homogéneo e até hegemónico de políticas, internas e externas, e uma forma de representação cultural (“os americanos isto”, “os americanos aquilo”), há uma atomização interna em blocos culturais diferenciados em diferentes escalas, das mais pequenas idiossincrasias (“tribos” culturais) até estes blocos regionais. E neles outras diferenciações, como o “Deep South”, “Bible Belt”, etc. Em suma, mas nada sumária, o “Sul” dos Estados Unidos parece ser uma construção, a um só tempo, histórica – tendo como a Guerra Civil o seu momento axial decisivo -, cultural – pela amálgama especial dos seus povos (nativos, brancos e negros) – e económico-social – ainda hoje o Sul é visto como estando “atrás” nos mais variados indicadores.
Imaginativamente o que é isso implica? Jeremy Love, autor de Bayou, uma fantasia que reemprega não apenas aspectos históricos e definidores da identidade do Sul como ainda elementos provindos do imaginário fantástico local, é citado na seguinte afirmação: “O Sul, em particular, parece ser um local assombrado. Temos uma região coberta de sangue, mas que produz tanta beleza” (apud., pg. 204). Valerá a pena citar, corroborando essa imagem, uma longa passagem de Tara McPherson, de Reconstructing Dixie (recordemo-nos que “Dixie” é um nome pelo qual o Sul é também tradicionalmente conhecido), que aponta para este tipo de conflitos e contradições. Ela comenta ter encontrado num mesmo jornal um anúncio de uma boneca de Scarlett O’Hara, “uma imagem mitificada de inocência e pureza” e um artigo sobre a colecção de fotografias de linchamentos de James Allen, coincidência que é “uma ilustração poderosa da nossa esquizofrenia cultural sobre o Sul”, ao que Nicolas Labarre acrescenta, “uma condição que nos permite idealizar a beldade [belle] do Sul sem considerarmos a violência monstruosa que amparava o seu invejável estilo de vida” (253). Independentemente dos “contrastes” e “contradições” puderem ser detectáveis em toda e qualquer cultura, o que importa é a forma como elas são explicitamente citadas enquanto traço identitário de quem se identifica. E essas tensões que mexem na história da escravatura e da liberdade da música, do voodoo e de um cristianismo exacerbado, de uma ruralidade profunda e da ideia de comunidade, estão à flor da pele em relação a este tecido do “Sul”… Apesar de Brian Cremins se referir somente ao pântano de Okefenokee e espaços circundantes na tira Pogo, o que ele chama de “geografia imaginada” (30) poderia ser adaptado e todo o espaço do Sul aqui estudado, inscrevendo-se na perfeição, apesar das qualificações necessárias, naquela outra noção de maior fortuna de “comunidades imaginadas”, cunhada por Benedict Anderson (que não é nunca citado, porém).
Por exemplo, as questões da oralidade reforçam essa “comunidade” (e, pelos vistos, isso tem uma grande importância no estudo das ditas “narrativas de escravos”, assim como do encontro entre memória e história de muitos dos escritores ou artistas considerados), bastamente sublinhadas por críticos e leitores em relação à cultura deste espaço, são colocadas em questão por Katherine Henninger (Ordering the Façade, citada por vários dos ensaístas), a qual, estudando fotografia, mostra como há uma “cegueira aspectual” em relação à visualidade dessa mesma cultura (particularmente sentida pela forma como se dá importância a dicas visuais, desde a cor da pele à textura dos cabelos ou formas de vestir e mover o corpo). Mas isso vai ainda mais longe, uma vez que quer a oralidade quer a visualidade desta cultura abarca construções influenciadas por linhas de “raça” e de “sexo”, e suas implicações com o poder, o seu exercício e sua naturalização. Percebe-se, portanto, como isso se torna produtivo no campo da banda desenhada, não apenas meio visual com particularidades analisáveis, como capaz de moldar aspectos orais de uma forma muito especial (revisitem-se os diálogos de Walt Kelly para Pogo, ou a forma como as lendas locais informam Swamp Thing e Hellboy, etc.).
Cremins também pergunta em que medida é que um artista passa da “caricatura para o estereótipo” (31), questão sempre premente no estudo da banda desenhada, quer aquela que compõe a sua história como a contemporânea, dadas as suas estratégias de, por vezes, estenografia e facilitismo visual, a que se entrega por ideias preconcebidas. Se se lê, vezes sem conta, na banda desenhada norte-americana (mas não só), personagens a viajarem a “África” – não um país ou uma região em particular, não se citando nomes de cidades nem de culturas, mas esse espaço abstracto e uniforme chamado de “África” -, esse tipo de construções generalizantes também operam sobre este espaço conceptual que é o Sul dos Estados Unidos. Um dos ensaios mais curiosos é aquele escrito por Nicolas Labarre sobre a série Preacher, de Garth Ennis e Steve Dillon (de novo, autores “externos” ao Sul), em que essa região é composta por imagens pré-fabricadas (“sem qualquer aspiração directa ao realismo”, 259), fazendo convergir figuras fictícias, da cultura popular, para construir um espaço imaginário, mas não menos significativo. “Este Sul, concebido não como um local mas um campo de representações em conflito, é insustentável porque a clivagem entre esses conceitos não pode ser colmatada” (256). No caso desta série, a um só tempo, iconoclasta e reconstruidora desses mesmos ícones (ou de novos: afinal é uma banda desenhada que obedece às suas linhas-mestras clássicas), mas perguntamo-nos se o mesmo não poderá ser dito de Swamp Thing de Moore, de Lil’Abner, de Pogo, de Bayou, etc., ela “sugere a possibilidade de reinventar a qualidade do sul [southerness] através do questionamento da autoridade e de uma deslocação de algumas das representações mais convencionais da região” (256). Preacher sugere “os valores e os códigos do Western como alternativa” (idem), ao passo que cada um dos outros textos procura outros caminhos e cruzamentos, mas todos reempregam algumas dessas convenções para as fazer abrir, transformarem-se ou serem reapropriadas em novas direcções.
A própria Qiana J. Whitted, co-editora do volume, no seu capítulo sobre Swamp Thing de Moore e Bayou de Love, fala de “guiões culturais” que se repetem, replicam, rememoram, reformulam, e são questionados. Trata-se, portanto, de uma matéria viva, e não de estruturas estanques sempiternas.
Whitted, falando da protagonista Lee, de Bayou, diz que esta é “uma figura liminar no sentido em que incorpora a liminaridade do sujeito negro pós-moderno na sua capacidade de franquear [to bridge] o literal e o alegórico” (207). Numa cena estudada de Preacher, em que se vê uma diferenciação entre um filme visto por Jesse Custer e a banda desenhada que conta a sua vida, no interior de uma visão do próprio Jesse, Labarre mostra como, nas suas estratégias visuais e compositivas, “[Steve] Dillon chama a atenção para a separação teórica entre os dois meios [cinema e banda desenhada], apenas para os unir como parte de um universo narrativo contínuo” (248). Liminaridade e união de dois territórios aparentemente contrários mas amalgamados numa só substância, parecem ser as noções-chave repetidas nos ensaios aqui apresentados.
Tendo em conta a escala dos Estados Unidos, e apesar da sua curta história pós-colonização europeia por oposição à própria história da Europa (suspendamos a consideração de uma visão não-eurocêntrica por ora), não deixa de ser surpreendente a forma como se operam estas diferenciações culturais e imaginárias naquele país. Que tipo de reverberação poderá ter este conjunto de estudos, por exemplo, para considerações em relação à banda desenhada nacional? Estamos em crer que poucas, dada a nossa produção reduzida e, de resto, a atenuada presença de “traços locais” na esmagadora maioria dessa mesma produção. A divisão norte-sul, por exemplo, é mais folclore futebolístico que efectiva construção identitária, mais marcada por linhas de cidades ou regionais. Mas seria possível detectar traços “localizados de imaginário”: o Alentejo (em Miguel Rocha e algumas histórias de Paulo Monteiro, por hipótese), de uma Lisboa bairrista (Rocha, novamente, mas também Lacas, Luís Louro) ou cosmopolita/nocturna/futurista (Nuno Saraiva, Ana Cortesão, Alice Geirinhas, Victor Mesquita, Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves), de um Porto decadente (Janus, Marco Mendes), de um imaginário suburbano (Fernando Relvas, Tiago Baptista, Marcos Farrajota), de um diálogo rural-urbano (A Fórmula da Felicidade)? Como primeiro passo para responder a essa questão, a forma como estes ensaios forjam a noção, em todos os sentidos da palavra, de “território”, é um excelente ponto de partida.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
Tu nunca estiveste em Africa pois näo? porque se tivesses, saberias que todas as terras daquele vasto continente tem mais em comum entre si com todas as diferencas culturais e sociais, do que semelhancas com qualquer outro continente...
ResponderEliminarE os africanos e os descendentes de africanos costumam levar Africa consigo para onde väo..claro que há excepcöes..mas o magnetismo daquele continente é imenso ...caricaturas à parte