5 de março de 2013

Zines Coven (2012-2013)

É sobretudo em ocasiões como a Feira Laica (cuja última edição causará saudades), ou outros encontros quejandos, que se pode ver alguma alegria convívio em acção entre autores que optam por modos de publicação alternativos, muito diversos entre si, que entram em circuitos comerciais muito próprios, mas respondem não apenas aos desafios económicos da contemporaneidade, como às mais diversas atitudes estéticas face ao território da banda desenhada. Algumas destas publicações foram compradas na Laica, outras trocadas noutras ocasiões, e algumas mesmo tivemos o prazer de as receber por correspondência. Tudo isto parece aumentar essa “comunidade”, que menos do que procurarem uma identidade homogénea, bem pelo contrário buscam activamente um diálogo entre a diversidade de estilos, géneros, humores, graus de seriedade (seja isso o que for), estratégias (temos aqui exemplos de tiragens de 20 a 500 exemplares), formatos, materialidades, e por aí fora. Chamem-se fanzines, perzines, comic books em print-on-demand, edição de autor, selo editorial, projecto alternativo de associação, revista independente, etc (citaremos entre parêntesis apenas os exemplos de estruturas editoriais ou quando existirem nomes desejados como significativos pelos autores)., todos estes objectos unem-se, pelo menos a nosso ver, numa saúde muito particular - ainda que confinada possivelmente a um público reduzido – destas linguagens gráficas. Não queremos de forma alguma aplanar estas produções, cada qual com pesos diferentes, e esperamos que os próprios autores não avaliem o facto de as julgarmos válidas a todas que estejamos a desconsiderar as suas especificidades ou a omitirmos a noção, sempre presente no nosso espírito, de que terão públicos e sucessos bem diferentes, que respondem de modos diferentes e a tradições diferentes, e que merecerão ser ombreadas a variadíssimos outros objectos, não necessariamente aqueles que se irmanam aqui, sob o signo da tal saúde editorial. Numa ocasião futura, falaremos de um grupo idêntico, mas de autores estrangeiros que por cá passaram.
O nome do pai/O pequeno outro. Topedro. Conforme os projectos anteriores do autor (vejam-se os seguintes links * * * *), também estes dois volumes (na verdade, um englobando o outro – salvo diferenças de impressão ou nossa distracção) pretendem dar continuidade a uma problematização do gesto autobiográfico tal como tem sido experimentado no campo alargado da banda desenhada. Os títulos-citações, os sub-títulos que reclamam um género, as negociações entre texto(s) e imagem(ns)e a estruturação narrativa são as três grandes frentes desse esforço. Dizemos títulos-citações, pois “o nome do pai” e “o pequeno outro” são conceitos-chave do edifício psicanalítico de Jacques Lacan, de resto citado em epígrafe no início de cada uma das narrativas, epígrafes que devem ser lidas com muita atenção dado que elas lançam luz – ou melhor, como Bergson, que afirmara em Matéria e Memória, frase já citada por nós noutras ocasiões, “o que é preciso para obter essa conversão não é iluminar o objecto, mas ao contrário obscurecer certos lado dele” – sobre o projecto no seu interior. As nossas memórias surgem-nos como mais ou menos nítidas, mas quase sempre elas são sentidas como fazendo parte de uma verdade incontroversa e experiencial: mas a verdade é que nós tecemo-las ao longo da vida através do acesso do relato dos outros, por integrarmos fotografias que vimos, ou até por auto-fantasia, ou outros processos. A memória é, portanto, um processo relacional. Topedro não parece apresentar uma posição definitiva de qual a sua relação com os acontecimentos que nos apresenta enquanto “autobiográficos”, e bem pelo contrário revela continuamente os “pontos cegos” dela.
Os sub-títulos aumentam essa ruptura com uma ideia mais ou menos clara da autobiografia, optando antes por “auto grafia” (recordando o termo técnico da impressão, a ideia de algo assinado pelo punho de um autor, logo objecto indexado a ele, mas pela separação dos termos instala a crise) e por “biogra fria” (sublinhando a distância entre aquele que hoje conta, aproveitando os elementos do pretérito, e aqueloutro que, supostamente, viveu esses mesmos elementos). Quanto às relações texto-imagem, Topedro continua a não precisar das esquadrias reguladas da banda desenhada convencional, ou sequer de outras estruturas de géneros de narrativas visuais mais usuais, antes apresentando um modelo aberto do caderno gráfico, de esboços rápidos, de apontamentos textuais. E se a relação entre as palavras e as vinhetas é literalmente descritiva ou ancoradora, por vezes, ela procura brechas entre o que se conta verbalmente e o que se promete ou corrige ou desvia imageticamente. O livro “O pequeno outro” apresenta na verdade duas narrativas, a primeira repescando a matéria contida em “O nome do pai”, a segunda um retorno ao mesmíssimo ponto de partida da anterior, mas depois procurando novas direcções. Mais, algumas das frases são exactamente iguais, com pequenas diferenças de distribuição e integração, mas as imagens são totalmente diferentes: num caso apresentando perspectivas diversas do que poderá ser visto como o mesmo “evento”, noutro providenciando associações totalmente diferentes. Não nos parece que o autor queira explorar tanto a questão da “verdade” como a hipótese de que, a cada acto rememorativo, e a cada efabulação, a coordenação do que perfaz as nossas vidas pode sempre obedecer a caminhos diferentes. Finalmente, Topedro também abdica de estratégias narrativas convencionais: não temos uma auto-representação contínua e coesa, nem episódios de vida narrativamente fluidos, por vezes escolhem-se como que listas (de carros, no caso) para fazer avançar o tempo, não há diálogos que permitam um acesso fictício às outras pessoas com as quais o protagonista se relacionou e criou vida, etc. Acentua-se, bem pelo contrário, um certo egoísmo de perspectiva, uma economia compacta “do que interessa”. Na verdade, Topedro norteia a sua obra por uma certa falta de transparência, ou uma abdicação da procura pela ilusão de transparência que alguma banda desenhada cumpre, para sublinhar a ficção que as autobiografias providenciam, no fundo; não há qualquer hipótese de (falsa) intimidade aqui entre o leitor e o autor. Este apresenta-se mas encontra-se sempre em fuga permanente. Não poderá haver dúvidas de que, desde logo, temos aqui um projecto que coloca a crise de auto-representações, até de um modo filosófico explícito em certas passagens, na própria superfície da sua expressão.
Thermidor 1929. Jorge Oliveira. Este é, em todas suas dimensões, um comic book. No tamanho, número de páginas, no formato, nas estratégias comunicativas e económicas, corroborado pela própria integração dialogante com o mercado norte-americano (a publicação é em língua inglesa), no qual o autor desde logo navega. O descritivo acima do título demonstra a promessa de ser um trabalho de maior desenvolvimento apresentado na forma serializada desse formato. A intriga coloca um aventureiro português, sem nome, aparente membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, na senda de uma misteriosa cidade mítica no sul da Arábia Saudita, a Cidade dos Mil Pilares (também conhecida como Iram, Ubar, Waram, etc.) do Corão. A acção começa de imediato no inóspito deserto Rub’ Al Khali, onde se encontram variadíssimas crateras de impacto de meteoritos, mas que nesta trama são arrestados para os tais contornos de mistério.  É em flashback que estamos na Lisboa do final da década dos anos 1920, e encontramos alguns elementos que complicam desde logo a aventura, até no que diz respeito às suas próprias razões, e a organização do tempo. O tipo de trabalho de figuração e cor faz-nos lembrar alguns autores da Avatar Press, como Jacen Burrows ou Juan Jose Ryp (sobretudo no equilíbrio entre a clareza das figuras e as texturas densas nos materiais representados). Jorge Oliveira tem uma abordagem straightforward à banda desenhada, absolutamente nítida e legível. As referências à cidade corânica, a Turing e hipercubos, a possíveis viagens no tempo, a códigos e mapas, e a ambientação numa Lisboa passada mas desde logo imbuída de um tom de fc inscreverá Thermidor 1929 no género do steampunk [dieselpunk, corrigem-nos], e é muito curioso que isso aconteça desta forma tão organizada. Encontraremos experiências mais ou menos tentadas por vários autores portugueses, mas usualmente associadas a projectos publicado em revistas ou fanzines ou projectos universitários que acabaram por jamais encontrar a continuidade, que confirmaria ou não a sua sustentabilidade a longo prazo. Apesar do grau de revelação de informação, para a criação de um verdadeiro suspense, seja algo artificial neste primeiro número – isto é, ele não decorre das acções apresentadas mas pela forma algo forçada em que os elementos nos são impostos, e é algo verbosa -, está tudo preparado para que a saga tenha um seguimento consequente, algo fortalecido por todos os aspectos paralelos da criação do autor, que inclui instalações e música.
Doom Mountain. Zé Burnay. Esta publicação é igualmente um comic book pelo seu formato, e não deixa de estabelecer um diálogo com algumas tradições da banda desenhada, ora mais recuada ora mais hodierna, mas sempre no mundo do horror. As referências espalhadas pela primeira história, “Dopemageddon”, em t-shirts e posters, fazendo referência às notáveis bandas Sleep e Electric Wizard (e os Grief; o título da história seria perfeito para um álbum dos E.W.), lançam logo uma pequena rede intertextual que é ela, em si mesma, já pejada de referências: cinema gore e rituais satânicos, uma certa propensão a uma imoralidade ou angústias muito construídas, o abandono aos prazeres esfumados da cannabis, tudo numa imagem muito pensada, e que tipificam o doom, sludge, bong metal e associados. Desse cadinho, emerge a seguinte sinopse: um meteoro caído numa plantação de cannabis transforma os seres humanos em zombies feitos de erva, que procuram matar os seres humanos, e acompanharemos a fuga de um casal, Nux e Wizard… Na verdade, Doom Mountain encerra três histórias, a maior que citámos, episódio a continuar, e outras duas curtas, sendo a mais pequena a “origem” do protagonista da primeira. Mas todas elas, além dos falsos anúncios, remetem para essa complicada rede de referências. Burnay já experimentara águas parecidas, com laivos de humor, em Deathgrind, mas parece-nos que este título poderá tornar-se uma plataforma para ele experimentar uma narrativa mais alargada e, talvez, consequente, no sentido de procurar respeitar fórmulas mais convencionais (se for esse o seu interesse). O domínio das estratégias de composição, focalização e ritmo dos eventos é por demais competente, intuitivo, e em bruto, salientando a sua abordagem enérgica e uma contraprova de que o THC pode diminuir as capacidades cognitivas e motoras… Tal como a obra de Afonso Ferreira ou de outros autores, encontramos aqui um trabalho que está menos preocupado com fechamentos de género imediatos, ou respeito por uma qualquer categorização, mas são capazes de beber de variadíssimas fontes, aparentemente desconexas ou contraditórias, desde as sagas à la Mignola passando pela estilização da animação contemporânea, à arte das capas de discos ou da tatuagem, etc. (encontrando afinidades com projectos tão díspares como os de Brandon Graham, Michael DeForge, ou Adventure Time).
Love Hole. Afonso Ferreira (Chili Com Carne). Fazendo parte da colecção Mercantologia, como o título, mais à frente, de Lucas Almeida, Love Hole reúne aqui os episódios desta pequena saga que teve a sua primeira vida ao longo dos números da excelente antologia Lodaçal Comix. Esta história mistura vários géneros, mas acima de tudo é uma desvariada combinação de ficção científica, horror gore, slacker e pornografia humorística. A personagem principal acorda e depara-se com um seu sósia que chegou a “este” lado através de um portal interdimensional, o “wormhole”, e rapidamente se revela que experimentaram aquilo que para a personagem principal são os seus limites sexuais, experiência em relação à qual, por se arrepender, tenta corrigir pela violência. Logo a seguir surge outra/o sósia, e os eventos em catadupa, encadeados de forma quase mecânica, lançam-no em novas acções cada vez mais absurdas e estrambólicas, envolvendo pickles de partes de corpo humano, canibalismo, e monstruosidades capilares com habilidades psicocinética. Mas acima de tudo, o que está no centro da história é uma fantasia sobre o desdobramento de si-mesmo, com vários graus de variação, e a experimentação sexual que isso poderia implicar. Fôssemos adeptos de psicanálise biografista barata, haveria algo a dizer sobre essas fantasias acabarem por abordar uma espécie de homofobia que não vela assim tanto o seu próprio homoerotismo, o que é revelador tanto do humor como do tormentoso que Love Hole provoca. A estilização límpida de Ferreira, aliada a diálogos em inglês coloquial, estruturados numa composição clássica, transforma este num projecto de grande legibilidade e coesão (afinal, é uma história completa), aspecto que nem sempre é verificado no mundo mais independente e urgente.
Megafauna/Inner Math. João Machado e André Pereira (Clube do Inferno). De certa forma, encontramos algumas afinidades desta publicação com as duas anteriores, e a próxima, no sentido em que trazem igualmente para uma mesma superfície referências oriundas das mais diversas fontes, aparentemente irrelacionáveis em termos de género. O que nos levará a um descritivo como “ficção científica experimental” ou “underground mainstream”, ou algo assim. Os autores criaram o que chamam de flipzine, isto é, uma publicação com duas histórias que começam cada uma na sua capa e encontram no centro físico do objecto a ponte de relação directa. Por um lado, temos “Inner Math”, uma história escrita (em inglês) por João Machado e desenhada por André Pereira, que nos lança numa aventura num futuro distante, que envolve cidades cujos edifícios ultrapassam a troposfera, sistemas de comunicação rodoviária monumentais, estruturas de habitação ultratecnológicas, e, pela distância imaginada, um sistema cultural totalmente estranho ao leitor contemporâneo (nesse sentido, recorda aquelas descrições que Alan Moore fazia de Rann na saga do Monstro do Pântano, ou a escrita de Brandon Graham para Prophet). Vemos uma personagem, de armadura e “skate” voador, a atravessar estas paragens, ao mesmo tempo que um narrador, que tanto se pode estar a dirigir ao leitor como ao protagonista, de tão líquido e fugaz que é o “you”… Um confronto final, e quase inesperado, faz a narrativa chegar a uma possível resolução, mas não é mais do que um embate com a linha conclusiva da outra história.” Megafauna”, por sua vez, foi criada por Pereira, a solo, e não tem qualquer texto. O que vemos parece ser um momento nos primórdios dos seres humanos (Neanderthais?), e um estranha ritual mágico, que implica a decepagem de um recém-nascido, e a adoração de um mamute caído, cujas presas se levantam como uma lua, que o céu ostenta. Estes elementos “electrificam-se” e daí nasce um outro conflito, que multiplica os corpos e liberta uma espécie de ser divino, mescla de mamute, humano, Kali e Ganesha e Novos Deuses (Kirby). Há portanto aqui um encontro entre uma linha no passado distante e outra no distante futuro, que poderá recordar as fórmulas contidas em Final Crisis, de Morrison, que beberão das mesmas fontes (Kirby), mas que encontram neste zine uma destilação através de estratégias mais experimentais. Se há algo em comum nestas duas histórias talvez seja mesmo aquela estranheza a que aludimos. As mais das vezes, as ficções criadas em tempos afastados do nosso, seja em que direcção for, preferem sempre um qualquer grau de segurança pelo tratamento do comum e da familiaridade, mas é difícil crer que ela pudesse existir. Pereira e Machado optam antes por, através de estratégias poéticas – quer a nível da linguagem, que se afasta do coloquial, quer a nível das imagens, cujas opções compositivas e de sinais simbólicos da banda desenhada exploram formas pouco convencionais – sublinhar essa estranheza e fazer colidir ambas as linhas. André Pereira é detentor de uma abordagem figurativa de uma fluidez muito tranquila, misturando pequenos modos de moldar as expressões das suas personagens no rosto e nos corpos,  e segue algumas das potencialidades criadas por autores usualmente associados a um certo psicadelismo, de Isabel Lobinho a Jim Starlin, patente nas formas dos objectos, edifícios, cidades, nos emanata (raios, balões preenchidos com símbolos indescortináveis, projecções de energia, linhas de electricidade) até ao nível da composição, com significativos esquemas de passagem entre vinhetas aparentados a infografia, e a um uso de películas transparentes que ofertam uma ideia de densidade textural e nivelação matéria a todas as imagens (cujos efeitos, num momento ou outro, são significativos em termos da acção representada). Um trabalho patente no último concurso da Amadora, e que pensamos ser incluído nalgumas das edições desta publicação, são prova também do domínio que o autor tem no que diz respeito ao uso de cores não-naturais e expressivas. 
Ghost Speaker. Mao (Clube do Inferno). Esperamos que as afinidades que encontramos este título e o anterior não derive epidermicamente da circunstância de os ter lido em conjunto. E muito menos pelo facilitismo de serem ambos lançados pelo mesmo selo editorial. Este é um pequeno livro quadrado que cabe na capa da mão, impresso a três cores com uma técnica aparentada à (ou mesmo em) serigrafia, com trinta e cinco imagens isoladas em cada página, sem qualquer tipo de texto (com uma única excepção, uma nuvem onde se lê “wing dings”). Estas imagens não parecem partilhar de nenhuma taxonomia comum: existem rostos (a eles voltaremos), animais, em corpo inteiro ou apenas as cabeças, várias espécies de vegetais ou fungos, alguns objectos inanimados, máquinas mágicas, um exemplo de híbrido (uns lábios com uma cadeia), um símbolo hermético, o que pode ser visto ora como uma hélice do ácido nucleico ora baços de galáxias… Talvez seja mesmo esta última pista, inanalisável, que aponta a uma possibilidade de relação entre estas imagens díspares. Onde no título anterior se colidiam linhas díspares de tempo, aqui encontramos uma questão de escala, que não procura qualquer tipo de organização reconhecível, mas antes uma aleatoriedade na sua apresentação. Desde os mais pequenos fungos e vermes a gigantes estruturas ou seres. Claro que podemos estar totalmente enganados, uma vez que estas figuras flutuam num fundo sem qualquer contexto ou ancoramento espacial e referencial: o que julgamos “pequeno” pode bem ser monstruoso e o que nos surgiria como monumental pode ser minúsculo. Seja como for, a presença dos rostos, lavrados a linhas duras, angulosas, como que esculpidas de forma bruta, recordam algumas das personagens de um Kirby tardio (falaríamos de Etrigan, dos Novos Deuses, e até do Cubo Mágico, que parece pulsar numa das páginas!). Não há nenhuma narrativa clara nesta estrutura, e mesmo o subtítulo/epígrafe/explicação do título – “someone who speaks in place of others” – não ajuda a qualquer decisão, mas antes a esse permanente desvio de uma ordem sempre desejada, movimento cognitivo absolutamente natural nos seres humanos, para mais quando se confrontam com objectos desta natureza, mas que o artista Mao não satisfaz de maneira nenhuma. Essa insatisfação, porém, não é uma falha do projecto, bem pelo contrário é o afecto que consegue fazer emergir nos seus leitores, que se vêm lançados num estranho cerimonial de leitura comparável ao dos livros de Emblemata, ainda que Ghost Speaker não prometa chaves dos enigmas, mas um contínuo relançar deles.
O Hábito faz o monstro. Lucas Almeida (Chili Com Carne). Reunido muitas das histórias do fanzine do mesmo título (de que falámos então aqui e aqui), com mais algum novo material, é forçoso que encontremos aqui níveis vários da proficiência do autor. Desenhos urgentes e cheios, sequências de narrativização mínima, situações curtas que poderiam ser chamadas de “poemas”, haustos mais longos e que bebem de várias fontes, algumas mitológicas, este volume junta todos os pontos fortes do autor, desde aquilo a que chamáramos “bizarrias” numa ocasião anterior até a um modo muito próprio de tecer histórias, que a um só tempo parece pautar-se por instrumentos clássicos e normalizados, mas ao mesmo tempo não deixa de fazer transparecer as formas possíveis de fuga a esses mesmos modelos. É difícil não querer cair na tentação de uma leitura psicologizante em relação às história do “Jovem”, mas como se optasse por alegorias simbólicas, abdicando de qualquer ancoramento com a realidade quotidiana.  A saga desta personagem, em todo o caso, é curiosa a vários níveis, pois se a leitura de cada episódio surgiria de uma forma quase autónoma, e pautada, em cada fanzine surgido, a sua leitura corrida e de uma assentada provoca uma certa estranheza. É que cada episódio parece manter a sua autonomia, em termos de humor, ritmo, estilo gráfico mesmo, mas ainda assim a sua coordenação acaba por fazer sentido, como se de facto o Jovem, como uma espécie de Dante suburbano pós-moderno, atravessasse vários círculos de referências de um Inferno muito pessoal, um Inferno muito lá de casa. São trabalhos viscerais, seguramente catárticos, que encerram uma das razões pelas quais os fanzines são uma plataforma de auto-exploração.
Psicose. Miguel Costa Ferreira e João Sequeira (El Pep). Este livro reúne, para além da história principal e maior, outras três, julgamos todas elas escritas por Ferreira e desenhadas por Sequeira. O livro, em termos materiais, parece mimar um pequeno caderno de desenho, e isso leva-nos a imaginar a ficção de estarmos não tanto a ler um livro reproduzido tecnicamente mas a folhear o objecto original onde os autores tivessem criado a sua história (aparentemente, o livro está próximo desse objecto original). A história intitulada “Psicose” segue uma personagem sem nome, e com muitos dos seus atributos possíveis – idade exacta, formação profissional, nacionalidade, etc. – “apagados”, criando-se um ambiente desligado de circunstâncias específicas, desenraizado, vago, remetendo-nos para universos diegéticos em que o absurdo e o opressivo se cruzam, e que não podemos evitar cair num cliché: kafkianos. Mas Poe, Cortázar, Machado de Assis, Mrózek, Daniil Harms, Sade, também teriam aqui lugar. O protagonista, um alienado que parece recuperar momentaneamente uma espécie de razão e tenta eclipsar-se do seu asilo, vai descobrindo alguns dos segredos desse espaço. Os autores não criam tanto uma intriga de descobertas e de um sentido unilateral, uma vez que a voz está na primeira pessoa e tudo é filtrado por ela, e no fundo não é fiável. É possível que o seu despertar de uma alienação a tenha tão-simplesmente lançado noutra, como seguramente concluirá o leitor no final da exposição. Mas se “Psicose” parece aliar-se a alguma ideia do absurdo sem raízes imediatas, já “República” (criada num contexto de concurso, e vencedora) refere-se directamente à história de Portugal. “Movimento perpétuo” e “the road” (em inglês) já têm contornos mais poéticos, se bem que muito distintas. Em termos gerais, ou talvez apenas com a excepção de “the road”, o signo destas histórias é de facto o absurdo, enquanto género. No entanto, é importante salientar que aquela características que avançámos acima, a de que uma das suas características seria o desenraizamento contextual, é, na verdade, uma falsidade, pois o absurdo só pode surgir num contexto social em que esse absurdo faz parte da vida quotidiana, e o que este género faz é destilar esses elementos e reapresentá-los na sua mais concentrada forma. Qualquer português, minimamente vivo e atento a este momento, saberá que isso é muito nítido à nossa volta. E se bem que “Psicose” seja bastante soturno, não deixa de ocultar algum tipo de humor distanciador. A soturnidade é corroborada pelo trabalho plástico de Sequeira (e temos acesso a alguns processos de trabalho nos extras finais do volume), adepto de um “talhar” as figuras através de rápidos traços com vários materiais riscadores, nalguns casos sobrepondo-os e criando uma textura desconcertante. É possível mesmo que use corrector, tintas secas, colagens, salpicos de tinta, papéis ou materiais texturados, e uma técnica de tinta espalhada, esborratada ou arrastada numa superfície pouco absorvente. O resultado é denso, onde as suas figuras frágeis e esquálidas parecem não estar seguras se devem ou não diferenciar-se do seu fundo. Essa confusão (num sentido positivo) é particularmente sublinhada em “the road”, em que a última página ostenta a estrada, feita apenas da mancha branca que não levou tintas, levando-nos a uma possível interpretação de que a matéria dessa história é a própria banda desenhada enquanto meio e caminho para os seus autores.
[D]ejected # 5 e #6. Os Positivos. É curiosíssimo ver, num autor cuja publicação, Road Trip, se assume, não sem uma enorme dose de ironia, de “propaganda”, e com contornos políticos bem vincados, tenha criado uma outra linha de desenvolvimento narrativo, a longo prazo, num espírito totalmente diferente. Na verdade, não conseguimos pensar em nada mais do que “culebrón”, um dos termos para telenovela em espanhol, e que pretende dar conta da forma como a sua história e arrasta largamente… Bastará ver a página de resumo feita pelo próprio autor, deste seu título publicado online (e que ganha neste pequeno formato uma outra maneira de circular), para entendermos as tremendas redes nas quais ele lança as suas personagens. Como é costume do seu trabalho, a acção muitas vezes é interrompida para se revelar o “making of” da própria história que se desenrola à frente dos nossos olhos (não, não foi preciso surgir a frouxa Odisseia nas nossas televisões para haver metalinguagem e humor com a mesma), de maneira a permitir bastos exemplos da dita “quebra da quarta parede”. Aliás, os modos do teatro, da anedota, do concerto, e possivelmente de outras esferas informam sobremaneira o trabalho de Os Positivos. Se a forma se mantém – uma espécie de minimalismo de formas e símbolos, quase aparentado a certos modos da banda desenhada infantil -, e também a linguagem coloquial, estamos em crer que se nutrem aqui apetências, desde logo conseguidas, de tramas narrativas alongadas e complexas, e bastante reveladoras dos “jogos humanos” que as relações implicam. Esta expressão deve mesmo fazer recordar o título do livro de Paulo Patrício e Rui Ricardo, não sendo, portanto, inocente. Mas onde os autores desse outro álbum acabavam por procurar construir uma história algo anódina em relação às paixões e às pulsões físicas, Os Positivos enfrenta os demónios de caras. Poderíamos dizer que onde uns usam uvas de pelica, os outros usam cabedal de fisting. Uma outra repetida estratégia do autor (também cumprida através das suas divertidas newsletters) é uma acerba e franca crítica da “cena” da banda desenhada nacional, à qual nada nem ninguém fica incólume (tampouco o autor destas mesmas linhas, presumimos nós, esperando não sermos presunçosos em demasia nessa ideia). Pouco importará se concordamos ou não com as ideias apresentadas, mas a leitura crítica que faz de Hän Solo, de Lacas, é reveladora do tipo de abordagem enérgica e catártica e espontânea (“com pêlo na venta”, em linguajar mais directo) que o autor propõe precisamente com a novela de [D]ejected. E consegue-o. Não apenas a sexualidade é central, como desabrida, e por mais fantasiosa que pareçam estas ligações, elas correspondem a experiências reais e havidas por muitas pessoas, longe dos espartilhos heteronormalizadores que ainda se desejam criar em tantos locais. E mesmo o humor, por vezes bruto, violento, homofóbico, cruel, não faz mais do que derrubar ainda tantas outras fronteiras “sérias” que os bem-intencionados desejam criar em torno da exploração das “vidas alternativas” (alternativas apenas em relação aos tais modelos). De uma forma nem fácil de conquistar, Os Positivos conseguem, como diz a expressão, guardar o bolo e comê-lo.
Idle Odalisque. Astromanta e Hetamoe. Este é um pequeno fanzine A6, de folhas azuis, que se inscreverá no círculo dos amantes de mangá. A história é minimal, tem pouco recurso à matéria verbal (em inglês e, numa ocasião, caracteres katakana) e emprega um estilo muito, muito simples. Aliás, a artista, que assina como Hetamoe, revela através desse nome composto por palavras japonesas os instrumentos da sua linguagem: “heta” significa “desajeitado” ou “inapto”, ao passo que “moe”(pronuncie-se “mô-é”) é um termo em calão contemporâneo, aberto e algo ajustável, que se pode referir a um conjunto de objectos de atenção, sobretudo um certo tom de humor, auto-consciente do seu ridículo, que mistura tanto o “fofinho” (cute) como o “tonto”, ou a figuras femininas, usualmente de ar inocente e virginal (para melhor as conspurcar, no limite das legalidades e comportamentos aceites no consenso social). No que diz respeito à banda desenhada japonesa, associa-se sobretudo a um humor bizarro de algumas tiras de banda desenhada ou yonkoma (nas últimas CBDPT, um paper de Ana Matilde Sousa abordava precisamente este assunto). Dessa forma, entende-se a abordagem algo desordenada das figuras desenhadas a marcador grosso (e com algumas colagens para padrões e texturas), numa composição feita de modo igualmente desequilibrado, que é garante de algum charme desarmante, como se se imitasse precisamente a linguagem de um ou uma criadora jovem destas formas. Ora, essa forma aliada à história de uma núbil rapariga que faz crescer magicamente os seios através de umas gotas para os olhos, e que depois se prostitui com um urso, que afinal opta por jogar Scrabble e dormir enroscadinho, faz pensar numa espécie de exploração dos contornos mais sexuais e, por isso, mais incómodos, de certas fábulas (nomeadamente, o Capuchinho vermelho); essas histórias já ganharam uma tal familiaridade, e a espalhafatosa manga pornográfica tem tão pouco impacto emocional, que talvez sejam estas experiências que consigam ter resultados mais desconcertantes.
Gangsters. André Ruivo (The Inspector Cheese Adventures). O autor prossegue a produção de pequenos fanzines, de edições limitadas, que repescam alguns dos desenhos que coloca no seu site. Tal como havíamos descrito o trabalho de Mauro Cerqueira em relação aos fanzines desse artista, também no caso de Ruivo parece haver uma preocupação em eleger categorias taxonómicas, classes de identificação e organização do mundo – sobretudo de personagens,de figuras humanas ou antropomórficas -, para depois as explorar na sua diversidade interna. Sendo esta colecção intitulada Gangsters, não é surpreendente a galeria de retratos que se apresentam, na sua maioria de figuras em pose, e num par de casos em situações violentas (como na capa), explicando assim o título quer no seu sentido clássico e mais usual, a de “escroques”, “criminosos” – que nos fazem perscrutar estes rostos desenhados, alguns dos quais de ar pacato e inofensivo, por “traços de criminalidade latente” -, quer num sentido mais literal, de alguém que se move em grupos ameaçadores – levando-nos, à la Saul Steinberg, a construir “famílias gráficas”. Pesquisa de fisionomia a la Bertillon? Criação de personagens sem direcção e histórias, que não a que se encerra nos traços que os compõe? André Ruivo, no seu selo detectivesco, cria mistérios apenas a lápis de cor e ângulos inusitados, e caberá aos leitores seguirem o fio à meada, ou até mesmo, criar uma meada.
Nicotina Zine e Cru. Para fechar este post, falemos brevemente de duas revistas que, não sendo de banda desenhada, tem com ela afinidades e gestos comuns, ou albergam-nos nos seus gestos. A Nicotina Zine é um espaço em que ainda é permitido fumar, e com esses fumos, oriundos das mais diversas combinações, solidificam-se as vozes que ela encerra, em torno da poesia, sobretudo “sem qualidades” (Nuno Moura é um ponta de lança), prosa, apontamentos manuais para invernos citadinos, ilustrações, desenhos e banda desenhada (João Chambel participa com quatro pranchas de uma subtil narrativa sobre os relacionamentos amorosos). Trata-se de um veículo heteróclito, mas que une uma comunidade de vontades unidas. A Cru é um regresso, como bem se sabe, do projecto de Esgar Acelerado e amigos. “Revista rasca e vadia”, como reza na capa, abandona-se a todo um universo de referências mais ou menos coeso, no que diz respeito ao cinema e à música, passando por questões sociais, políticas e culturais, ou um nexo delas todas, com muita sexologia e conselhos astrológicos à mistura. Inclusive aquilo que se pode chamar um “ensaio fotográfico” de Daniela Alves em torno da estética bdsm, mas, a nosso ver, muito domesticado. A banda desenhada tem lugar de honra, não só num artigo que presta atenção ao diabrete Johnny Ryan, como ainda a vários trabalhos humorísticos de Marcos Farrajota, Wasted Rita, Rudolfo e Darren Merinuck - cada qual com o seu estilo, mas sempre acertando nos humores mais impróprios em casas católicas. Nuno Saraiva apresenta um par de ilustrações afectas a poemas eróticos, entre os quais o patrício Marcial. Mas, esperamos não querer com isto parecer estar a desprezar essas presenças, a pièce de résistance é a de uma colaboração entre valter hugo mãe e Acelerado, num registo que tanto se pode desconfiar de semi-autobiográfico como de anedota à Canty, e que é muito certeiro e emblemático de um certo tom na descoberta de pormenores da sexualidade à saída da infância… Estando a redacção desta revista a marimbar-se para toda uma série de bons comportamentos que a admitam em circulações maiores e mais seguras – mas ainda assim vê-se na necessidade de tecer essas considerações em forma de editorial, de resto hilariante - , a Cru continuará a ser um projecto que respeita, acima de tudo, os seus leitores, e deixará de fora os que a não merecem…
Nota final: agradecimentos a todos os autores ou editores, pelas generosas ofertas e envios, pela disponibilidade de algumas trocas, descontos, e num ou outro caso, empréstimos.

3 comentários:

  1. Na parte que nos afecta :)

    O autor deste blog já nos surpreendeu algumas vezes com observações que ameaçam ver além das esparrelas com que minamos OS POSITIVOS e extrair sentidos que consideravamos esotéricos o suficiente para os poder pavonear livremente na cara dum público alheio à sua verdadeira natureza. Sempre que um alerta do google denuncia o cruzamento entre "P+" e "lerbd" seguimos o link com um misto de expectativa e receio: expectativa de ler a opinião de um dos nossos mais prolíferos estudiosos da área - julgo que ninguém discute a abrangência das suas análises-, e receio do sujeito ter tropeçado em alguma ponta solta negligenciada pelo yours truly que lhe permita descodificar mais do que era intencional para os gentios (os P+ têm tanto de inconsciente e straight ahead como têm de calculado e maquiavélico… Admitimo-lo, mas brincar com o fogo e arriscar é parte do processo e da piada.

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  2. Já por diversas vezes tentamos enquadrar a leitura dos P+, inclusive neste mesmo blog, por isso seremos breves: A) estamos-lhe muito agradecidos pela divulgação, no que vos respeita (there goês tha 4th wall!) é a vossa única referência bedéfila que toca no objecto, so, kudos! (se bem que, quiça pela quantidade de material em mãos, o Pedro já fez leituras -e escritos- mais contundentes; leia-se: o yours trully dorme descansado e sem receios esta noite). B) deixem-nos apenas clarificar que para adequadamente enquadrarem os P+ em qualquer tipo de perspectiva, farão bem em manter uma reserva mental considerando-os num horizonte de tempo muito, MUITO alargado.

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  3. A grande preocupação em relação a estas sagas, e digo-o em tom de desafio jocoso, é: se acabo por ficar mais "hooked" com "[D]ejected" do que com "Road Trip", o que é que isso diz: serei eu leitor mais propenso a telenovelas do que a uma posição mais activista? Ou Os Positivos têm aqui o seu verdadeiro sucesso?
    Obrigado pelas palavras, e fico a aguardar, mesmo que demore, as continuações...
    Pedro

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