Ou, A melancolia explicada aos mais pequenos. 2.
Logo nas páginas iniciais de Austerlitz, escreve Sebald que “ao contrário das aves que constroem durante séculos sempre o mesmo ninho, tendemos a impelir os nossos empreendimentos para fora dos limites do razoável”. Aves é um livro que sonda precisamente a passagem desses limites, mostrando aves que, como os homens, querem construir ninhos desarrazoados.
Aves é um livro que tanto tira partido de uma tradição milenar, desde Esopo, como tenta auscultar um caminho diferente no seu interior. São os seres humanos arvorados a aves, nesta metáfora, ou as aves reduzidas a seres humanos? E, se apontamos a possibilidade de uma hierarquia logo à partida, em que factor a construímos? Sobre os horizontes mais largos a que porventura o voo permite? Mas porque não compreender antes a verticalidade biológica do homem e a sua visão binocular como base de uma indómita curiosidade e poder em alterar o seu ambiente? A frase de Sebald poderia encontrar dois confins, que a corrigirão ligeiramente: por um lado, no estudo sociobiológico dos animais e na constatação de que alguns deles adaptam e usam tecnologias (pássaros que juntam pontas de cigarros nos ninhos para os desinfectar, corvos que quebram nozes nas estradas), por outro, na franca confirmação de que a sociedade humana jamais poderia expandir-se sem o controlo do ambiente, sem a progressiva transformação da Natureza em Cultura (seguindo uma ideia de Castells), a qual com certeza com as suas consequências intempestivas e funestas.
Na verdade, o que Aves apresenta é uma, a um só tempo, complexa e simples analogia, no seu sentido de figura de estilo, elegendo cada elemento que compõem um termo e buscando os elementos condizentes num outro termo. No caso presente, não são somente as aves e os humanos, mas uma muito particular e desabrida ânsia dos segundos comparadas aos papéis obrigatoriamente simbólicos explorados nas primeiras. Daí que surjam temas sérios e reais neste livro, da guerra à escravatura, dos excessos da moda aos abusos da ciência, à angústia existencial menos ancorada num só factor. Daí que se compreenda, também, que a primeira redução operada, a que aludimos acima, seja a negação daquela qualidade que define os pássaros – mesmo no caso daqueles que a não possuem, como as galinhas, avestruzes ou pinguins – que é o voo. O voo surge como a metáfora dos sonhos humanos, mas negando-o àquelas criaturas a quem lhes pertence por natureza, a imagem que surge é a de uma “coisa” (não haverá melhor termo) que é possível conquistar, que se encontra no fim de um qualquer gesto e esforço simples, mas que permanece sempre fora do alcance pela distracção criada por outras prioridades. Aves é assim é um livro muito sério, e que levará os seus leitores mais jovens a construírem uma capacidade de reflexão para ultrapassar a melancolia.
O livro é composto de doze imensos desenhos, cada um ocupando duas páginas, e não apresentam uma sequência ou uma concentração num mesmo número de personagens. Desenhados a grafite somente, quase se poderia imaginar estarmos perante uma série de quadros em grisaille que constroem um retrato de uma sociedade: hipotética, a das aves, real, a dos humanos. A escolha de vários pássaros (mochos, patos, tucanos, rouxinóis, pardais, melros, colibris, corujas, etc.) cria uma enciclopédia visual que se corroborará numa compreensão das diferenças sociais - recordando, na contemporaneidade, o trabalho de A. Browne com os seus símios -, oferecendo-lhe uma dimensão pedagógica, sem que ela se torne um escolho ao livro. Mesmo não alterando quase nada, através da simplificação gráfica ou de uma qualquer estilização, os rostos das aves, os autores tiram partido dos corpos humanos das suas personagens para instilar uma expressividade que informa esses mesmos rostos das aves, criando claríssimas atitudes que os leitores compreenderão. Na verdade, existem pequenas intervenções nos rostos, dando-lhes esses traços de movimento expressivo tão vivos nos seres humanos (e símios): um papagaio sorrindo subtilmente, uma família feliz de canários, trocando olhares cúmplices, um desencanto no olhar de um falcão… E a representação de objectos e situações que se poderão colocar em momentos históricos mais ou menos distantes, ou indistintos, permite a que se compreenda esta procissão de figuras como ainda mais representantes de uma certa “evolução social”, que nos pertence.
Aves não conta uma história, nem diverte, nem acalenta lições simplistas. É um livro que mostra, de forma directa e crua, e por isso honesta, e por isso mais importante que qualquer outra estratégia, a ultrapassagem dos limites da razoabilidade de que Sebald falava, na citação, e que pede que olhemos, com mais atenção, para o ninho existente.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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