É com algum atraso que damos conta da leitura de Greve, mas o surgimento de Achimpa torna essa recepção mais moldada, por ser, a um só tempo, reveladora das linhas de força contínuas e das diferenças internas do trabalho de Catarina Sobral.
Não deixa de ser revelador, no contexto da literatura ilustrada portuguesa (quer dirigida sobretudo a um público infantil ou não, o que começa a não apresentar obstáculos de passagem e de fruição crítica), ou até mesmo nestas abordagens textualmente mais sumárias da literatura portuguesa, que seja uma autora-ilustradora a escavar a língua de uma forma intensa, algo relativamente indetectável mesmo dos escritores exclusivamente ditos, usualmente mais preocupados com a enfabulação moralizante ou explicativa do mundo, ou então com construções de emocionalidade relativamente expectável. Uma comparação possivelmente produtiva em relação a Sobral seria com Manuel António Pina, claro está, graças a quem ainda nos perguntamos qual a verdadeira diferença entre um gigão e um anante.
É preciso ser claro num aspecto. Esta destrinça entre escritor, ilustrador e autor (ou escritora, ilustradora e autora) levanta sempre problemas em relação a cada caso concreto, pois os termos não se invalidam mutuamente, mas tampouco se reforçam entre si. Mas se há casos de autores que compreendemos serem acima de tudo ilustradores - num sentido em que o seu acto criador passa pela emergência da manipulação da matéria imagética - mesmo que empreguem texto, e outros que são escritores - fazendo sobreviver os seus textos à margem das imagens que os possam acompanhar (o que é notável em reedições que não recuperam as imagens originais e, por vezes, diminuem de exigência) - há outros ainda que fazem corroborar um no outro gesto de forma entrosada (e isto pode ocorrer numa dupla, não sendo nós apologistas do mito do “autor completo”), e estamos em crer que Catarina Sobral se inscreverá nessa categoria.
Tanto Greve como Achimpa são livros que colocam a palavra no centro do seu desabrochamento conceptual e actancial. O primeiro livro, por exemplo, dá início ao seu texto, logo após as guardas, mas nos espaços reservados às informações editoriais (folha de título, cólofon), como se houvesse uma urgência - e depois uma nova situação - que não pudesse suportar a separação entre os ritmos previstos pelas estruturas convencionais dos livros. Além disso, há uma curiosa exploração de uma linha pertencente a uma voz narradora externa e a intervenção de várias personagens em falas, através de balões de fala, de entre os quais alguns são compostos não por palavras, mas imagens. Em Achimpa não existem propriamente balões de fala, mas outros dispositivos similares, tornando até mais presente as vozes distintas das suas várias personagens. Aliás, os dois livros de Sobral não têm personagens principais, nem uma estrutura centralizada (com a excepção da Sra. Zulmira, mas esta é mais uma espécie de coro paralelo do que protagonista), nem sequer uma concentração espácio-temporal, mas estendem-se ao longo de um grande tecido social, precisamente para sublinhar a sua atenção nos jogos de linguagem, polifónicos, previstos. Em Greve, trata-se de jogos em torno da palavra “ponto”, e todas as associações que ela permitirá a uma série de expressões, frases feitas, descritivos e dispositivos técnicos, e Achimpa foca o surgimento de uma palavra indeterminada (na verdade, o paradoxal encontro da palavra num “caquético dicionário”, mas pelos vistos sem verbete explicativo, não invalidará o novelo que se segue, e o acto criativo e satírico da autora). São esses jogos de desdobramentos sucessivos da língua os fios vermelhos de ambos títulos.
A repetição de “ponto” em ponto cardeal, ponto verde, ponto de fuga, ponto teatral, hora em ponto, ponto de encontro, ponto e vírgula, etc., leva a uma espécie de esvaziamento desse mesmo termo, como se se encontrasse numa performance ou brincadeira em que se a repetisse até ao esgotamento do fôlego, e também a transformação da palavra em despojada matéria fonética. Essa coordenação de expressões faz salientar, numa primeira instância - que preside ao próprio acto de produção textual -, o que elas têm em comum, mas logo a seguir fazem revelar um estranhamento profundo entre essas mesmas expressões, em que em vez de reforçar o conceito de “ponto”, este acaba por se dissipar. Aliás, se a greve dos pontos se unifica pela característica comum, a estranheza surge pela descoordenação dos seus propósitos, materiais e relacionamento com o mundo humano, que nalguns casos é espacial (ponto de referência), noutros temporal (oito em ponto), noutros abstracto-conceptual (ponto cardeal), noutros perceptual (ponto de fuga), noutros técnico ou físico (o ponto cruz, o ponto verde, o ponto no trabalho)…
Também em Achimpa a palavra, tal como ela se apresenta em primeiro lugar, é uma matéria morta, mais morta que qualquer palavra das ditas “línguas mortas” (que jamais o são, enquanto forem recordadas e visitadas de uma qualquer maneira). Sobral, porém, anima-a, ou melhor, mortifica-a para a reanimar. A palavra é mortificada para ser reavivada: em Achimpa através do seu desdobramento morfológico (por ordem: verbo, substantivo, adjectivo, advérbio, e depois “pronome, conjunção, interjeição…”, e finalmente “perlinço”) e uso sintáctico, contextual e comunicativo, mesmo que nunca se possa revelar sinonímico ou explicado de modo satisfatório. Isto é, quando se diz “Que coisa achimpíssima!”, dá-se uma instância de um acto lucotório incompleto, uma vez que, apesar de haver sons fonéticos e até um respeito pelas estruturas gramaticais, não há um sentido atribuível a um dos elementos empregues na frase (precisamente toda a família achimpa). Mas poderemos perguntar-nos se há um acto perlucotório, sem que haja uma locução completa. Afinal de contas, mesmo que seja pela mentira - as pessoas fingem perceber a palavra, fingem saber de que se trata -, as frases funcionam. Claro que isso se prende ao facto de que “achimposo”, “achimpas”, “achimpa-o” e “achimpadamente” respeitam em termos gerais as regras de construção e referências fonéticas, morfológicas e sintácticas da língua portuguesa… Inferem-se, portanto, significados no contexto específico - tal qual como sucede quando dizemos, por hipótese, “passa-me ali o coiso”, ou, no caso mais famoso do universo da banda desenhada popular, toda a família linguística dos “estrumpfes” (sendo Estrumpfe contra estrumpfe, no original Estrumpfe verde ou verde estrumpfe, de 1973, ainda um dos maiores títulos da série, precisamente nesta linha de investigação da linguística e seu papel político de identidade).
Enfim, achimpa acaba por ser uma espécie de invólucro deíctico, preenchido em cada acto de enunciação, sempre corrigido na abordagem seguinte. E tal como no caso de Greve, este novo livro encerra-se num novo enigma que relança a acção que atravessámos ao longo da leitura. São dois livros, em suma, que obrigarão os leitores à entrega total no seu processo de fruição, e menos na de estruturação objectificada de uma resolução.
O retrato social do Portugal contemporâneo de Catarina Sobral não deixa de ser atento. Repare-se como é o primeiro-ministro que “funda” a possibilidade do advérbio “achimpadamente”, mimando de certa forma o terrível uso da língua portuguesa que dela fazem os nossos políticos, visível quer na incompreensível eliminação do verbo “esclarecer” pelo parolo “clarificar”, “mentira” pela estúpida “não-verdade” ou “inverdade”, ou outras coisas quejandas - típicas tanto dos eufemismos políticos como da novilíngua - e que desembocam no espatafúrdio e ridículo acordo ortográfico (todavia, seguido nestas edições, por razões que imaginamos serem da imposta sobrevivência comercial e circulação escolar). Greve é claro no seu centro, e recordemos que foi publicado há um ano, mesmo antes das vagas de greves verificadas nos últimos meses. Se bem que em termos imagéticos se possam indicar que as referências directas a realidades portuguesas sejam mais marcadas em Achimpa, elas concentram-se em breves objectos (um táxi, um eléctrico, dois nomes de livrarias, um objecto doméstico comum) e integram-se num projecto mais internacionalista (com outras chamadas mais ou menos reconhecíveis). Ou seja, é mais no aspecto dos comportamentos - um certo desespero na impossibilidade de avançar, o alarde da ignorância dos especialistas, a rápida adopção de expressões vazias, etc. - que esse retrato se cumpre, parece-nos.
Toda esta atenção para com a matéria verbal não pode de forma alguma ocultar a pesquisa visual de Catarina Sobral, bastante diferenciada entre os dois livros. Greve tira partido substancialmente de colagens de materiais diversos: imagens de objectos preexistentes, formas que se coordenam ou se integram com os desenhos para cumprir um papel específico, troços de textos, letras soltas e desirmanadas para tecerem uma palavra (inclusive onomatopeias), todas elas jamais escondendo a sua natureza material anterior, criando sectores de compossibilidade, isto é, de materiais que mantêm a sua tessitura original - papel pautado, padrões estampados, textos manuscritos ou impressos, documentos, mapas, tramas - impressionando o objecto que representam. Além disso, as figurações humanas apresentam-se de uma maneira sumária e ultra-estilizada, estendidas e de apenas um olho visível, como se as suas personalidades fossem menos importantes em termos actanciais e diferenciadas do que como ocupações formais de papéis sociais em torno dos quais pode emergir a crise, e nódulos neutros, digamos assim, destas matérias visuais. Este livro parece recuperar um método de trabalho associado às vanguardas russas, construtivistas ou outras, tais como viveram a literatura infantil ilustrada. Essa ligação a certas vanguardas da História da Arte não é de todo descabida, visível em certas referências directas, desde as colagens de Braque-Picasso-Sousa Cardoso a uma operação malevichiana sobre os pontilhistas, sem descurar o Suprematismo e o Proun de El Lissitzky. Aliás, esta dupla página parece mesmo ser uma homenagem directa ao livro infantil Suprematicheskii Skaz, desse autor russo, mas para mais fazendo mergulhar a forma-imagem no mais implicado sentido linguístico da obra, reforçando a linha com que abrimos a leitura do trabalho de Sobral.
Achimpa, pensamos, poderá ser descrito como mais convencional, quer pelo seu formato quer por empregar desenhos a lápis de cor, em certos momentos de linhas sobrepostas e combinadas, sem aparentes intervenções com outros materiais. Aparente somente, claro, pois é visível o trabalho de colagem nalguns casos (um tronco de árvore, um arbusto, uma figura - pessoas ou edifícios - nos fundos respectivos, os quais, por sinal, nunca deixam de revelar a sua planura material, de cor uniforme); só que neste título essas colagens concorrem para uma mesma dimensão matérica e de representação unívoca (corpos num espaço natural, ilusão de perspectiva). Há um maior equilíbrio entre figuras isoladas mas coordenadas entre si - como na fila do autocarro, espiando-se ou escutando-se mutuamente, ou a “fila telefónica” - para sublinhar os problemas de comunicabilidade, e entre cenas mais pejadas, de grandes planos gerais sobre a cidade ou espaços amplos e repletos de objectos (é particularmente impactante a imagem das livrarias juntas, num espaço impossível, uma espécie de arcadas de sonho para o bibliómano ambulante). E, neste caso, as personagens já ganham outro tipo de contornos mais diferenciados, pessoais, expressivos mesmo.
É tentador ver no emprego de materiais heteróclitos de Greve uma concordância com a diversidade linguística implicada, ao passo que a concentração metódica de Achimpa se aproxima mais da igual concentração numa suposta raiz morfológica, mas é possível que estejamos a entrar num domínio algo abusivo de interpretação. Se tomarmos em conta, por exemplo, a exuberância da cor em relação ao segundo livro por contraste à paleta mais submissa do primeiro, inverte-se essa ordem de factores, tal como a ideia de composição e de profundidade ou ilusão de perspectiva, muito mais plana, bidimensional, no caso de Greve do que em Achimpa, que promete um maior grau de naturalismo. Ainda assim, sobrevive essa impressão.
Temos, então, aqui um caso vibrante de uma autora que escreve para desenhar, ou que agencia os seus desenhos em torno do acto da escrita, e com ele escava a língua de uma maneira, se não inédita, pelo menos peculiarmente intensa.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos dois livros.
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