Este livro encontra-se no seguimento de um anterior projecto de Randy Duncan e Matthew J. Smith, a saber, o seu The Power of Comics: History, Form and Culture. Mas onde esse outro livro era escrito pela dupla, e tinha um fito introdutório ao estudo de banda desenhada, no seu plano académico (já) possível, este novo projecto reúne 21 ensaios de vários investigadores e escritores (inclusive, naturalmente, os próprios Smith e Duncan), cada um dos quais procura estabelecer os instrumentos mais correctos e específicos a uma das dimensões analisáveis desta linguagem. Como os próprios explicam na entrevista que lhes fizemos (ver no fim deste post), este livro poderia ser utilizado durante um curso universitário, como uma espécie de manual concentrado, ajudando assim os docentes e os discentes a encontrarem num só volume toda uma série de questões pertinentes. (Mais)
Nesse sentido, poderíamos arriscar dizer que Critical Approaches não traria nada de novo para a leitura contínua da bibliografia especializada. No entanto, mesmo tendo em conta que não encerra propriamente novos instrumentos de estudo, ou sequer novos dados revelados sobre este ou aquele assunto, a sua metodologia, aplicabilidade e resultados discursivos trazem de facto abordagens críticas, logo, um desenvolvimento mais claro, nítido e pertinente do respectivo sub-campo. Mais uma vez recorrendo aos destaques dos autores na entrevista, encontraremos aqui um texto de Andrei Molotiu que parece um exemplo desse desdobramento interno: convidado a tecer algumas ideias sobre a banda desenhada abstracta, que ele próprio ajudou a divulgar ou a consolidar-se enquanto sub-campo da banda desenhada, Molotiu acaba por empregar as ferramentas analíticas que a criação ou apreciação desse tipo de banda desenhada permite para re-ler uma outra banda desenhada, mais convencional até, neste caso, algumas das pranchas dinâmicas de Ditko no seu, original, Homem-Aranha. Como ele próprio o diz, isso permite uma “perspectiva expandida” (pg. 87).
Para além de Molotiu, Duncan e Smith convidaram investigadores importantes, alguns dos quais tivemos a oportunidade de discutir a propósito da publicação de uma monografia, afecta precisamente às áreas específicas que revisitam neste volume, comos nos os casos de David Beröna, sobre livros “sem texto”, ou de Marc Singer, sobre tempo e narrativa em The Invisibles. Mas eis a distribuição do livro: depois de uma introdução de Heny Jenkins, importante autor de estudos dos media que tem dedicado basta atenção à banda desenhada (e cujo texto deveria ser lido, a nosso ver, em conjunto com um outro de Charles Hatfield intitulado “(In)Discipline”), apresentam-se secções supra-metodológicas, em torno da Forma, do Conteúdo, da Produção, do Contexto e da Recepção, todas categorias que não existindo isoladamente, podem sê-lo com o intuito preciso de tornar os estudos mais concisos e significativos. Como escreve Pascal Lefèvre, “A forma não é de maneira nenhuma um contentor neutro de conteúdos, no meio da banda desenhada. A forma molda o conteúdo, a forma sugere interpretações e sentimentos” (71), apontando desde logo à rede multimodal complexa que se deve ter em conta no estudo deste meio. Ou, como Nyberg o diz explicitamente, “Falamos de ler banda desenhada, mas essa é apenas uma maneira convencional de nos referirmos ao processo multifacetado de gerar significado” (118, nosso sublinhado).
Na parte da Forma, temos Beröna, Joseph Witek (sobre as relações entre caricatura e ilustração e em torno das bandas desenhadas da família Crumb), Randy Duncan (sobre forma e cor em Asterios Polyp), Singer, Pascal Lefèvre (sobre composição e enquadramento na saga samurai Lobo Solitário) e Molotiu. O capítulo sobre Conteúdo apresenta textos de Jeff McLaughlin (que retoma os estudos de filosofia para discutir a Saga da Fénix Negra, de Claremont e Byrne), Amy Kiste Nyberg (autora de um importante livro sobre o Comics Code, e que aqui fala de jornalismo em banda desenhada, escolhendo o Gorazde de Sacco como exemplo) e Christopher Murray (citado muitas vezes neste espaço, para falar de propaganda e do Capitão América). Em Produção, reúnem-se Mark Rogers (sobre o “fabrico” da procura especulativa de comic books com a morte do Super-Homem em 1992), Ian Gordon (que, como é hábito na sua obra fundamental, estuda a “cultura de consumo” própria da banda desenhada, falando igualmente de Super-Homem), Stanford W. Carpenter (que estuda o editor Alex Alonso para discutir “etnografia da produção”), Smith (que se entrega a um exercício sobre a possibilidade do auteur em banda desenhada, elegendo Alan Moore como exemplum) e Brad J. Ricca (que estuda Siegel e Shuster para auscultar o emprego da História neste campo específico). No que diz respeito ao Contexto, temos Peter Coogan (autor de Superhero: Secret Origin of a Genre, e aqui retomando as questões desse livro, concentrando-se em All-Star Superman, de Morrison e Quitely), Leonard Rifas (autor de variadíssimos importantes estudos, aqui centrando-se nos estudos ideológicos, e lendo, quase obviamente, Tintin no Congo), Jennifer K. Stuller (estudando o título Lois Lane para falar de feminismo) e Ana Merino (tendo o autor barcelonês Max como objecto para estudar a intertextualidade, neste caso, interartística). Finalmente, no capítulo Recepção, apresentam-se três estudos, de Mel[anie] Gibson (investigadora britânica muito significativa, aqui com um estudo sobre práticas de leitura e consumo de banda desenhada para raparigas, com os instrumentos mais clássicos dos estudos culturais), Jeffrey A. Brown (que usa a etnografia para estudar a cultura dos fãs, sobretudo no que diz respeito à moda das T-shirts como nexo de individualidade e identidade colectiva) e Brian Swafford (que usa a etnografia crítica para estudar as lojas e os clubes de banda desenhada).
Como se depreende, há uma estrutura que vai alargando ao longo do livro, se entendermos a “forma” como a abordagem mais circunscrita ao texto possível, e a “recepção” como o espaço social de negociação final da obra. Mas como dissemos, todas estas esferas terão modos de entrosamento mútuo. Além disso, como se vê pela repetição da palavra etnografia, há indícios para sublinhar a diversidade dos usos destas disciplinas ou até mesmo como elas podem sofrer interpretações diferenciadoras. “Não há um feminismo abarcador”, escreve Stuller, “e portanto nenhuma análise feminista propriamente singular” 239). O mesmo poderia ser dito dos estudos literários, culturais, da sociologia, etc. Seja a análise textual, a entrevista, a pesquisa de campo, ou a investigação qualitativa, são muitos os instrumentos e caminhos que se podem tomar e cruzar.
Um dos resultados que este volume pode ter num público mais alargado, e sobretudo em certos círculos da academia, que ainda vê a banda desenhada numa perspectiva desconfiada, delimitadora ou instrumentalizadora - isto é, poderá aceitá-la como objecto de estudo, mas as mais das vezes como veículo ou caminho para provar uma visão disciplinar já existente, e não propriamente para uma apreciação do seu campo próprio -, é que ela é como outra criação humana qualquer, aberta a todas as configurações imagináveis e passível de todas as abordagens imagináveis. Tem é que se procurar o instrumento certo, como diz McLaughlin: “rejeitar a banda desenhada como sendo filosoficamente desinteressante exigiria um argumento filosoficamente interessante!” (104).
É impossível debater todos os ensaios, como é de imaginar. E, concebendo igualmente interesses metodológicos e até de objectos bem diversos entre os investigadores, haverá aqui matéria que poderá ser mais ou menos relevante, conforme os casos. Todavia, recordando o seu propósito geral, todas estas dimensões devem ser estudadas numa primeira abordagem, para que se compreendam depois os vários caminhos de especialização possíveis. Se se der o caso de montar uma disciplina semestral de Introdução aos Estudos de Banda Desenhada, era perfeitamente exequível a sua leitura cabal e a sua adaptação a circunstâncias diferentes, como por exemplo a da banda desenhada portuguesa (ou brasileira, etc.). Nalguns casos, poderíamos encontrar alguns problemas de metodologias que respeitamos, como o caso da “falácia intencional” perseguida por McLaughlin em relação à Fénix Negra, ou quando Nyberg diz que o trabalho de composição de Joe Sacco “empurra a forma para segundo plano e dirige a atenção do leitor para o conteúdo, que é tradicionalmente jornalístico”, discordando quer do primeiro aspecto, já que a obra de Sacco torna transparente o trabalho simbólico das suas opções formais, quer por não nos parecer que as suas reportagens se possam descrever como “tradicionais”, a menos que aceitemos a domesticação do seu tipo de jornalismo (o que seria falso, até sobretudo nos nossos tempos, em que os meios de comunicação de massa se concentram cada vez mais nas mãos de interesses particulares e, logo, de veiculação de ideologias “invisíveis”). Mas a maior parte desses pequenos percalços científicos, a nosso ver, não invalidam de todo as propostas maiores de cada texto.
A estrutura geral dos ensaios foi pensada pelos editores, com a ideia de haver não só uma constância nas abordagens - necessariamente variadas - mas também de inculcar uma possível formatação de futuros trabalhos que sigam este livro como modelo, mesmo que tenham de descobrir fórmulas alternativas ou os desvios ou adaptações necessários. Assim sendo, cada ensaio parte de “pressupostos”, passos vistos como obrigatórios em relação a uma área de estudos, metodologia ou processo de estudo, sublinhando-se os “tipos de questões” que usualmente emergem e os “problemas” abordados. Seguem-se os “trabalhos apropriados”, que afunilam a cada método o seu próprio tipo de objectos. Isto não significa que cada método à partida esteja circunscrito a um número fechado de objectos de estudo, mas antes que cada método pede por uma maior associação a um determinado tipo de objectos, do qual tirará mais partido ou ao qual esse método se adapta melhor. Em alguns casos, e conforme o que se discute, explicita-se como faz mais sentido escolher apenas um comic book, ou uma série completa, ou um período, etc. Todos os ensaios nesta última secção do texto apresentam uma breve nota sobre o “artefacto”, isto é, o objecto específico, contextualizando-o ou delimitando o seu espaço para fortalecer a forma como ele é analisado, o que toma a forma de uma “amostra/objecto de análise”, sobre o qual se segue então o “procedimento”, i.e., a própria análise.
A entrevista a que os editores tiveram a gentileza de responder, disponível aqui, explora alguns outros assuntos, como a distribuição de temas, de objectos de estudo e o estado de arte do campo.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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