21 de julho de 2013

La mémoire du corps. Kim Hanjo (Atrabile)


Este livro reúne um número de contos curtos de um dos autores afectos ao projecto da Sai Comics, plataforma editorial de que já falámos a propósito da sua revista homónima (este material publicou-se aí em primeiro lugar). Estas 7 histórias (mais epílogo) apresentam-se como unidades autónomas, mas ao mesmo tempo têm linhas vermelhas que as atravessam e as tornam num conjunto coeso e ligado. Duas páginas, ou um spread, antes do início das histórias propriamente ditas apresentam uma espécie de árvore genealógica ou de relações entre as personagens todas que entram nelas, mas sem que sejam coincidentes no seu interior. Isto é, uma personagem entra numa história, ao passo que a sua irmã entra noutra, e uma ex-namorada numa terceira, mas nunca ou raramente ambas numa única história. Além disso, apesar destas personagens serem todas dispostas visualmente, até mesmo numa estrutura que mima Polaroids, nem sempre têm o seu nome indicado, demonstrando desde logo uma hierarquia actancial em cada unidade narrativa. Cria-se assim uma rede fantasmática de relações, como se importasse mais a neblina que os agrega num mesmo contexto do que uma certeira inscrição familiar, já que grande parte dos temas explorados têm mesmo a ver com conflitos familiares e amorosos, por vezes insanáveis, por vezes apenas superficialmente resolvidos.
Em nenhum momento o autor, mesmo no prefácio, dá indicações destes relatos se tratarem de autobiografias, ou sequer de se basearem em experiências directamente conhecidas. No entanto, o seu grau de quotidiano poderão aproximá-los desse género, ou pelo menos de um campo suficientemente alargado, da banda desenhada contemporânea a que usualmente se dá o nome de “slice of life”. Há em muitos dos momentos destas histórias, aqueles que criam o baixo contínuo social do contexto em que elas decorrem, uma atenção particular para com as especificidades culturais, as banalidades típicas, um quotidiano inalienável daquele país.
A sociedade sul-coreana, tal como a portuguesa, vive num complexo sistema de hierarquizações sociais. A idade, as profissões, a educação, o nível económico, o estilo de vida, pautam tanto as vidas dos cidadãos daquele país como as do nosso. A diferença talvez seja o facto - mas tudo isto é corroborado por indicadores sociais e estatísticos - de que o tipo de discussões e frentes que se fazem em relação a essa hierarquias seja menos imediata na Coreia do Sul, não num sentido fatal, de se aceitar um destino inalterável, mas a de uma certa aceitação das “regras” predeterminadas. Isso implica que as formas várias de resistência sejam extremamente subtis, e Kim explora precisamente algumas dessas formas, por vezes assumindo o aspecto de “desistências”. Isto é, se uma personagem parece desistir de uma carreira, ou abandona a família, ou não liga a uma certa ideia de sucesso profissional e económico, essa será uma forma enviesada de demonstrar um escape das pressões tremendas a que todo o seu entorno obriga. Uma vez que aquela também é vista muitas vezes como uma sociedade “colectivista”, no sentido em que se criam relações fortíssimas entre membros de um mesmo grupo particular (a família, uma companhia, etc.) que os passa a definir, e em que cada um deles assume uma responsabilidade por todos, é natural que surjam igualmente sentimentos moralizantes entre esses membros. O paternalismo ou um seguimento filial (“cego”) entre patrão e empregado, professor e alunos, etc., é muito normalizado. Aí, de novo, vemos emergirem nestas histórias momentos em que essas relações são postas em causa, o que são garante de uma crise bem mais profunda e duradoura do que entre nós. De uma forma simples (e simplista), digamos que ter uma discussão mesmo aos berros com os pais, entre nós, é algo de usual e pouco surpreendente, e que as mais das vezes o tempo sara. As quebras que vemos sucederem nestas histórias, como à filha do pastor, a maneira como o futuro marido de Lee Sooyeon a infantiliza e maltrata (e esta “desvia” o tratamento), a relação terminada de Lee Hyunbok com a mulher sem nome, são perenes e definitivas (e definidoras).
Uma das personagens, Lee Jinseok (e que poderíamos imaginar ser um mais directo avatar das experiências do autor, sua sombra e duplo), surge em duas histórias: “L’antenne” e “Le rêve”, sendo as mais introspectivas de todas, uma vez que quase dispensam da interacção com outras personagens e se concentram nas percepções interiores do protagonista. A primeira poderá, numa breve sinopse, soar cómica, mas não o é: no interior do seu escritório, onde procede a trabalhos rotineiros administrativos, Jinseok discorre sobre o que ouve, sente, cheira, e imagina, cada vez que os seus colegas, sobretudo as mulheres, vão à pequena casa de banho que se encontra imediatamente atrás dele, ou as ginásticas a que ele mesmo se entrega quando a usa para impedir uma má imagem de si aos que vierem a seguir. Cómico, parece. No entanto, o que se estende é uma espécie de devaneio paranóico sobre a auto-percepção, a auto-estima ou -comiseração, e o valor que se coloca na ideia que os outros terão de nós, ou sobre as fronteiras débeis de como essas mesmas ideias se formam. Já “Le rêve”, como o título indica, encerra-se num só sonho em que Jinseok pensa ser um soldado numa guerra sem quartel. As imagens, todavia, não “traduzem” a ideia coerente que se terá formado na sua mente, mas de vinheta a vinheta atravessam variadíssimas representações oriundas de pinturas, murais, esculturas, frisos, pergaminhos iluminados, desenhos, fotografias, cerâmicas, gravuras e estampas, quer gregas e romanas, europeias medievais, quer japonesas, indianas, persas, africanas, e, claro, coreanas.  Deveremos ler cada frase, tão precisa na sua descrição, atendendo ao preciso objecto que se vê naquela vinheta? É a cabeça cortada de Jinseok, no sonho, idêntica à do busto romano, o ídolo africano, aquela macerada de uma pintura ou gravura? Porque escolhe relatar o entendimento do preciso momento em que a sua cabeça é cortada com um pormenor da famosa fotografia do inspector de polícia sul-vietnamita a executar com uma bala na cabeça um suspeito Viet Cong? Poderá entender-se esta história como uma espécie de alegoria sobre a guerra, à la The Bead Game, de Patel? Apesar de parecerem exercícios de inquirição ontológica dos meandros da humanidade contemporânea, Kim Hanjo trabalha numa abordagem sóbria, com uma figuração competente, sem grandes rasgos de espectacularidade. O modo como trabalha tramas e sombras densas, alternando com rostos por vezes incompletos, ou enquadramentos de grandes pormenores dos rostos (uma mão sobre a mesa, o esgar de um lábio, uma orelha atenta, um rosto descentrado), assim como cenas que focam nos espaços ou cantos dos espaços onde as personagens se movem (contribuindo para as chamadas transições de “aspecto a aspecto” de McCloud), levam a um ambiente de lentidão e de muita concentração sobre os diálogos e gestos entre as personagens. Ozu em papel.
Kim utiliza composições também elas sóbrias, regulares ou semi-regulares, muitas vezes com legendas partindo de uma voz sem corpo, ou do narrador no momento em que se distancia dos acontecimentos, providenciando uma gravitas marcante em todas as histórias. Por vezes, as vozes são de alguém totalmente desirmanado do corpo, como no caso do velho Lee Hyunbuk no momento da sua morte (na história que dá nome ao livro), ou do seu filho Jinseok enquanto sonha, ou quando este, ao beber umas cervejas com Ko Soo-kyung, passa a expor a biografia “oculta” dela, que atravessa não apenas a sua história pessoal mas também aquela colectiva da Coreia do Sul, nos conturbados anos 1970, pelo meio das demonstrações de estudantes, a repressão do regime, uma maior compreensão da máquina política e económica do mundo… É como se se comentasse que a “memória do corpo” apenas se assume quando dele se desliga, mesmo que momentaneamente, para se consciencializar do seu corpo, do seu contexto, do sem poder de ancoramento. De acordo com António Damásio, o Si pertence e diz respeito, a toda a linha, ao corpo, o que torna redundante falar-se de um Si ou de um Eu incorporado [embodied], pois não haverá outro. Por isso é significativo que o autor explore tão bem o modo como a voz se pode desincorporar dele nas suas bandas desenhadas, através do contraste das legendas de narração e imagens “desviadas”, para depois reequilibrar essa direcção com a atenção particular que presta a pormenores: esta personagem enrolando os cabelos com o dedo, aquela outra entregando-se aos prazeres do voyeurismo, ou elas todas comendo, bebendo, fumando, fazendo amor, masturbando-se…
A memória do corpo fica presa a cada um desses gestos e eles são centrais na apreciação dos momentos que os enquadram. Nascem deles, então, os simples mas tocantes relatos deste livro.

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