Em breve, após darmos conta de uma impressionista (isto é, não-crítica) abordagem em torno da exposição à serialização a longo prazo própria de (alguma) banda desenhada, quereremos dar conta de algumas séries que seguimos. Tendo já abordado este assunto anteriormente, repetimos que alguns dos leitores assíduos do lerbd poderão ter a ideia de que apenas lemos banda desenhada que surge em formato de livro (assuma ele as formas que assumir), e não tanto aqueles textos que existem sobretudo numa forma mais extensa e necessariamente regular (ou que apenas as consideramos após o seu término). Ora, não sendo isso totalmente verdade, é no entanto correcto que apenas fazemos emergir instrumentos de maior consideração após a sua moldagem num texto mais conclusivo, e nos interessar menos a mera apresentação, divulgação ou alerta para a existência desses mesmos títulos, fitos para os quais existem outras melhores e mais competentes plataformas do que o lerbd.
Por agora, ficaremos por um único título, que ainda não terminou.
Aproveitando ensinamentos dos recentes livros de Marc Singer e Charles Hatfield, e das entrevistas que tivemos oportunidade de fazer aos autores, ganhamos alguns instrumentos descritivos, analíticos e teóricos que nos ajudam a compreender o estado contemporâneo da banda desenhada de super-heróis, que pode ou não confundir-se com a ideia de mainstream. Desde os anos 1980, com aquilo que mais tarde se chamaria de tendência revisionista, que não temos encontrado exemplos significativos o suficiente para terem, por eles mesmos, transformado ora as práticas criativas, ora as políticas editoriais, ora a repercussão social do género, como Watchmen e The Dark Knight Returns o fizeram então. Pelo contrário, temos visto uma cada vez maior multiplicidade de estratégias, que tanto pode revelar da mistura de géneros, como de tendências de recuperação de estados anteriores ao “revisionismo”, como ainda de estratégias estruturais (visuais, composicionais, narrativas) que tiram partido de outros meios contemporâneos, do cinema pós-CGI aos complexos MMORPGs.
Hatfield é muito claro quando explica que parte da diminuição perceptível na inventabilidade do género no seio das grandes companhias (sobretudo DC e Marvel) se deve ao facto das práticas profissionais não recompensarem a criação desabrida, e por isso testemunhamos aquilo que D. Falconer chamou de “estilo prismático”, que são os desdobramentos internos nesses mesmos universos (Lanternas - cf. Lanterna Verde - de várias cores, o acesso a universos paralelos onde existem miríades de versões das personagens principais, tempos alternativos, etc.). No entanto, esses desdobramentos parecem ser igualmente aquilo que preside a criações independentes no mesmo género, como nos casos de Astro City, The Authority, Planetary, The Boys, Incorruptible e Irredeemable, etc.
Nesse alargado campo de escolhas que muitas vezes sofre de uma sobre-apresentação do mesmo, é raríssimo encontrar títulos que sejam reveladores de uma qualquer faceta interessante ora da própria ideologia inerente aos super-heróis ou a(s) cultura(s) que lhe está associada ora das formas como podem reflectir algo da nossa sociedade real (talvez Mark Millar o tenha tentado em alguns dos seus títulos, mas ele acaba por subsumir tudo ao seu humor irónico e a uma economia de género expectável). America’s Got Powers está próximo de uma dessas reflexões, mesmo que o seja limitada a alguns negligenciáveis aspectos.
Numa das suas muitas curtas histórias cartoonescas e desesperadas, Ivan Brunetti fala do “futuro do entretenimento”, sendo uma dessas descrições a seguinte: “À medida que o escapismo e o sadismo convergem, a tragédia torna-se numa mera farsa, e a evolução apaga qualquer traço de empatia humana, serão os desportos violentos, a tortura e outras atrocidades que substituirão em popularidade a comédia na televisão”. A verdade é que isso não se refere ao futuro, mas à realidade já em curso nos nossos dias, em que a empatia é reduzida simplesmente à histeria do apoio aos concorrentes de programas de televisão em que tudo é concursável: cantar, dançar, cozinhar, e até casar. Jonathan Ross é um apresentador carismático, divertido e ecléctico nos seus programas, e as suas opiniões em relação ao mundo do entretenimento televisivo - para o qual ele próprio contribui - transforma-o num estranho mas eficaz instrumento de crítica “interna”. O seu interesse pela banda desenhada é conhecido, não só pelo coleccionismo, mas igualmente pela colaboração ou autoria de algumas séries televisivas dedicadas à banda desenhada (como Comics Britannia, ou o seu próprio In Search of Steve Ditko), uma outra série de banda desenhada (Turf, com Tommy Lee Edwards, uma mistura de géneros algo confusa) e até aspectos da sua vida pessoal.
America’s Got Powers, como se entende imediatamente, decalca o seu título do famoso concurso America’s (ou outro qualquer país) Got Talent, tornando clara desde logo a premissa: a existência de um concurso onde várias personagens com capacidades super-humanas (todas elas originadas num evento fantástico, muito parecido com o “White Event” do New Universe de Jim Shooter, de 1987, bastas vezes imitado, inclusive na série televisiva Heroes) têm de lutar pelo lugar cimeiro. E, claro, o ingrediente clássico, a única personagem que não tinha poderes nenhuns - Tommy Watts, chamado e “Zero” por oposição a “Hero” - mostrando, no último momento dramático, que é possivelmente o mais poderoso de todos.
No entanto, apesar dessa trama principal, são as linhas secundárias, os apartes, os pormenores de ambiente que tornam toda a série interessante. Parte disso prende-se desde logo com uma estratégia visual de referências, em que Hitch incorre ao atribuir os traços físicos do actor David Tennant, que é o [décimo] Dr. Who da famosa série televisiva, para a personagem Professor Syell, o médico mentor de todo o projecto de America’s Got Powers, ou de Sarah Palin para os da Senadora Handler, a agente do governo controladora do projecto e que pretende explorar os jovens para fins militares e específicos. São eles, no fundo, os dois factores antagónicos em relação a como se devem aproveitar da situação a partir de uma mesma posição “superior” em relação aos jovens (mas isto terá implicações futuras mais complicadas, pela forma como eles acedem a esses mesmos poderes). Hitch já havia seguido estas estratégias visuais noutras séries anteriores (The Ultimates), e com ela faz ligações a um universo mais alargado da realidade política e fictiva do “nosso” mundo, querendo dessa forma fazer ressoar algumas das implicações (a política como entretenimento, o entretenimento como acedendo a uma realidade alargada). Por um lado, portanto, a dimensão social das celebridades, do frenesim em torno de um programa de televisão, as suas consequências para o marketing, o merchandising e as modas são explorados, ainda que superficialmente, ao longo da série, e por outro também não é surpreendente o surgimento do conceito da “conspiração da indústria militar” pelo aproveitamento que fazem destes jovens e do fenómeno que os une.
Ainda que a acção foque sobretudo os acontecimentos com as personagens principais, logo estamos sempre num nível “acima” da mais mundana das existências naquele mundo ficcional, não deixa de haver chamadas para a obsessão que as pessoas no mundo ocidental(izado) têm com a cultura das celebridades, e agregam-se neste título aspectos que tanto se relacionam com séries infantis, como com concursos musicais, como com desportos ou “sportainment”. O primeiro número, por exemplo, abre com uma página imitando uma notícia online e os comentários costumeiros.
Portanto, como é de esperar e é já parte dos mecanismos ficcionais habituais deste tipo de séries - desde Gruenwald e Moore, pelo menos -, estuda-se em que medida é que acções políticas, económicas e sociais seriam tomadas sob a vigência dos super-heróis. Os abusos do complexo militar-industrial sobre estes jovens transformados que são analisados para entender como podem ser empregues - e se o concurso televisivo é a sua “imagem pública”, descobre-se quase imediatamente o lado oculto dessas mesmas operações. É evidente que se poderia fazer uma acusação, algo fácil, de que sendo um título escapista como tantos outros, estes assuntos são apenas um pálido reflexo das questões que de facto assolam a nossa existência global; pior ainda, uma vez que os contornos destas ficções obrigam a uma qualquer resolução. No entanto, a competência quer do escritor quer do artista constroem uma excelente rábula desses mesmos pontos.
Tendo em consideração a quantidade de projectos de mini-séries ou de “arcos” em que se inicia a história com um artista apelativo (no interior das escolhas típicas deste género de trabalho) e à última hora se muda para um outro nome, usualmente de qualidade inferior, se não mesmo péssima, o facto de se ter mantido Hitch é uma mais-valia em relação à coesão do projecto (claro que em detrimento de um ritmo mais célere de publicação, habitual nos comic books; para contraste, veja-se o que aconteceu recentemente com Age of Ultron, em que Hitch foi substituído no no. 6 por Brandon Peterson e Carlos Pacheco, ainda que se possa depois explicar-se isso por razões diegéticas). A arte de Hitch está nos seus trâmites habituais: um ancoramento particularmente feliz na nossa própria realidade, em termos da gravidade dos corpos, da exactidão e quotidianidade dos objectos, etc. Mais do que a sua capacidade de desenhar um homem feito de pedra ou uma mulher em chamas a combaterem, é fazê-lo num cenário plausível e naturalista, com automóveis, copos, computadores, relógios e t-shirts que são idênticas àquelas que encontramos no nosso mundo, tornando esse ancoramento (na ilusão do real) e esse desvio (a fantasia ficcional) em factores perfeitamente encaixados. Enfim, pensamos que Hitch é, com Frank Quitely, John Cassaday, Gary Frank ou Leinil Yu, um dos ápices do melhor que o mainstream produz nos nossos dias, ancorando no mais sólido dos naturalismos as efabulações do maravilhoso próprio ao género.
Do ponto de vista dos super-heróis propriamente ditos, esta hipótese de lavrar um novo “mundo” permite a Hitch e Ross fazerem o mais esperado (e divertido), que é criar toda uma série de variações de modelos já existentes, atirando à parede o barro de muitos super-poderes (dos “bonitos” aos “mutantes”, dos físicos aos psíquicos, dos nomes coloridos aos uniformes… uniformizados, etc.). As vinhetas pejadas de personagens em momentos “heróicos” (esta interpretação moral é sempre colocada em causa, claro) é o ambiente natural deste artista. De resto, tudo se encaixa nos modelos mais clássicos do género, quer em termos de relações quer em termos de acções (uma namorada ou a mãe ameaçadas, um irmão mais velho mais poderoso e que depois conta com o seu apoio, rebeldes enganados, antigos inimigos tornados aliados, e por aí fora). A composição também é, como se espera, da mais clássica das retóricas, no sentido em que é precisa no tipo de efeitos pretendidos, ora pausados e mundanos ora espectaculares e energéticos. O uso quase excessivo, em relação à média usual, de páginas duplas, nem sempre como splash pages, apenas sublinha mais essa mesma espectacularidade, mas não deixa de ser tudo empregue com pertinência. Talvez essa seja uma boa forma de sumariar America’s Got Powers, um “mainstream pertinente”?
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