4 de agosto de 2013

Dead Combo Soundfiles. Pedro Gonçalves e Trips (Chiado Editora)

Uma forma de comemoração, de aniversário, da banda Dead Combo, mas que não passasse por um terrível “apanhado” da sua carreira. Este pequeno livro serve de resposta a esse desafio, sendo uma fuga para um outro território, o da banda desenhada. Imaginemos um “como se”, uma situação hipotética em que um qualquer jornal publicasse ainda tiras, para mais de produção nacional, e uma delas pudesse versar a existência e as peripécias de uma banda contemporânea portuguesa, de uma produção musical “a gostar de si própria” (para fazer uma referência ao projecto de Tiago Pereira), precisamente no sentido transgeracional que permite cerzir com intimidade tradições locais e outras globais, línguas que vêm de há muito e desembocam noutras acabadas de parir. Quando, numa das tiras, “On air”, os músicos revelam o que gostariam de partilhar com os ouvintes – Cesária Évora e Napalm Death -, demonstra-se de imediato que os altos contrastes não têm de ser de forma alguma paradoxais, mas produtivos, mesmo que seja de estranhas, novas relações.
A insistência na ideia da música está desde logo prevista no título, “soundfiles”, e até mesmo nos títulos de cada tira, mas não apenas essa dimensão ganha proeminência, já que como será óbvio o visual não é de forma alguma descartado. Estas tiras, até pela forma como são tecidas e desenroladas a um só tempo, fazem com que surja uma imagem forte dos ambientes atravessados pelos dois membros dos Dead Combo, uma Lisboa algo transformada, uma Lisboa riscada sobre estes papéis com linhas nocturnas e manchas de sombra. Não se trata tanto da cidade boémia, dos bares, discotecas e ruas cheias de gente, mas da cidade logo após essas noitadas, depois de beber, depois dos concertos, uma Lisboa de madrugadas frias, desconfortáveis, cansadas e muitas vezes solitárias (ao contrário da esmagadora maioria das idiotices que se lêem nos comentários da internet, numa das canções dos Dead Combo no Youtube lemos que é uma “good song for night walks in the empty city after a light rain”). Independentemente da “falta” de narrativas mais decididas ou normalizadas, muitas das tiras apresentam situações que provavelmente se repetem com muitos músicos – desde erros nos testes de som à perda de energia num concerto até ao esquecimento de umas chaves. Na verdade, quase poderíamos ler Soundfiles como um diário muito transmutado… Existem muitas referências que fazem pensar em private jokes quase impenetráveis para além de um círculo reduzido – quem é o Kilito que sabe das guitarras, quem é o Piranha que guardou os cabos dos pedais, quem é o Salsinha? -, mas elas não impedem essas tais leituras genéricas, por um lado, as quais, por outro, iluminam as especificidades desta banda particular.
Se o livro se pode arrumar, por mais do que uma razão, ao lado de Babinski, o rompimento com as narrativas tradicionais faz-se por lados mais fragmentários, impressionistas. Essas unidades narrativas, portanto, podem até ser vistas como comutáveis entre si, e poder-se-ia imaginar até certo ponto que cada elemento (as vinhetas, as frases, as figuras) poderiam mudar de lugar e, em vez de “destruir” as pequenas histórias, remontar-se-iam noutra possibilidade. Nalguns casos (a título de exemplo, “Passos Manuel” ou “Afinanço”), parece não haver mesmo nenhuma ideia de narrativa, com a excepção do “movimento” ou do tempo passando, mas ainda assim elas vão contribuindo para ideias que, flutuando, se acumulam no retrato.
Seja como for, e há sempre a tentação de voltar à música, é como se se tratasse da apreciação de um álbum, que se escuta faixa a faixa, composição a composição, e vamos compreendendo quais as características comuns e quais as estratégias diferentes entre elas, mas apenas no seu conjunto elas poderão dar um cunho a todo o projecto. Uma fruição que, apesar de ser ditada linearmente, acaba por derrotar essa mesma direcção para impor outras formas.
António [Antunes], mais conhecido como Tó Trips, é não apenas músico (além dos Dead Combo e o recente projecto a solo, os Lulu Blind deixaram saudades) mas igualmente designer gráfico e, até se quisermos, ilustrador. Esteve presente nos Salões de Ilustração de Lisboa, fez muitas capas de discos, e foi responsável pela imagem de várias plataformas artísticas, como o Festival Atlântico da galeria zdb. Nessa frente, sempre revelou um grande interesse pela manipulação digital de imagens de várias origens, criando ambientes de colagens que tanto recordariam aspectos clássicos do terror e da ficção científica como da cultura do metal ou de vários campos artísticos. Enfim, um campo de mutações permanentes e de mesclas inusitadas. O autor regressa aqui a uma abordagem mais manual, com desenhos a preto e moldagem de espaço e volume através de um curioso trabalho de tramas (círculos concêntricos, por vezes sobrepostos, com apoio ao digital, claro está), mas são várias as tiras onde se exploram jogos puramente visuais, desde alterações e variações de escala, a modulações de elementos recorrentes, à transformação de materiais apropriados. E com bastas “interrupções” das tiras com ilustrações que se espalham em spreads, que poderão ou não ser vistos complementando as “narrativas” ou até mesmo como nódulos de uma acção maior, nem que seja a “imagem final” que inevitavelmente emergirá com a leitura do livro. Estamos mesmo em crer que a participação de Pedro Gonçalves enquanto “argumentista” passe mais pela vivência comum da banda, e uma cumplicidade imediata com o artista, do que de uma planificação rigorosa e clássica. O lado lacónico dessa “personagem” (já lá iremos) não deixa de estar presente, como se a presença fosse desde logo indicativo da acção possível.
Não estamos perante uma obra maior da banda desenhada – alguns dos balões de fala, de ordem trocada, fazem pensar em breves distracções ou falhas estruturais, o próprio desenho vacila, não se instala um desejo propriamente de continuidade interna, etc. – nem tampouco de um projecto que pretende redefinir ou repensar a possível relação entre a banda desenhada e a música, mas antes perante um gesto necessário, que estende a presença dos Dead Combo num determinado contexto, parte real – a cena da música contemporânea portuguesa, extremamente rica e diversificada, para além dos espartilhos das playlists – e parte imaginário.
Os próprios Dead Combo cultivam a ideia de “personagens” nos seus dois membros. Numa relação ambígua entre os músicos surgirem como eles mesmos e a assunção total de uma ficção (de que projectos, dos The Residents aos Gorillaz, nos habituaram há muito), Trips e Gonçalves surgem nos concertos, vídeos e aparições públicas “oficiais” encarnando sempre um par de personagens visualmente distintos e bem diversos entre si. De certa forma, desde logo respeitando algumas das regras mais usuais da banda desenhada ou da animação clássica infanto-juvenil: se seguirmos mesmo a ideia de um dos exercícios mais comuns em desenvolvimento de personagens, nesses campos, de criar imagens em silhueta de forma a explorar o grau de reconhecimento com um número pequeno de características, entenderemos pela capa que se poderia descrevê-los, aos Dead Combo, logo à partida como “personagens de banda desenhada”. Aquela personagem esguia, altíssima mas curvada como um abutre, de cigarro no canto da boca, e a outra, mais baixa, sempre de cartola alta, por vezes enterrada na cabeça, e também de cigarrinho pendente, parecem estar no sítio certo. Depois, a urgência com que parecem correr de um lado para o outro (relembrando um dos vídeos da banda, de resto, citado várias vezes no livro: “Cacto”, de Paulo Abreu), parece também surtir o efeito de genérico de uma série, de aventuras contínuas e formulaicas, de familiaridade das personagens. Para que, nessa metaficção, continua a escorrer a ideia de uma tira que continua…
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

4 comentários:

  1. Tó Trips é António Antune! e não: António Pinheiro da Silva.

    ResponderEliminar
  2. António Antunes

    ResponderEliminar
  3. Caro anónimo ou anónima,
    Obrigado pela correcção.
    Na verdade, apenas conheço por "Tó" e fui induzido por um velho texto. Agradeço a ajuda.
    Pedro

    ResponderEliminar