Visitar Barcelona hoje quase significa ficar-se preso aos corredores do turismo, com os “pontos de interesse” previamente assinalados e reservados, e as marcas da história recente algo apagadas, ou se não apagadas, pelos menos tornadas invisíveis pelo fluxo de distracção constantemente em oferta. Não deixa de ser algo paradoxal pensar-se num livro de banda desenhada convencional para contrabalançar essa imagem, mas é o que se oferta em España la vida (que não se fecha em Barcelona). Este livro é um exercício simples, ficcional, em que le Roy assume a voz de um jovem francês (tal como “assumira” outra voz em Faire le mur), Jean-Léonard Rezeau, que se voluntaria, como tantos outros, à última guerra “romântica” da história. Não é que a guerra em si seja romantizada, mas em retrospectiva, e tendo em consideração as brigadas internacionais envolvidas nesse conflito que era visto como uma tentativa primeira de curvar o avanço do fascismo na Europa, ele pode ser entendido como um cadinho, ainda hoje mitificado, em que os envolvidos projectavam os seus ideais: democráticos, comunistas, anarquistas, e outros. E, do outro lado da barricada, os conservadores, os monárquicos, os militaristas, os franquistas, os fascistas…
España la vida não é um tomo de análise e de exposição histórica. Não se auscultam aqui os problemas da origem da República em Espanha em 1931, a sua fraqueza interna, as pressões da esquerda e da direita, as relações com outros países (inclusive Portugal, que foi um importante aliado de Franco). O livro explode, literalmente, com os bombardeios alemães nazis (e italianos) sobre a cidade basca de Guernica, e passa de imediato para uma camada histórico-mítica, com o protagonista visitando a Exposição Universal de Paris de 1937 e deparando-se com o famosíssimo quadro de Picasso (é uma pena que le Roy não introduzisse o importante ciclo Sueño y mentira de Franco). Há portanto uma escolha por um afunilamento da história pela perspectiva de um só jovem, e os passos que essa experiência acarretará. Essa exposição a um testemunho da história pelo filtro da acção transformadora da arte é o catalisador para que Léo entre - na economia da narrativa - nas acesas e apaixonantes discussões políticas do seu tempo, anti-fascistas, anti-capitalistas, anti-colonialistas, e as várias frentes de activismo que lhe eram possíveis. Jean-Léonard participa em encontros, na criação de um jornal político, deseja cortar as suas relações com a família burguesa em que nasce, mas é o encontro com os escritos, e depois com a figura mesmo de Viktor Lvovitch Kibaltchiche, mais conhecido como Victor Serge, que acabam por fazer inflectir a sua atitude e o levam à decisão de partir para Espanha e se envolver na guerra.
É essa viagem e envolvimento que perfazem o grosso do livro.
Em Espanha, as facções internas do conflito não deixam de ser abordadas, mas sem grande complexidade (de certo modo, a dimensão romântica, mítica e pessoalizada é muito mais vincada neste livro do que em As falanges da ordem negra, de P. Christin e E. Bilal, ainda hoje um título significativo do modo como a banda desenhada pode inteligentemente lidar com a complexidade da história e as suas consequências). O livro foca a vida de uma personagem singular e as suas relações pessoais com outras personagens, e não se trata de uma obra que deseje expor as complexidades dos combates internos entre sovietes e trostkistas, por exemplo, que minaram a organização da defesa da República contra os fascistas. No entanto, aquela estranha mistura entre “candor e ferocidade”, de que George Orwell fala logo no início de Homage to Catalonia, está aqui presente, nalgumas personagens secundárias, em pequenos episódios, na violência seguida de um qualquer gesto simpático (como o assassinato de um padre, as igrejas e efígies queimadas, e o salvamento de uma imagem de Nossa Senhora para uma velhota acamada).
Vários escritores escreveram sobre um “certo comunismo romântico” que ainda definia os combatentes, e não deixa de ser notável como há de facto factores românticos e idealistas a nutrir a vontade de muitos dos voluntários, sobretudo estrangeiros, para este conflito. A biografia de George Orwell, por exemplo, poderia servir de modelo, mas le Roy ter-se-á baseado seguramente noutras referências que desconhecemos. A dimensão dos intelectuais conhecidos, envolvidos pelo menos no quadro alargado das discussões em torno do conflito encontra-se incorporada neste livro pela presença das várias referências identificáveis, que servem de “efeito do real” sobre a narrativa.
Como escreve Stuart Hall no decisivo artigo “Whose Heritage?”, a nacionalidade ou a pertença a uma nação “sempre se quebrou ao longo de linhas [divisórias] de classe, género e regionais”. Não deixa, portanto, de ser significativo que o projecto revolucionário fosse instituído de modo internacional, procurando elos que se estabeleciam para além da mera ideia fronteiriça (de linhas em mapas, línguas, etc.). e é precisamente esse o aspecto, talvez, que é mais sublinhado em todo o livro.
Essa “transnacionalidade” ganha também contornos “transgeracionais”, quando Léo descobre uma carta do pai que lhe é dirigida. Se esse pai parecia apático, apagado e inerte, a carta revela as experiências dele na 1ª Guerra Mundial, e uma faceta, ainda que então pouco desenvolvida e assertiva, que revela uma profunda simpatia e afinidade pelos ideais de Léo e, no fundo, uma benção às suas escolhas e acção.
Imageticamente, o livro é convencional, mas apropriado. Os desenhos parecem ser feitos a pau de grafite com gestos vigorosos e nervosos, e onde as figuras das personagens surgem muito estilizadas mas com traços identificadores e diferenciados. O nome de Anne-Claire Thibaut-Jouvray encontra-se na capa por ser ela a colorista, e é inegável que o trabalho de Vaccaro ganha uma outra dimensão mais moldada, texturada, volumosa, e significativa graças às cores da artista. Não apenas na criação e distinção dos ambientes interiores e exteriores, como todos os momentos em que a cor assume significados simbólicos (vermelhos a cobrirem o ambiente festivo dos republicanos, sépias para representar o passado, no caso das memórias da 1ª Guerra Mundial pelo pai de Léo).
A guerra, como se sabe, é perdida. Os amigos morrem, as brigadas desfazem-se, poucas são as relações pessoais que se conseguem manter. Fuga e exílio são as soluções para escapar de destinos mais cruéis, não sendo a morte sequer um deles. Mas a sobrevivência de Léo, acompanhado pela carta do pai, faz-nos regressar novamente a Orwell, desta feita a algo que se lê no final do seu livro. “Curiosamente, toda esta experiência faz-me crer não menos mas mais ainda na decência dos seres humanos. (…) Acredito que num assunto desta natureza ninguém é ou pode ser totalmente exacto. É muito difícil ter a certeza de seja o que for senão o que vemos com os nossos próprios olhos e, consciente ou inconscientemente, todos escrevemos como sectários [partisans]”. Orwell desconfia, como sempre, de qualquer versão “objectiva” dos factos complexos, para mais do tecido da história como ele se estende e é experienciado por seres humanos. De certa forma, poder-se-ia dizer que España la vida é um livro sectário, que pretende, não sem mostrar algumas das feridas internas e problemas, o esforço daqueles que romanticamente e dedicaram a um conflito que entendiam não ser meramente local, mas símbolo de uma batalha maior. Mesmo que não tenha sido vencida, são as suas lições que ainda hoje devem fazer sentir os seus efeitos: a de que o combate contra as injustiças é sempiterno, e deve ganhar sempre novos olhos e instrumentos para as identificar no nosso próprio tempo e no nosso próprio lugar.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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