7 de setembro de 2012

Sobrevida. Carlos Pinheiro e Nuno Sousa (Imprensa Canalha)

A morte poderá surgir não como ponto de chegada, fim, resolução, mas ponto de partida, condição mesmo do início da narrativa, do balanço, da transmissibilidade. E mesmo que não haja morte, ou ela seja somente aparente, ou anunciada de uma forma quotidiana e banal, a sua sombra cai sobre a vida que ainda se leva. É de uma natureza sombria próxima a esta tentativa de descrição que Sobrevida evidencia.
Uma descrição formal e quase exaustiva de cada “metade” deste livro a dois providenciar-nos-á com os elementos necessários a uma sua leitura interpretativa. A parte que se apresenta em primeiro lugar intitula-se “A noite” e é assinada por Carlos Pinheiro. São 23 páginas com três ou duas vinhetas rectangulares, ainda que de contornos irregulares, de formato e tamanho idênticos, com a excepção da primeira, maior, e que parece ser um breve establishing shot. Todas as vinhetas são desenhadas a linha preta, a esferográfica (Pilot 0.4, precisa o autor), num trabalho intenso e paciente de tramas para criar sombras, texturas e vários planos. As vinhetas como que “flutuam” na página, mas sobre uma vaga estrutura ortogonal, e quando as pranchas apenas se compõem de duas vinhetas, o espaço que estaria reservado à terceira está ocupado por uma breve linha de texto, com uma caligrafia segura e clara. Estas frases são sucintas e nunca estão pontuadas, com a excepção da última (“fim.”). Curiosamente, estão todas na primeira pessoa do plural, sem qualquer procura de individualidade, quer textual quer visualmente, uma vez que vemos um grupo de nove pessoas, de homens e mulheres, sem nunca haver uma individuação repetida ou suficiente para identificarmos um (ou uma) protagonista destacado. Diegeticamente, desenrola-se aqui uma estranha ou leve fantasia, em torno de um grupo de comensais envolvidos em pequenos jogos após o jantar, alguns dos quais revestindo-se de contornos de violência urbana: virar contentores de lixo, partir montras à pedrada, atear fogueiras nas ruas, ocupar praças e as suas estátuas.
A segunda parte, “O dia”, é de Nuno Sousa, tem 24 páginas, e é a lápis de cor (nalguns segmentos, uma vez que usa um papel de poliéster, dá-se um efeito cromático mais baço, que recorda os da aplicação de cera ou de pastel). Se há dois ou três passos monocromáticos (sobretudo azuis), na maioria as cores misturam-se de forma expressionista, não naturalista. Apesar de algumas páginas (treze) apresentarem uma estrutura regular idêntica à de Pinheiro, com três vinhetas horizontais mais ou menos simetricamente organizadas, há uma maior variedade de composição, com páginas a ocupar toda a área de impressão da página (sangramentos), ou desenhos individuais não-emoldurados. Existem páginas sem texto, em que o tempo parece suspenso, ou lento, ou então apercebemo-nos (imaginamos, projectamos) serem cenas repetidas, mas a presença de texto é regular, sob a forma de legendas fora das vinhetas principalmente, em três casos legendas internas às vinhetas, e um só caso com um balão de fala (se bem que outro caso de discurso directo possa ser discutido). O texto, seja como for, está na primeira pessoa – poderá mesmo tratar-se de um caso velado, desviado, de somenos, de autobiografia -, e parece estabelecer um diálogo com a figura do pai, que também se expressa em discurso directo, entre aspas ou em balões. A voz do narrador parece falar de um regresso à casa deste pai, reformado, e a consequente união de duas desilusões - do pai e do filho - ou descontentamentos com a inércia (forçada), apenas dirimida ao de leve por pequenos nadas, distracções, conversas de café, comentários sobre comentários.
Como descreveremos estas partes em si e entre si? A própria opção por uma palavra qualquer revelaria desde logo um posicionamento crítico e interpretativo. Se dissermos “episódios”, quereremos apontar o modo como os elementos diegéticos – por mais ténues que sejam – de um se encaixam nos do outro. Regressando mesmo a Aristóteles, estaríamos junto da sua teoria narrativa, e diríamos que estas são partes com formas diferentes entre si, e diferentes do todo, mas que são sucessivas temporalmente e apresentam laços de causalidade, cuja completude apenas se atinge no final. E aí teríamos um obstáculo já que “A noite” e “O dia” não apresentam quaisquer elementos partilhados de forma indiscutível, consensual. Se falarmos de “histórias”, parecia estarmos a falar de uma mera acção antológica, a repetição de um acto editorial em que dois companheiros de outras plataformas criariam algo individual e cuja agregação era apenas conjuntural, quase de ocasião. E assim falhar-se-ia em entender que elos estão de facto presentes entre ambas.
No espaço intervalar que estas duas partes criam no objecto-livro, há uma distância suficientemente alargada para que a reflexão surja. Uma possível temática comum é a angústia social em que se habita hoje em dia no nosso país. Sendo os autores do Porto, e assinalando-o textualmente no fim do livro, quase a jeito de assinatura, perguntamo-nos até que ponto será relevante essa informação para a leitura e fruição de Sobrevida? (reconhecemos a Praça D. João I, em frente ao Rivoli, mas possivelmente já atravessamos as paisagens curtas da parte de Sousa). As paisagens urbanas que vemos nesta obra não são totalmente reconhecíveis, podendo confundir-se com as paragens urbanas ou suburbanas de várias cidades, mas haverá uma atenção particular para uma moral em vigor na cidade do Porto? Seria possível ler este livro à luz, não apenas dos gestos anteriores destes autores (por moto próprio, no Senhorio, ou através de projectos de camaradas, pela Mula), mas também do projecto transversal do Buraco? Haverá aqui um entrosamento de preocupações políticas, de uma luta através da aflição, do desespero, da espera entediante de uma resolução que sabemos ou tardar obscenamente ou que jamais virá, e as preocupações criativas recorrentes dos autores? Poderemos ler este livro tormentoso como um gesto de resistência a esse nível? Até que ponto pode Sobrevida ser lido como ficção, como estranho retrato da actualidade ou como acto poético? E porque não algo que amalgamasse esses três feixes de sentido?
Não deixando de encontrar aqui alguns dos princípios que sempre pautaram as preocupações do trabalho de ambos os autores – quase sempre buscando um diálogo com o mundo social das artes plásticas, buscando como que apontamentos de instalações e performances de maneira a integrarem pequenas ficções onde vários géneros são facilmente reconhecíveis, como o humor (Pinheiro) ou uma estranha ficção científica (Sousa) -, ao mesmo tempo sentimos uma qualquer inflexão ou mudança, para um território mais intimista, mais emocional, que arreda parte do humor anteriormente presente. Se a “parte” de Nuno Sousa poderá dar indícios, se não de autobiografia (pois não há quaisquer dados que possa corroborar essa hipótese, não sendo suficiente a primeira pessoa do narrador), pelo menos de um maior grau de realismo, e até mesmo de realismo social, a de Carlos Pinheiro preenche essa afectividade de uma maneira mais disseminada, não apenas por se tratar de um grupo orgânico mas também pelas emoções serem variadas, como se fossem experimentando várias paixões, da apatia à raiva, até descobrirem qual a mais adequada às suas pessoas (ou mesmo pessoa colectiva, reforçando sempre essa ideia de conjunto).
Como reza o texto na contracapa do livro, o conceito da sobrevida aponta para uma realidade que não diz respeito nem totalmente à morte nem à vida, mas a uma espécie de limbo, ou melhor, de átrio. Num limbo, afinal, desespera-se somente, ao passo que num átrio o que emerge é o tédio da espera. O problema nem sequer é a espera em si, que se poderia concentrar no fim, na saída, na resolução. É a concentração no momento presente, uma doentia meditação naquilo que é impossível percepcionar, que é a duração (do tempo). O espaço de espera não é apenas criado pela tensão da presença das duas partes, e de todas as oposições e complementaridades que se estabelecem entre elas, mas também em pormenores internos a essas mesmas partes. Estes autores não procuram criar soluções gráficas ou de composição que representem a stasis propriamente dita, todavia aproximam-se dela: nos modos de imitação da morte das personagens de Carlos Pinheiro, ou na cena em que elas procuram os seus reflexos na montra, já mascarados, e no caso de Sousa, nas várias cenas de paisagens urbanas sem texto, a partir de perspectivas de interiores, ou a(s) sesta(s) do pai, ou aquela cena em que um jovem homem parece simplesmente observar as pessoas a passar na rua, todas elas com propósitos seguros, tão contrastadas com a sua (apenas parente?) inércia e apatia.
É então a sombra da morte, ou algo que lhe ocupe a função, mesmo que por ora, que recai sobre a vida que se vai levando. Sobrevida parece ser uma representação, não precisa mas justa, de um sentimento de não saber muito bem que opções fazer, que gestos fazer para manter o equilíbrio (da vida individual, mas também social, político), adivinhando sempre, porém, que faça-se o que se fizer, não virá dali decisão, “resultado nenhum”, mas provavelmente apenas uma outra, nova, rasteira… Também parece ser um retrato muito justo de que tipo de revolta será possível contra um certo estado social pela parte de quem ainda tem as suas raízes num certo conforto burguês (afinal, o grupo janta nu casarão, fantasiam-se, a violência é material e pública, o filho volta à casa paterna numa acalmia idílica, quase indolente). Recorda-nos, e com ele terminamos, um poema de um dos contemporâneos “poetas sem qualidades”, José Miguel Silva:

Queixas de um utente
Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.

Nota final: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro, e aos autores, por algumas informações e as imagens.

1 comentário:

  1. Óptima análise, Pedro. Aquilo que dizes sobre a "moral" dos artistas do Porto, ou pelo menos daqueles que pertencem à geração que fundou os espaços alternativos em 2000\01, é por demais evidente. Estamos a falar de pessoas que desde muito novas, ainda estudantes, perceberam que nada podiam esperar do poder local para desenvolver as suas actividades, que vivem numa cidade a cair aos bocados, e que perceberam que a sobrevivência depende das redes que estabelecem entre si, para cumprir os seus objectivos. Das grandes cidades do nosso país talvez o Porto seja aquela onde a crise, o desemprego e a pobreza mais se nota - as lojas todas fecham, só abrem negócios de compra e venda de ouro,os empregos são poucos, curtos e mal pagos, as casas estão vazias e podres, (visto de cima o Porto parece uma cidade bombardeada, com tanto telhado caído), há cada vez mais desalojados e pedintes, para além dos habituais junkies, ao ponto de já não se poder fumar na rua sem que nos venham pedir um cigarro. Para além disto, o acesso a subsídios estatais, aos consumidores do mercado da arte, e ao próprio escrutínio dos media, é muito mais difícil aqui do que em Lisboa, tornando ilusória qualquer tentativa de "fazer carreira". Todas as coisas positivas que aconteceram nos último anos nesta cidade, foram fruto da iniciativa privada ou popular, representando o poder local, na personagem odiosa de Rui Rio, sempre um empecilho: a renovação da baixa com o florescer dos bares e da vida nocturna, povoando as ruas como há muito não se via, os diversos grupos de pessoas que ocupam espaços públicos e privados ao abandono e os reabilitam para desenvolver actividades cívicas e culturais, os espaços artísticos alternativos, tudo isso foi de alguma forma reprimido pelo executivo camarário. Já para não falar da cedência do Rivoli a privados, a custo zero (La Féria), do projecto de construção de condomínios de luxo no mercado do Bolhão, da demolição do Aleixo, e por aí fora. E se por um lado se perdeu a esperança, como tu dizes, por outro lado menos se tem a perder, em qualquer coisa que se arrisque. Abraço

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