Como temos por vezes discutido a propósito de outros títulos, a banda desenhada encontra nos dias de hoje um movimento de expansão incomparável a qualquer outro momento da sua história, no que diz respeito a géneros, estilos, propósitos e até mesmo ontologias (a única expansão que não se verifica é a da circulação cultural e consolidação financeira). Isso assegura que cada vez mais “banda desenhada” se torne apenas um descritivo quase formal, enquanto meio, e sejam necessários outros termos, mais individualizantes, para se entender o que se está a falar quando dizemos que “este é um livro de banda desenhada” (e mesmo o emprego da palavra “livro” abre desde logo toda uma série de outros problemas).
Estamos em crer que o caso presente, Flic, não seja propriamente uma crise total, mas pelo menos uma sua pequena inflexão ou ponto interessante. Bénédicte Desforges faz parte de um grupo crescente de pessoas que transformou os blogs em plataformas, de facto, de espaço para as suas próprias vozes, ou até mesmo de criação das suas próprias vozes, as quais usualmente estavam afastadas do “espaço público” permitido pelos meios tradicionais de comunicação, aos quais a literatura, sem se subsumir a eles, com eles se engrena. E que depois, por razões dos fenómenos contemporâneos do mercado livresco, se veriam transpostos para livros. Isto ocorreu com categorias profissionais variadas, de cozinheiros a educadores, de trabalhadoras do sexo a, com Desforges, agentes policiais. Tudo isto pertence, porém, a um objecto de análise que outros críticos saberão melhor expor e discutir.
Desforges foi tenente da polícia de Paris, trabalhando sobretudo nos banlieues de Paris, desde logo entendidos como conceito carregado de significado sociológico, político e cultural, “fronteiras interiores” como escreveu um psicanalista. Mas estas memórias, se assim as podemos chamar – ou sejamos mais exactos, aquilo que sobre-vive neste livro de banda desenhada -, não constituem propriamente um olhar de análise dessa mesma realidade social. Menos do que uma autobiografia, são uma colecção de pensamentos, ideias, e episódios da vida de Desforges. Havendo dois livros publicados, baseados no blog da autora, mas cujos textos não lemos, não podemos confrontar as duas realidades textuais, ainda que tudo aponte para que a produção e estruturação deste livro seja do próprio Séra, aproximando-se até de um certo estilo ou voz desse mesmo autor, que já havíamos lido anteriormente. Ainda que existam com frequência uma sequência de algumas vinhetas ou mesmo páginas que acabam por compor uma estrutura narrativa simples, o seu conjunto é mais fragmentário, fluido, dissemelhante, e por isso mesmo aproximando-se de “analectos” ou “aforismos”.
Apesar dos documentos que acompanham e apresentam Flic falarem de “adaptação”, é algo mais complexo que isso mas menos complexo do que aqueles projectos que trazem crises muito sentidas dos conceitos de memória, autobiografia, representação e voz própria como os casos de Emmanuel Guibert com Alan Cope e Didier Lefèvre, ou de Alissa Torres com Choi Sungyoon. Quer dizer: Flic é mais complexo que “uma adaptação literária” pois não é apenas uma transmediação, uma transformação da matéria escrita numa outra (banda desenhada), se bem que tenha atravessado esse processo de produção, pela parte do autor cambodjano-francês Séra. Pelas próprias características de trabalho deste autor, há aqui uma procura pela fabricação de um encontro mais intenso de vozes, personalidades e criação do que a mera transposição das “histórias” ou das palavras para outro veículo. Porém, é menos complexo no sentido em que não se trata propriamente de uma colaboração íntima entre os dois autores, nem uma procura através do artista pela voz do narrador-protagonista, que é o que ocorre nos casos de Cope e Torres, que não veiculariam a sua história caso não houvesse o encontro com os autores de banda desenhada respectivos (cada qual com as suas especificidades e circunstâncias de extrema importância; e a que agora acrescentaríamos o exemplo de Kunwu e Ôtié, que trazem uma outra dimensão a explorar).
Ou seja, Séra terá feito as suas escolhas e o seu trabalho de moldagem sobre os textos de Desforges, escolhas essas pouco consuetudinárias com as mais repetidas adaptações, e que deixam, como numa metáfora de W. Benjamin, as marcas sobre a narrativa como o oleiro deixa as marcas no seu trabalho.
Talvez por essas razões, porém, estamos aqui longe de qualquer exploração psicológica de algo que pudesse constituir um centro traumático na vida da protagonista, já que a violência surge repetidamente na sua vida, sob as mais variadas formas – o namorado espancado por jovens, suicídios violentos, cadáveres caudados por várias mortes, do esquecimento ao assassínio, violência doméstica. Ou melhor, não se seguem as costumeiras vias dessa exploração, como por exemplo o desarrumo temporal que ainda assim imporia uma fábula organizada e linear, ou diferenciações de momentos através de intensidades visuais-afectivas. A estrutura de pensamentos soltos derrota desde logo essa capacidade ulterior da parte dos leitores em reconstruirem uma intriga centralizada. E a tensão permanente na vida de uma agente de polícia fica visível a cada página.
Mas não há uma total ausência também de momentos de distensão, de pequenos humores ou prazeres ou interrupções dessa vida. Aliás, nos momentos em que a própria Bénédicte é representada “fora das acções”, ela está a tomar um banho de imersão prolongado, o que traz uma estranha camada a todo o projecto. Por um lado, é uma forma da narradora-protagonista-autora estar fora da matéria que narra, um intervalo nos acontecimentos, um enquadramento da sua pessoa, mas por outro parece cair naquelas fórmulas sobejamente conhecidas da banda desenhada franco-belga de “fan service", em que contemplamos o corpo da heróina desnuda, sem uma razão diegética plausível. Fetiche do ilustrador? Narcisismo ou mesmo exibicionismo pela parte da autora? A força da gravidade das fórmulas bedéfilas? Ou talvez uma mistura disso tudo…
Em todo o caso, talvez seja necessário temperar o que afirmámos acima, de não haver “um olhar de análise dessa mesma realidade social”. Afinal, olhar há, e duplo. Primo, o da própria Desforges, fruto da sua experiência pessoal (corroborada por várias estratégias, desde as do “pacto autobiográfico” dos paratextos e do pronome na primeira pessoa à integração de vários aspectos que remetem ao “mundo real” como imagens transformadas de jornais, vídeos, revistas, etc.) e conduzida pelas suas palavras no blog e seus dois livros. Secundo, aquelas transformações operadas por Séra, que não deixa de apostar em grandes planos sobre rostos, quer da protagonista quer das inúmeras pessoas que compõem aquelas paisagens, passando por estratégias significativas de fragmentação das composições e das cores (usualmente soturnas, glaucas, azuladas-escuras, para fazer salientar aqueles desenhos apenas a linha, ou os brancos, ou os súbitos vermelhos, ou os luminosos amarelos) que não são de forma alguma canais desapaixonados e “objectivos” dessa mesma realidade. A própria existência do livro, e o seu modo, aponta a um olhar social passível de análise. Simplesmente está ausente uma consideração verbalizada ou intelectualizada desse mesmo olhar. Mas será ela necessária?
Flic, traduzível como “chui”, ou mais correntemente “bófia”, pretende criar uma imagem mais correcta, equilibrada e rés-da-vida da polícia, por uma polícia. Por isso lemos, logo ao início, “As pessoas sempre adoraram histórias de bófias. Mas as pessoas não gostam deles”. E continua, enumerando os papéis que lhe são atribuíveis, de “chui culturalmente conforme”, “o emmerdeur institucional”, “o torcionário latente”, “o subproletário pugilista da função pública”, ao mesmo tempo que – estratégia somente de Séra, ou já presente nos livros? – se mostram imagens emprestadas de filmes, séries de televisão, bandas desenhadas, todas elas com os detectives à paisana no meio do seu trabalho de investigação. Nunca mostrando o ritual de passar multas, de identificar prostitutas, de vigilar manifestações, de atender a suicídios, assassínios e casos de violência doméstica, muito pouco românticos, nada espectaculares, bem pelo contrário deprimentemente correntes.
Não se pode esperar que uma agente das forças da lei criasse uma crítica alargada da própria instituição de que faz parte. Não obstante, há várias frases, ou mesmo episódios, nos quais se não se tecem propriamente críticas há pelo menos um reconhecimento da percepção que certas camadas da população sentem em relação aos polícias. Afinal, e em França haverá contornos particulares diferentes mas análogos aos da polícia portuguesa, não há falta de casos de violência e abusos da parte das forças policiais, a contínua e miserável política da “interpelação”, os erros de juízo, a forma como essas forças contribuem para as opressões mais ou menos veladas dos poderes vigentes (através das multas, dos despejos, dos cordões de segurança, etc.).
A maneira como ela não esconde os abusos verbais de um comissário bêbado perante uma vítima de maus tratos continuados, a amizade ou estranho companheirismo que parece nutrir por uma prostituta toxicodependente, ou os prostitutos transsexuais, e aspectos quotidianos ou quase idiotas da vida de um polícia de giro, podem fazer surgir algumas brechas no possível discurso heroicizante ou que desculpam as próprias forças oficiais. Mas ao mesmo tempo, a subsunção de todo o aparato legal e de força que a polícia representa a uma só voz particular poderá apagar precisamente a edificação e naturalização dos seus processos.
Enquanto modo de voz própria, Flic não deixa de ser, porém, um projecto estimulante, e até mesmo provocador, e que aumenta, a seu modo, a circunferência dos géneros da autobiografia, das memórias pessoais, dos retratos sociais das pessoas e das sociedades a que pertencem ou que as definem. Aliás, uma questão de fundo deste livro é mesmo entender qual a equação correcta: se é uma colecção de cidadãos que perfaz uma sociedade ou se é esta que é condição dos cidadãos, nos seus diferentes papéis.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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