Introdução. A razão deste artigo, que terá várias partes a publicar nos próximos dias, nasce de três circunstâncias convergentes, mas que levaram à lavra das considerações que agora se apresentam, e que é menos uma abordagem crítica monográfica do que uma espécie de ensaio de contornos livres. Há pouco tempo, fomos convidados a participar de um inquérito que estuda a questão da identificação com personagens pela parte de leitores de longa data, de séries mainstream (pedia-se que se acompanhasse algo há pelo menos mais de dez anos), e a forma como respondíamos àquilo que nós mesmos entenderíamos por “falhas” na representação dessas mesmas personagens. Ora, pretendendo auscultar, de uma forma muito ligeira, as diferenças com que uma série europeia se distanciaria de uma norte-americana, elegemos Blake & Mortimer e Hellblazer. O segundo elemento é, como se sabe, o final desta segunda série com o número 300, significando, de certa forma, ao mesmo tempo, o fim da experiência Vertigo. O terceiro é uma questão muito pertinente colocada por Teresa Câmara Pestana a propósito da nossa abordagem a Urlo: funcionará o horror na banda desenhada? São estas três linhas e circunstâncias que seguem no novelo seguinte. (Mais)
Comparando dois territórios incomparáveis. A eleição destas duas séries tão distintas prende-se, obviamente, com circunstâncias biográficas e históricas, as quais, sendo individuais, julgamos serem suficientemente tipificadas: leitor masculino da classe média portuguesa nascido no início da década de 1970, possivelmente forte candidato a um descritivo d[e uma das classes d]o “leitor médio” da banda desenhada em Portugal neste momento. De todas as séries europeias a que tivemos acesso na infância, talvez Blake & Mortimer, de Edgar P. Jacobs, tenha sido aquela que mais impacto duradouro teve num certo imaginário e investimento emocional. Outras fortes candidatas seriam Tintin, O vagabundo dos Limbos, Adèle Blanc-Sec, mas onde umas séries tinham um número inferior de álbuns (a de Tardi) outras apenas começaram a surtir o seu efeito na adolescência (a de Godard e Ribera), e outras sempre viveram numa espécie de grau zero do prazer (a de Hergé). Quanto à norte-americana, procurámos escolher um título que apresentasse algum tipo de coesão das personagens enquanto construtos psicológicos (fictícios), por oposição ao uso de personagens-marcas registadas (como o Super-Homem ou o Homem-Aranha), e que tivesse significado algum tipo de alteração na atitude e leitura da banda desenhada como um todo. Ora, a exposição a um tipo de banda desenhada mais madura no interior de uma economia de mainstream, como aquela que emergiu na DC e sobretudo pelas mãos da Vertigo, foi de uma importância máxima na nossa história pessoal, e até, de certa forma, constituiria uma plataforma ou nexo de acesso a outras bandas desenhadas ainda mais afastadas dos cânones convencionais. Não esqueçamos que a Vertigo teve um papel importante num certo “amadurecimento” do mercado e de um público muito particular, que estava a entrar na idade adulta; olhando retrospectivamente, essa maturidade não deixa de ser relativa, e até caricata em parte [relembremos a cena em Planetary no. 7, de Ellis e Cassaday, em que se satiriza precisamente esse grupo de personagens, com alguma distância], e por isso a sua determinação histórica tem de ser levada em conta (poderíamos ter escolhido outros títulos, é certo, mas onde Hellboy se concentraria demasiado num autor só - apesar das participações e os Weird Tales, os vários títulos de Batman seriam demasiados dispersos e impossíveis de seguir na íntegra. Hellblazer, portanto, pareceu-nos equilibrado.
Classicamente, uma série europeia “de autor” pertence somente ao seu autor original, ao passo que as norte-americanas – estamos sempre a falar de um entendimento lato do “mainstream” – se desdobram na equipa taylorista sobejamente conhecida. No entanto, sabemos também que as excepções são demasiadas (Spirou, Mike Mignola) para que essa descrição possa ser entendida como absoluta, ou sequer como correcta. Não obstante, aceitar-se-á que a economia de produção de Blake & Mortimer não é idêntica à de Hellblazer. A de Jacobs - série iniciada em 1946 na revista Tintin (edição belga) - compreende 15 álbuns produzidos num espaço de 67 anos, concentrando-se a “era Jacobsiana” em duas décadas, espraiando-se em cerca de 1100 páginas (das quais quase 550 feitas pelo próprio Jacobs), ao passo que Hellblazer, enquanto título próprio, nasceu em 1988, e se contarmos em média 32 páginas por número, e nos recordarmos da existência de números especiais, anuais, mini-séries e “graphic novels”, seguramente que ultrapassaremos as 11000 páginas. E é mais problemática a discussão se as contribuições de Van Hamme, Bob de Moor, Benoît e Juillard são “canónicas” em relação a Blake e Mortimer, já para não falar dos pastiches sarcásticos de Pierre Veys e Nicolas Barral, do que no caso da personagem da DC/Vertigo, já que é intrínseco a esta segunda indústria o trânsito constante de autores (e é precisamente por essas razões generalistas que a série Before Watchmen levanta questões de um interesse vigoroso). Ou seja, se é uma questão mais aberta à opinião e atitude dos leitores se essas novas aventuras de Blake e Mortimer (ou de Philip e Francis) são uma extensão do seu universo diegético original, não há dúvida de que, goste-se ou não, de Delano a Milligan e colaboradores, houve uma expansão da experiência da vida ficcional de John Constantine. E, em termos visuais, temos um caso radicalmente distinto, em que os autores francófonos tentam, através do pastiche, copiar algo inimitável ou redondamente o falham (por mais que se esforcem, Bob de Moor e Ted Benoît não conseguem ser tão límpidos e austeros como Jacobs), ao passo que nos norte-americanos não há, salvo excepções, tentativas de imitação de estilos anteriores, mas sim a exploração de linguagens próprias (cada qual a seu modo, John Ridgway, Steve Dillon ou Sean Murphy criam os seus caminhos, se bem que poderíamos dizer que Marcelo Frusín é quase uma imitação frustre de Eduardo Risso [mas não é mesmo que se passa na relação entre Barral e Tardi?]).
Seja como for, a título pessoal, e apesar da leitura jamais ter sido imediatamente consentânea com a produção (não somos contemporâneos de Jacobs, não lemos os álbuns post-Jacobs quando foram publicados, muitos dos “arcos” de Hellblazer foram apenas lidos após serem coleccionados em trade paperbacks, por vezes anos depois da sua publicação, e não pela ordem cronológica original, etc.), poderíamos dizer que “acompanhamos” B&M há 33 anos e Hellblazer há 23. Além do mais, o investimento emocional com as séries é muito diverso: a primeira foi acedida num momento de aprendizagem da própria leitura, a uma noção primitiva de coleccionismo, a uma muito regrada e calendarizada acessibilidade económica aos livros (um álbum Bertrand por ano, na Feira do Livro), e até mesmo de crescimento basilar, que implicava interesses infantis, tipicamente ávidos e enciclopédicos, ao passo que a segunda já se mesclou com uma maturidade primeira, um certo grau de independência (e responsabilidade) económica, de abertura do próprio panorama português a um mercado global (compras por catálogo, fidelização/standing orders numa loja), e a interesses mais decisivos, específicos e de nicho, que se misturavam com a temática da série. As relações interpessoais, sobretudo com o descobrimento de uma “comunidade” bedéfila, foi igualmente decisiva na transformação do segundo caso. Como se depreende, e sem a necessidade de entrar em pormenores biográficos, é forçoso que o investimento emocional com a primeira série (e sobretudo a personagem de Mortimer, que pensamos ter um peso actancial mais significativo do que Blake, mesmo no caso de Jacobs) tenha sido mais intenso, apaixonado e imersivo do que no caso da segunda, que se mesclaria com uma maior distância, aliada a uma primeira aprendizagem de leitura analítica, crítica, e o típico cinismo da primeira idade adulta.
Isto aponta desde logo para uma dimensão importante, mas que não abordaremos, que é o crescimento com a banda desenhada, e não simplesmente um crescimento em que os objectos de banda desenhada da infância o acompanham mas permanecem os mesmos. Há pouco tempo, através do blog de Geraldes Lino, vimos como o professor Paulo Guinote discutia as suas leituras, incluindo as bandas desenhadas Alix e Mafalda, o que foi entendido com júbilo pelos seus vários leitores, e, sem detrimento do resto, claro, pode-se tornar um bom exemplo para discussão. Isto é, nada do que se segue tem a ver com as leituras, a pessoa, etc., mas antes com o enquadramento social: É que nenhum dos outros títulos indicados pelo autor eram “sobrevivências da infância”. Faria sentido num mesmo contexto que um adulto dissesse serem os seus livros favoritos a série Uma Aventura, ou os livros da Condessa de Ségur ou de Alice Vieira, e que adorava reler os poemas de Flores para Crianças? Se sim, como protecção e revisitação dos imaginários cultivados na infância, então compreendem-se as citações dos “clássicos” (a leitura de Mafalda seria num quadro de entendimento político ou simplesmente de fruição da comicidade?). Mas se não fizessem sentido, e se quisesse citar leituras significativas da idade adulta, porque não se procuram referências de banda desenhada que tenham a ver com ela?
Ora, regressando ao caso pessoal, Hellblazer foi uma leitura que seria impossível na infância, e que foi decisiva - como tantos outros autores ou títulos, antes e desde então - no crescimento e maturidade individual, na relação com a
banda desenhada, mas também da própria banda desenhada enquanto meio.
“Crescer com” não significa, portanto, simplesmente, “aquelas
personagens que me acompanham desde pequeno”, mas sim, “as bandas
desenhadas que iam revelando um nível de exigência cultural, intelectual
e estética idêntico àquele que se desenvolvia na minha pessoa, formada
por um complexo de factores”.
A escolha está feita. E o protagonista de Hellblazer, John Constantine, é sedutor a vários níveis. Mas o que significa identificarmo-nos com uma personagem?
(todas as imagens colhidas da internet)
Parte 2.
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