Semana Urasawa 3. Este volume com mais de 550 páginas reúne 30 histórias curtas do autor japonês, todas remetendo a uma primeira fase dos seus trabalhos, compreendidas entre 1983 e 1986. Na verdade, é a tradução francesa de um projecto de 2000 intitulado, em japonês, literalmente, “Urasawa do primeiro período”. Desse número, uma é composta por dois capítulos, outra apenas apresenta dois capítulos de uma história interrompida, outra apresenta 7 histórias em torno da mesma personagem (um jovem polícia que é também frontman de uma banda rock). Algumas têm apenas 8 páginas, e outras delas espraiam-se por cerca de 40 páginas. São todas fruto de circunstâncias, experiências que tentavam conquistar um espaço mais regular e profissional nas revistas de mangá, como a Big Comic Original, ou até mesmo “fillers”, e alguns projectos que seriam abortados por razões editoriais e/ou comerciais. Como ponto de honra, encontra-se aqui Beta!!, a primeiríssima história publicada, de 1983.
Como não poderiam deixar de se esperar nestes “primeiros passos”, Urasawa não apenas navega por entre géneros mas igualmente por estilos gráficos diversos, ainda que as diferenças possam aparentar ser mínimas, levíssimas inflexões. Possivelmente por serem trabalhos anteriores aos seus títulos de maior sucesso, poderão ser feitos ainda fora do sistema dos estúdios japoneses, em que uma trupe mais ou menos considerável de assistentes toma conta de artes-finais, dos cenários, de pormenores, etc. E Urasawa conquistaria esse método de produção mais tarde. O autor não esconde, quer em alguns desenhos soltos, homenagens ou entrevistas, o seu profundo arrebatamento contínuo pelas obras de Tezuka, Hergé e Moebius, e torna isso facto patente na própria matéria do seu trabalho (sendo Pluto apenas o mais óbvio dos factos). Uma pequena história intitulada “Return”, que ganhou um prémio revelação (uma das categorias do Shôgakukan), parece servir de nódulo entre Moebius, Tezuka e o que depois mais tarde se exploraria em Pluto.
É bem possível que, lida esta antologia fora deste contexto autoral, que a colação de géneros e até de qualidades de trabalho o lançasse numa zona de indeterminação, de fraqueza geral, ou até de indiferença, mas é precisamente o acto arqueológico que a colecção permite que a torna significativa, e a leitura retrospectiva é uma outra forma de relermos as coisas, mesmo que pela primeira vez: isto é, lemos estas histórias pela primeira vez mas sempre sobre a sombra do que já conhecemos. E assim o que parece presidir à leitura é a procura pelas características que reconhecemos nos seus outros trabalhos mais famosos, assim como a surpresa de encontrar traços bem diversos.
Urasawa também mostra, aqui e ali, colaborações no que diz respeito ao texto ou argumento, adaptando uma novela do escritor Ryûnosuke Akutagawa em “Magie”, trabalhando com o argumentista Caribu Marley em “Rush Life”, discutindo ou aproveitando deixas de editores aqui e ali, criando uma referência oblíqua a Edogawa Ranpo (ou Rampo, que citáramos a propósito de uma adaptação de Maruo) em “Le détective de Taishô”, misturando a vida pessoal do escritor e a sua ficção policial… Neste departamento, a obra de Orsini, que abordaremos mais tarde, é muito importante para compreendermos o modo como se trabalha na indústria da mangá, ou pelo menos os métodos de Urasawa, cuja relação com o seu editor, Takashi Nagasaki, complica as fórmulas simples de dizer quem é o autor do argumento e do desenvolvimento (nada de muito diferente do que noutros circuitos, inclusive no seio do sacrossanto culto ao “autor completo” Hergé).
São muitos os elementos detectáveis que transitariam para os seus títulos mais significativos: a música rock e o sinal de libertação que ela pode representar em certos contextos, um interesse pelo modo como os sonhos aliados à tecnologia ou à ficção científica não debelam necessariamente uma particular atenção para a realidade crua da vida humana, um certo humor cinético e por vezes tolo ou adolescente mas que tempera a gravidade do acontecimento central da história, e a possibilidade de encontrar um nódulo de moralidade, justiça e probidade que se encontra para além do mundo das aparências sociais: são muitas vezes os párias e os marginais que revelam um relampejo de dignidade indómita. A sua escolha em personagens muito jovens ou já idosas, facto bastas vezes apontado, faz desviar os propósitos mais atreitos da demografia dos géneros em que costuma trabalhar, ou no interior das quais desencadeia as suas obras, e demonstram desde logo uma preocupação social vincada.
Se algumas das peças são de um humor leve, associado a géneros específicos (como o desporto, no qual o autor teria os seus primeiros sinais de sucesso como em Happy!), há outras que parecem apontar a uma maior amplitude de ambição e envolvimento emocional. São os casos de “Return”, “Old Western Mama” e “Au revoir, Mr. Bunny”, ainda que as emoções sejam algo superficiais, delicodoces e lineares. Já “Shinjuku Luluby” [sic, não percebendo nós se é gralha ou trocadilho] parece ser uma história que deseja apelar a camadas mais complexas da existência humana, para além de meras banalidades dos sentimentos, e até abordando temas sensíveis da sociedade contemporânea japonesa, que coloca em xeque muitos dos clichés de honra e rectitude em nome de uma mera sobrevivência económica, da dignidade humana e até mesmo de uma certa liberdade à margem das narrativas de “espírito nacional” que tantas vezes são vendidas por aquele país. Na verdade, parece-nos ser esta a mais madura história da antologia, por isso destoando do conjunto, mas essa é a própria natureza deste tipo de objectos.
É nessa óptica, portanto, que insistimos ser mais apropriada, possivelmente, a sua leitura.
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