Semana Urasawa 1. Naoki Urasawa corre o risco de se vir a tornar, se não o é de facto já, uma referência incontornável e perene na história e impacto da banda desenhada contemporânea japonesa no mundo. Sendo perigoso fazer futurologia ou encómios rasgados sem qualquer tipo de fundamento, basta olhar para o passado recente: as obras de Urasawa têm conquistado um público muito (cada vez mais?) alargado, inclusive leitores que usualmente não se aproximam da mangá, por terem criado um filtro qualquer, uma percepção enviesada, desse território, como sempre subsumido a uma meia-dúzia de traços estilísticos, genéricos e de humor que pouco a fazem ultrapassar a condição de mero veículo de entretenimento momentâneo.
Não existem “grandes obras” nem “monumentos” de formas totalmente isoladas da história, do contexto social, da economia de géneros, ou até mesmo dos sistemas económicos e comerciais em si mesmos. Todo e qualquer sucesso angariado, toda e qualquer circulação conquistada, é feita sempre num sistema maior de invisibilidades, ignorâncias e distracções. No campo da banda desenhada não há diferença de maior. Podemos dizer que Watchmen é uma obra-prima para todo e qualquer leitor? Será Baudoin um artista verdadeiramente universal? O que sobreviverá a uma integração maior num mundo cultural vastíssimo, com uma forte componente política, de emancipação humana, de democratização das vozes, de proliferação de instrumentos, de sentimentos diversos: a obra de Hergé ou a de Fred, de Tardi ou de Will Eisner, de Alison Bechdel ou de Marco Mendes? Pensamos antes que haverá espaço para grandes conquistas diversas que preencherão papéis diversos: aqueles que preenchem o papel da composição, os mestres do desenho, os dominadores do enredo e os do desenvolvimento das personagens, os conquistadores de novas experiências, formas e materialidades da banda desenhada e os passadores de fronteiras, os visionários das colaborações e os paladinos da expressão singular e solitária… E tudo também depende de quem lê. Haverá, porventura, fãs coincidentes de William Shakespeare, Hermann Broch, Stephen King e Toni Morrison, sem dúvida, mas serão num número significativamente mais circunscrito, e seguramente que menos vocal e visível, do que aqueles que se cingem a cada um dos “territórios culturais” (em si mesmos ficções, claro está).
De novo, o sucesso depende sempre do interior de certos circuitos. Por vezes, todavia, essas conquistas podem escapar da gravidade interior desses mesmos circuitos, e estamos em crer que alguns títulos de Naoki Urasawa têm as qualidades para esse escape. Isto é, Monster, mas acima de tudo, Pluto, 20th Century Boys (e 21st Century Boys) e Billy Bat constroem um corpus significativo, uma obra conjunta de mangá contemporânea narrativa de grande fôlego, polifónica, transcultural, intertextual, que em parte vibra e medra no seio da tradição da banda desenhada japonesa popular (e outros media e culturas associadas). Aliás, diremos desde já que o elemento mais forte em Urasawa, a nosso ver, é a da sua capacidade em criar enredos intricados e empolgantes. Num jargão técnico, ele é “plot-centered”. E o género (ou supra-género, ou estrutura) mais repetido na sua recensão geral é a dos thrillers. Quer dizer, Urasawa, tal como outros escritores, o já citado Stephen King, por exemplo, apresenta uma plasticidade na manipulação dos eventos que compõem a intriga, a qual, aliada às estruturas materiais específicas deste tipo de banda desenhada - publicada em capítulos curtos semanais, depois reunidos em volumes de centenas de páginas, mas de edição regular, sendo essa serialização e regularidade um importante factor na sua recepção primeira e primária (isto é, enquanto texto na sua acepção social mais completa, não podendo ser lida na ausência dessas mesmas condições de produção sem uma perda substancial de significado) - se torna o centro nevrálgico da sua importância e conquistas. Claro que os prémios “da especialidade” (como se todos não o fossem, mas este apodo surge como uma espécie de vergonha no caso da banda desenhada) não são alheios a essa condição. Não quer dizer que não haja outras dimensões que sejam menos analisáveis, como a sua capacidade de visualização e construção de personagens, diferenciação física e expressões faciais, as suas opções de composição, a gestão que faz entre momentos de um dinamismo alucinante e outros de longas sequências de densos diálogos (mas que, por se espraiarem por várias páginas e balões “curtos”, admite uma certa velocidade de leitura de cada página enquanto unidade de leitura), que não procure um equilíbrio sagaz entre um tom grave e que ancora as suas ficções (ou mesmo ficção científica ou fantasia) num enquadramento realista, e episódios de descompressão através do humor, por vezes mesmo tolo, adolescente, genérico, mas quase tudo isso, todas essas outras estratégias, todos esses aspectos, obedecem de uma forma mais contínua às expectativas generalizadas que foram sendo consolidadas na tradição das mangás shonen e seinen modernas. Talvez até mesmo seja pela sua obediência competente a essas condições, por operar no interior de um certo grau de conformidade, e depois a sua diferenciação por intrigas intricadas, é que Urasawa se destaca: ele foca um aspecto como a sua ponta de excelência, e aí é inultrapassável.
Tendo dado os seus passos em pequenos relatos dos mais variados géneros, como se depreende de uma sua antologia recentemente publicada em francês, de que falamos noutro post, as suas primeiras obras de sucesso comercial vogavam pelas águas genéricas da comédia romântica, aliada à esfera do desporto, como foram os casos de Yawara! e Happy! Mas foram, discutivelmente, as suas obras maduras, os tais thrillers, que o fizeram conquistar territórios de leitores mais alargados, e que consideramos serem capazes de conquistarem mais público ainda, dadas as condições certas.
Nos próximos posts, dedicaremos alguma atenção ao seu trabalho, com destaque para as séries 20th/21st Century Boys, recentemente terminada na sua versão norte-americana, e Billy Bat, cuja versão espanhola já chegou ao sétimo volume (acompanhando de perto a edição original, ainda em curso). Aliás, este acesso disperso em várias línguas (escusado será esperar por versões portuguesas, apesar dos esforços no Brasil) revela desde logo muito a condição esparsa, pouco sistemática da circulação da banda desenhada no mundo, e que deve ser necessariamente sensível às edições internacionais, em várias línguas, ou até às scanlations. É essa diversidade de canais que nos abre acesso a esse imenso mercado, pólo de produção e tradição de banda desenhada, que apenas poderemos conhecer tangencial e incompletamente, que é o Japão. Além dessas séries, falaremos ainda da tal antologia de histórias curtas, este artbook e uma monografia em francês.
Como forma de abertura, ficam-nos algumas das páginas de Manben. L’artbook de Naoki Urasawa, um desses objectos que surgem necessariamente nesse cômputo em direcção à canonização de um autor, e ao relançamento do seu nome como aposta francamente segura na dimensão financeira da mangá na Europa. Como dissemos, a força maior da obra de Urasawa encontra-se no plot, nos enredos, e não tanto na sua abordagem gráfica, o que fica perfeitamente patente nas páginas deste enorme volume para coleccionadores e fãs. Ainda assim, esta é uma oportunidade variegada de tomá-lo por esse prisma. Reúnem-se desenhos sobretudo de aguarelas, acrílicos e lápis de cor, de todas aquelas primeiras páginas de capítulo que costumam sair nas revistas originais, projectos de capa, ilustrações individuais de materiais promocionais, um número demasiado contido de pranchas originais ou esboços, um curioso fac-simile de um caderno escolar no qual se desenrola uma proto-banda desenhada muito devedora aos autores da moda, que o autor leria e procurava imitar. Ainda algumas pranchas de projectos que nunca seriam desenvolvidos, mais são sinal desde logo de um processo de pensamento em acção, e que aliam - por traços e estratégias visuais claríssimas ou por citações directas - a influência “gémea” sobre Urasawa de Tezuka e Moebius.
É quase óbvio e expectável que se pontilhem essas páginas com uma entrevista a meio-gás, e os textos de análise, crítica ou balanço são quase inexistentes, subsumindo-se a brevíssimos resumos das séries assinadas por Urasawa. Juntem-se mais uma quantidade risível de fotografias tiradas no estúdio, provavelmente em apenas um dia e sem sinais quer dos seus colaboradores (sublinhando o mito do “autor solitário” e “completo”) quer de trabalho efectivo, e temos o projecto feito. Independentemente do número de anedotas e pormenores a que temos acesso, e servem sempre à construção da fama e à alimentação dos fãs, e a sumptuosidade do volume, ele não serve tanto o propósito de um balanço crítico, ou sequer de um mapeamento didáctico da carreira ou de uma introdução geral, mas a confirmação dos mais correntes processos de normativização dos “génios”.
Repare-se que não estaremos a negar a capacidade e a qualidade do trabalho de Naoki Urasawa ele-mesmo, sobre as quais discorreremos nos próximos textos, discutindo somente, aqui, a estratégia comercial estreita que impera à fabricação deste livro.
Não sendo um título equivalente a Naoki Urasawa. L’air du temps, de Orsini, é ainda assim este volume um acrescento ao conhecimento visual deste autor.
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