Como já o afirmámos noutras ocasiões, a colecção Écritures da Casterman é um dos espaços mais privilegiados para encontrarmos projectos de banda desenhada que tentam auscultar um certo entendimento da “maturidade” do meio, tendo sido uma fórmula estilística, temática e económica copiada dos sucessos da L’Association (apesar de uma primeira fase formalmente diferente, concebida por Benoît Peeters), e tendo encontrado projectos que merecem um destaque particular, sobretudo traduzidos, como os livros de B. Katchor e J. Taniguchi, H. Oda e C. Brown, ou reedições, de Pratt a Baru. Já no que diz respeito a projectos originais, destacam-se aqueles volumes que atravessam fronteiras, desde o original e cuidado editorialmente Japon, aos projectos imitadores e ligeiramente mais problemáticos dedicados à China e à Coreia do Sul. Títulos individuais como o de Boilet ou do casal Bocquet-Muller foram continuações da curva ascendente prometida pela colecção, na sua imitação da esfera independente, mas muitos dos outros títulos vinham apenas confirmar estratégias comerciais possíveis. Alguns dos livros são merecedores de atenção, sem dúvida, mas o balanço, que agora se faz em dez anos de existência, tem de ter em atenção esse contexto alargado (e até mesmo aspectos formais e técnicos, como as qualidades da encadernação e colagem/cozedura de cadernos, entre a Écritures e a Ciboulette, não fariam pender a vitória para a Casterman).
E esse balanço tem de ser, em termos gerais, algo contundente. A liberdade criativa não se proporciona, conquista-se. E onde a Casterman proporciona um formato específico e provavelmente menos espartilhos editoriais em termos de grafismos e narrativas aos seus autores, na relação da L’Association essa liberdade nascia de dentro e, assim sendo, não é de todo uma surpresa que mais rapidamente encontremos na Ciboulette trabalhos que - independentemente de conquistarem ou não novas linguagens ou plataformas de experimentalismo ou novas dimensões sociais e de voz no campo alargado da banda desenhada - conquistam uma exigência interna autoral maior do que no caso da Écritures, que apenas confirmam aquilo que usualmente se chama de “talentos”, “domínios”, “competências”. Quer dizer, um domínio mais técnico do que uma voz poética, a qual terá sempre, sempre um timbre disruptivo. E é isso o que achamos estar ausente nestes títulos. Confirma-se, consolida-se, mas não se desvia.
Tendo recebido três novos volumes, entre os quais um celebratório ou precisamente de balanço (e que teve igualmente uma dimensão expositiva), deixaremos aqui não mais do que breves notas sobre os mesmos.
Marcinelle 1956. Sergio Salma.
Sergio Salma é mais conhecido como autor de toda uma série de álbuns infantis, como Nathalie. Com este livro, “crónica social romanceada”, como reza a sua apresentação, parece haver uma auscultação das próprias raízes pessoais do autor, nascido em Charleroi e muito provavelmente descendente dos mineiros italianos que povoam este livro.
Pietro Bellofiore é um emigrante italiano que faz parte do contingente de emigrantes convidados a trabalhar nas minas de carvão belgas (um programa que em alemão se chamava de Gastarbeiter), muitas vezes vindos de zonas deprimidas economicamente e para quem a vida dura naqueles trabalhos não era mais do que uma rota rápida para o cumprimento dos sonhos: uma vida melhor em termos materiais, a construção de uma casa na terra, o regresso glorioso às origens, quem sabe com um automóvel… A estada representava uma vida numa relação algo hostil entre esta população obreira, que mantinha a sua cultura paisana, e a que os recebia, mais modernizada, virada para um outro tipo de desenvolvimento. Nada de muito diferente da realidade portuguesa dos anos 1960 e que ainda hoje tem repercussões nas culturas de todas estas realidades. Além do mais, Pietro é um veterano de guerra, tendo estado na Líbia, e apesar de não haver qualquer pormenor, tudo nos indica ter feito parte do exército italiano. Os seus colegas, pelo menos a maioria, como o seu irmão, são homens rudes, cujos horizontes apenas se cingem ao amealhar do dinheiro para o regresso à terra, e qualquer desvio desse projecto - como aquele que Pietro vai começando a nutrir - pode ser visto como uma “traição”. Mas Pietro não é analfabeto, sente-se algo vexado por a mãe lhe enviar ainda chouriços e queijos da terra como se ele passasse fome em Marcinelle, acaba por comprar uma Vespa (marca que surgira então apenas há dez anos), e observamos nele sempre a criação de um desejo por uma vida diferente daquela que lhe havia sido traçada enquanto “emigrante italiano”. Essa abertura de horizonte vai surgir sob a forma de um acidente rodoviário que o coloca, literalmente, no caminho de uma mulher belga com a qual começa a construir uma relação, mais imaginativa do que extraconjugal, “desligando-o” dos seus restantes colegas, com consequências dramáticas.
Uma vez que o título indica a cidade belga que por sua vez remete à famosa “escola” (família estilística) de banda desenhada na qual estiveram envolvidos Jijé, Franquin ou Peyo, é algo expectável que estejamos sensibilizados, como uma chapa fotográfica, para procurar pistas que nos permitissem associações entre o que se passa neste livro – quer em termos diegéticos quer em termos representacionais – e essa tradição. Num dos episódios do livro, Pietro vai até Charleroi, e nas cenas urbanas poderíamos mesmo procurar nos rostos dos transeuntes sinais de identidade dos famosos autores. Mas acima de tudo, aquilo que permite uma associação oblíqua é a vida da belga com que Pietro se começa a relacionar, Françoise, a qual nos apercebemos ser uma mulher moderna, sexualmente emancipada (se bem que o desejo que se vai formando em Pietro não seja correspondido e leve a uma mal-entendido, de raízes culturais), e que tem um passado no Congo belga, onde o pai foi ou é caçador: a casa está decorada de máscaras katanga, pequenas esculturas congolesas, lanças e escudos tribais, e fotografias da cultura colonialista, com cenas de caça e de uma hierarquizada relação com a população local. Além do mais, a casa em si parece decorada com todos aqueles apetrechos da cultura dita “atome”, tão própria de Spirou (recordemo-nos de que a Exposição Universal de Bruxelas teria lugar em 1958, mas são inegáveis as ligações estilísticas aqui implicadas pela via da historia da banda desenhada local).
Se o livro elege um facto real – o desastre mortífero das minas de Marcinelle, que vitimaram centenas de trabalhadores mineiros – para seu centro narrativo, e toda a tessitura social que assume um papel decisivo. E a relação com a produção da banda desenhada belga assume-me, a nosso ver frontalmente, enquanto critica das suas representações. Isto e, em contraste com as fantasias modernistas (de Tif & Tondu, Blondin & Cirage, Spirou, Modeste & Pompon, mas também O Enigma da Atlântida, etc.) e colonialistas (muitos dos mesmos títulos poderiam ser citados, alem de Tintin e toda uma produção nacional) da Bélgica dos anos 1950, existia uma realidade dura, miserável e que se inscrevia “fora” da grande narrativa nacional. Salma, ao escrever esta historia (narrativa), reescreve-a na História (a Grande Narrativa) e reinscreve-a num discurso que não lhe dava atenção.
La dernière femme. Charles Masson.
Tendo falado de uma forma muito sucinta sobre o primeiro livro deste autor, anos atrás, há visivelmente uma maior rotundidade no que diz respeito à escrita e grafismos neste último livro, mas não estamos propriamente perante uma grande conquista em nenhum desses domínios. Tratar-se-á e um livro competente, que cumpre o que promete fazer, mas mais uma vez sentimos um alongamento desnecessário para uma premissa que ganharia se fosse mais sucinta.
Acompanhamos um homem de meia-idade, Albert, que parte num carro clássico, aparentemente oferecido a uma amante que o rechaçou e a quem por isso lhe “rouba” o presente, da Alemanha até Lyon. Ele oferece boleia a um jovem, e para fazerem conversa durante a viagem, Albert conta-lhe a sua vida, a partir da perspectiva das “suas” mulheres: namoradas, amantes, conquistas breves e outras por conquistar mas que deixaram marca. Dois jogos poéticos vão-se instalar. Por um lado, Albert vai seguir um exercício “oulipiano” nas suas relações amorosas, construindo uma ordem alfabética nas mulheres: Annie, Barbara, Chantal, Delpine, talvez Erika ou Elsa, depois, Florence, e por aí fora… Se bem que o narrador externo nos faça entender que essa descrição intelectual tenha sido retrospectiva, pondo em causa muita da narração de Albert. Além do mais, esta “ordem” terá os seus revezes, desvios e problemáticas específicas, mas que revelam mais do jogo autoral do que de uma necessidade diegética propriamente dita. A qual ainda é mais complicada pelo segundo jogo (e estragaremos a surpresa aos leitores na seguinte frase): apercebermo-nos-emos de que o jovem a quem Albert dá boleia não é mais do que ele mesmo muito mais jovem, depois da primeiríssima relação. Ou seja, esta viagem à memória de Albert passa igualmente por uma espécie de desejo em regressar ao início da jornada, a um estado de alguma inocência, à hipótese, sempre sonhada, de aconselharmos os nossos eus mais jovens a seguirem um canal ora ligeira ora radicalmente diferente daquele tomado nas nossas vidas.
A ideia de associar o movimento da viagem à da memória não é propriamente original, e não ganha aqui uma dimensão particularmente significativa. O consumo de uma droga não-descrita (apenas vemos um frasco com um smiley) faz sublinhar um cliché, e não abona à sofisticação de representação, além de que constrói dessa maneira uma justificação natural para o surgimento e relação com o “fantasma”, em vez de, por exemplo, escavar a não-naturalidade, a potencialidade poética, desse mesmo encontro consigo mesmo. Aliado à ejaculação precoce de Albert, à assunção da sua profissão de contabilista para “comportamentos de contabilista no amor”, o revés de Ophélie/Zora/Zorro, etc., acaba por tornar a sua construção psicológica mais numa pequena anedota do que um trabalho desenvolvido e realista de moldar a personagem.
La villa sur la falaise. AAVV.
Na esteira dos álbuns antológicos desta colecção, e mais propriamente para comemorarem os seus dez anos, convidaram-se dez artistas para trabalharem um mesmo ponto de partida. Benoît Sokal escreveu um pequeno texto, apresentando no início do livro, que cria uma situação narrativa: numa pequena e isolada vila numa ilha ou península, uma casa sobre uma falésia é, pela derrocada desta, cortada ao meio, dando a ver o seu interior a todos os que visitarem a praia. Sendo herança de uma mulher, esta regressa a esse local passados quinze anos de ausência. Sokal deixa entender mais uns quantos pormenores (o filho dormindo no carro, o ser observada pelo vizinho escritor, etc.), mas não fecha nem coarcta as possíveis redes de relações entre as personagens. É a partir dessa situação, portanto, que todos os autores criarão as suas histórias. São eles, por ordem, Cati Baur, Nate Powell, Hannah Berry, Saulne, Isabel Kreitz, Davide Reviati, Jiro Taniguchi, Fred Bernard, Gabrielle Piquet e Kan Takahama.
Como já dissemos noutras ocasiões, é muito interessante quando os autores fazem inflectir um trabalho de encomenda ou este tipo de exercícios para os seus projectos contínuos. É aqui que se encontram algumas das diferenças dos instrumentos entre autores mais convencionais e aqueles que mais se entregam à “política dos autores”. Não é que exista nenhuma hierarquia intrínseca entre uns e outros, atenção, pois cada qual criará os seus próprios textos, de naturezas bem diversas, e que conquistam, cada qual a seu modo, os seus prazeres inerentes. Todavia, quando nos deparamos com projectos deste tipo, que apontam precisamente para uma capacidade maior de expressividade autoral, notamos quando não há uma coerência ou continuidade dessas mesmas linguagens.
As escolhas dos autores, como em qualquer ocasião, são passíveis de revisitações e circunstâncias, logo, não merecem uma crítica por si mesmas. Mesmo assim, apesar de estarem presentes autores que têm volumes na própria colecção (Taniguchi, Takahama, Bernard, Piquet), a escolha não parece ter tirado partido do seu universo de referências circunscrito. É internacional, tendo autores japoneses, norte-americanos (Nate Powell - a quem pertence a imagem de abertura deste post), alemães (Kreitz), e outros, e desde veteranos a autores mais jovens. Nesse aspecto, procuram uma diversidade salutar.
No entanto, as inflexões que os autores fazem são relativamente circunscritas. Quase todos colocam a vila nos seus países respectivos, ou pelo menos no interior de tradições de representação que as circunscrevem às nacionalidades de cada um. Há casos onde essa identificação é clara, e noutras mais ambígua. Há casos em que o espaço da vila é expandido e populado, noutros casos reduzido a um canto só. A dimensão policial ou de mistério surge num par de autores (Powell e Bernard), muitos deles resolvem construir uma rede novelesca e intricada de enganos e traições amorosas entre todas as personagens envolvidas (Reviati, Bernard, Piquet, Takahama), quase todos sublinham questões das emoções da protagonista, ora fazendo dela uma mulher livre, emancipada mas com uma âncora qualquer que a prende ao passado (aquela vila, a vida que ela representa) ora titubeando entre situações amorosas. Taniguchi traz uma dimensão de ficção científica que destoa de todas as outras histórias, não a tornando particularmente forte. A nosso ver, as melhores histórias, que na verdade subvertem as expectativas da premissa, são aquelas da artista britânica Hannah Berry, que constrói uma espécie de comédia do absurdo graças à burocracia em torno do acidente (digamos que é um Beckett meets Douglas Adams), e da alemã Kreitz, que abdica de uma focalização centrada numa personagem, e estrutura uma fiada curiosa entre vários habitantes da ilha, fazendo “passar a bola” entre personagens, mas mesmo assim tecendo uma breve trama com um final de surpresa.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros.
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