Na sequência dos anteriores títulos dedicados a personagens da banda desenhada, desta feita é Corto Maltese o alvo de umas dezenas de pranchas, no já usual encontro de homenagens sentidas, variações poéticas sobre as matérias originais, gozos desabridos ou enxertos entre a obra original e as preocupações dos autores aqui presentes. Na economia do Efeméride, há uma preocupação pela objectificação ou reificação da própria banda desenhada, por o gesto de homenagem ser feito em torno dos “heróis”, que não deixam de confirmar toda uma série de regras usuais de uma produção clássica da banda desenhada durante anos – personagens masculinas, mais ou menos solitárias ou pelo menos destacadas dos seus coadjuvantes por razões das suas acções, rectidão moral, superioridade intelectual ou física, etc. isto é, não será tanto o contributo estético dos autores (sendo-o também, porém), mas sim a construção de um tecido imaginativo, passível de ser revisitado, como brinquedos em novas situações. Das personagens anteriores – Little Nemo, Príncipe Valente, Super-Homem e Tintin – Corto é uma primeira inflexão, na direcção de uma banda desenhada mais moderna, mais integrada cultural e transversalmente no mundo real, e verdadeiramente adulta, conquista mais tardia para esta arte do que em relação a outras que lhe são próximas, ou mais novas até, no tempo.
Não é este o espaço para discorrer sobre as virtudes e os defeitos da personagem e da obra de Pratt. Falaremos tão-somente deste objecto. Como mostra João Chambel, para uma determinada geração, e na qual nos integramos plenamente, o surgimento de Corto era feito no contexto da revista Tintin, uma página a preto-e-branco que destoava do resto da revista colorida. Confessemos que, sendo a idade muito tenra, essa página era durante uma fase passada ao lado, por incompreensível. A maturidade que exigia só se formaria mais tarde, mas também, é preciso dizê-lo, continuaria essa maturidade a ser formada de uma maneira autónoma em relação à banda desenhada, ao passo de voltar a abandonar a ideia de que Pratt, e sobretudo Corto Maltese, era um fim das possibilidades expressivas, artísticas e poéticas da banda desenhada. Não lhe negando o papel influente que teve e tem ainda hoje, digamos o seu lugar de “clássico”, entender-se-á também que não é uma obra desprovida de críticas e de uma inscrição temporal muito específica, que não a torna eterna, e coloca-a num ponto preciso da, ainda hoje continuada, expansão da banda desenhada enquanto meio expressivo. É ela um nódulo significativo, um eixo que contribuiu para a alteração de uma linha de desenvolvimento, um gesto que se tornou fulcral para uma abertura e temeridade maiores, mas que por isso mesmo há que observar com distância e equilíbrio. Seja como for, o Efeméride é dedicado a homenagens, não a desconstruções académicas.
Como não se pode deixar de esperar, a maior parte das histórias de uma página reduzem-se a meras anedotas circunstanciais, quase “improvisos na toalha da mesa”, para citar outro projecto editorial de Geraldes Lino. Piadas mais ou menos expectáveis em torno da sexualidade de Corto e as muitas personagens femininas (se bem que Ricardo Cabrita construa uma espécie de consideração paciente dessa questão), ou inclusivamente o humor pela homossexualidade com Rasputin, referências ao álcool ou à sua existência nos dias de hoje (inclusivamente com estranhas e deslocadas referências à troika que atravessa o país, irmanando-as, não sem razão, aos avanços dos fascismos combatidos romanticamente por Corto, e não menos romanticamente aqui), e - em três casos - piadas mais brejeiras em torno de excrementos de gaivotas. Também há casos em que a verborreia poética em torno de uma mão-cheia de palavras-chave parece prometer desde logo a emergência de todo o universo de referências do autor italiano, mas sem o ancoramento do original, e apresentando, mais do que uma forma, uma ofuscada e nublada ideia.
A aliança às experiências pessoais de leitura das aventuras da personagem de Pratt são sempre pasto possível, e João Chambel e André Ruivo obedecem a esses padrões, com Ruivo a aumentar o grau de incorporação da figura de Corto nos seus gestos quotidianos. Há ainda aquelas homenagens tipificadas, em que personagem e autor se despedem da existência histórica, real, e parecem entregar-se à dissipação no mar, no horizonte, no tempo, como no caso da prancha de José Pedro Costa.
Ainda há casos de autores que cerzem a personagem às suas próprias - imaginamos - vidas, colocando-o em paragens portuguesas, senão mesmo a amálgamas autobiográficas com a personagem, e fazendo emergir possibilidades de fantasia ou de fan fiction produtivas mesmo que fiquem somente sob a forma de “promessas”. São os casos de Luís Guerreiro, de João Sequeira com Luís Pedro Cruz, de Roberto Macedo Alves, de Vasco Gargalo, de Tiago Baptista (André Ruivo, como víramos, é algo diverso), cada um atravessando humores e resultados diferentes. Ricardo Santo apresenta, conhecendo a obra desta autor mais dado ao humor e às (des)variações culturais, uma surpreendentemente calma e introspectiva interrogação histórica, na qual não se descortina se tem laivos autobiográficos, mas que não surpreenderia se se confirmasse. David Campos estaria nesse grupo, mas a sua participação reenvia também às suas preocupações autorais, com uma vertente política subtil, e uma espécie de “desvio” protelado.
Outros autores, porém, conseguem, como sempre, entrosar as suas homenagens ou mini-histórias nas suas obras contínuas. David Soares, de mente conspiradora e amador da paranóia, enreda numa relação Corto e o monstro de Frankenstein pela via de Karloff, numa prancha magicamente simétrica de Jorge Coelho; Paulo Monteiro e Susa Monteiro, cada um da sua forma, aliam-nas às costumeiras breves poesias dos afectos que cultivam; Filipe Abranches apresenta uma breve mas curiosa reflexão sobre a gestualidade e o desenho, que tanto faz pensar na forma de comunicação e de presença mediática dos autores nos festivais como nos exercícios “pedagógicos” de Edmond Baudoin; Marco Mendes “rapta” a matéria, para dar a ver, mais uma vez, a angústia da vida moderna e citadina, colocando Corto como um corpo quase por identificar numa variação de Nighthawks, de Hopper; Daniel Lopes, aliando a um projecto estranho de observação quase omnisciente das actividades humanas, como que reduzidas a situações genéricas; Carlos Zíngaro, de certa forma, oferta-nos uma variação das várias linhas imaginativas que tanto compõem a obra de Pratt, o contexto do autor italiano e o seu mesmo, assim como do desenvolvimento gráfico, e estado actual, da sua obra; e Nuno Saraiva satisfaz finalmente a sexualidade latente da série. Pepedelrey é um equilíbrio entre o improviso quase impensado, e até inconsequente, e a integração na sua obra, que é composta precisamente desses elementos em queda livre e que cria sempre um humor iconoclasta.
Regina Pessoa e Renato Abreu, dois autores que se reencontram com prazer, apresentam trabalhos com as suas reconhecidas e belas abordagens gráficas, entrosando esta participação nas suas obras também, mas sem que construam uma unidade narrativa particularmente interessante. Perguntamo-nos mesmo, quer em relação a estes artistas quer aos restantes participantes, porque haverá esta necessidade de se procurar uma qualquer narrativa, e não pensar numa entrega cabal à variação gráfica, à pesquisa das formas, à via experimental até, se quiserem. É como se se julgasse que a banda desenhada tivesse a obrigatoriedade de apresentar texto, ou uma “história”, explorar a carga emotiva e psicológica, numa perspectiva policial, e não se procure alternativas até mesmo às pesquisas pessoais (daí que a intervenção de Abranches se aproxime dessa atitude, e Geirinhas crie uma espécie de variação visual de Pratt).
Curioso é porém notar que a esmagadora maioria dos autores, sejam eles exímios artistas ou não, com um traço reconhecível ou mais genérico, procuraram todos mimar, de alguma forma, as formas típicas de Pratt - nalguns casos através do decalque directo, seguramente. Os marcados contrastes a preto-e-branco, as silhuetas, as angulosidades, os planos de pormenor do Corto tardio (Tango), e até o trabalho de legendagem em alguns casos são sinal disso. Pepedelrey, Ferrand, Pedro Mota, Pedro Massano, Pedro Nogueira, Nuno Saraiva, Arlindo Fagundes, Tiago Baptista, Alice Geirinhas (numa espécie de samplagem), todos autores com estilos reconhecíveis e personalizados, são aqueles que tornam essa equação mais visível e eficaz (mas também, e mais uma vez, sendo mais profícuos gráfica que narrativamente).
Nota final: agradecimentos a Geraldes Lino, pela oferta da publicação.
Pela minha parte agradeço a crítica.
ResponderEliminarGL