26 de setembro de 2013

[D]ejected Omnibus. Os Positivos (auto-edição)

Em A noite e o riso, o romance inaugural de Nuno Bragança, lemos o seguinte adágio: “se todos os moços estudassem a sério, o primeiro resultado seria pegar um fósforo aos colégios, e, se possível, servirem-se dos professores como carqueija”. Que relação tem esta ideia com a antologia desta novela em banda desenhada? Apenas uma: a lição mais profunda da liberdade será sempre a rejeição violenta de todos e quaisquer instrumentos que sirvam à menor das opressões. Não se pode esperar compromisso, diálogo ou movimentos calmos.
O tipo de humor e estruturas genéricas que o autor explora tornam todo o projecto num mecanismo apenas aparentemente simples – pela superfície, é uma novela amorosa densa com personagens desenhadas minimalmente: vogando de trás para diante por entre a banda desenhada, o teatro, o cinema e televisão, atravessando as “quartas paredes”, tecendo níveis metatextuais com os críticos de banda desenhada, os prólogos e notas, é como se estivéssemos perante várias plataformas que se misturassem e combinassem de modos diversos, nunca repetidos, e sem que nos permitissem aperceber uma fórmula original. Tudo está em constante trânsito, obrigando-nos portanto a uma espécie de concentração no tema.
Tendo já escrito parcialmente sobre a surpresa de [D]ejected à luz da leitura de Road Trip, o outro trabalho d’Os Positivos, e a essas considerações remetendo, por ocasião do lançamento de uma edição “absoluta”, com extras e tudo, aproximemo-nos porém de uma razão pela exploração de uma temática complexa da sexualidade humana, que nada tem de universal e constante, mas enquanto força social em permanente negociação com os discursos (morais, religiosos, societais e, acima de tudo, ou tudo mesclado, políticos) vigentes. Apesar de todos os avanços, a sociedade portuguesa ainda é particularmente pautada pela heteronormatividade, onde a exclusão ou a tessitura de um discurso sobre “diferença” (seja esta construída sobre bases fisiológicas, cognitivas, culturais, etc.) ou a “tolerância” (implicando a necessidade de confirmar o “normal” e aceitar – ainda que com um sinal de cidadania à parte – os “diferentes”) está na ordem do dia. Fabrice Neaud, no seu Journal, cria um discurso extremamente bem articulado sobre os problemas inerentes a essa ideia de “tolerância”, os quais acabam por representar a única possibilidade de existirem espaços delimitados para o exercício da diferença. Podem existir publicamente artistas homossexuais, mas não políticos ou médicos, ou podem existir festas e bares gay consabidos, mas não o simples facto de ter dois homens de mãos dadas num restaurante (claro que a ideia de que uma pessoa deve assumir publicamente a sua sexualidade leva a paradoxos e perigos). O corolário “façam o que quiserem entre eles, desde que não à minha frente”, ou variações, é precisamente o tipo de discurso que merece o ataque virulento de Neaud e, à sua maneira, a novela que se desenrola em [D]ejected.
O mundo da banda desenhada é particularmente opaco a essa abertura, bastando pensar no número e modo de “emprego” do lesbianismo contra o da homossexualidade masculina: o primeiro serve de entretenimento, o segundo de tabu. Nas exposições e festivais, por exemplo, poderá haver uma mostra de erotismo e mesmo de pornografia, mas tem de se garantir a sacrossanta heteronormatividade, pois qualquer imagem que aponte a um território gay é vetada ou colocada sob domínios muito exclusivos. Isto é, as obras sob discussão jamais poderão ser “primas” por serem “localizadas” (vejam-se mesmo ver os comentários deixados neste espaço quando abordamos obras tais como as de Tom of Finland). No entanto, é graças a diversidade dos autores que esta realidade surge nas mais variadas formas, de Gaylord Phoenix a Artifice, de Manga Mammoth a The Heart of Thomas, de Fun Home até mesmo a Batgirl, de maneira a que não é um discurso embandeirado, mas uma constatação da existência humana. [D]ejected não está interessado em explorar os eventos em si, formas de choque pela obscenidade ou a representação directa, mas através do melodrama que emerge da discussão verbal entre as personagens. E, como nos projectos anteriores, a inclusão de expressões em inglês, os pequenos jogos de trocadilhos, os jogos mesmo estruturais de atenções diversas entre os grupos internos de personagens, as saídas e entradas que levam a pensar num frenético e cómico xadrez, tornam todas essas discussões extremamente movimentadas, apesar de superficialmente parecer estarmos apenas a observar pessoas numa sala…
A inclusão de “famílias alternativas” na cultura popular não é algo de recente, mas foi necessário atravessar muitas barreiras até chegarmos ao ponto em que as produtoras de sitcoms optam por explorações como Família Moderna e The New Normal. No entanto, essa “normalização” precisa de duas vertentes críticas fundamentais: em primeiro lugar, não esquecer o papel de resistência que materiais anteriores tiveram, abrindo caminho contra o preconceito através de obras que exploravam o quotidiano de um modo inteligente e descontraído, sem mergulhar na comédia banal (na banda desenhada, Bechdel merece um papel de destaque com Dykes to Watch Out For); em segundo lugar, a proeminência destas séries não nos podem fazer esquecer tampouco o trabalho que ainda há a fazer para derrubar a ideia de “normalização” e, sobretudo, a identificar o tipo de ideias feitas que são confirmadas pela própria existência dessas séries. [D]ejected parece tirar um prazer imenso do melodrama, por vezes mesmo com contornos de histeria, para fazer “entrar” – com a subtileza de um pé de cabra? – essas ideias numa perspectiva societal normalizada.
Uma das questões que nos parecem ser colocadas nesta história é até que ponto é que a forma de aceitarmos essas sexualidades levará a um mais equilibrado relacionamento humano? Isto é, aceitando que partimos de uma qualquer posição na qual existe um preconceito quanto a “alternativas” (falamos de uma perspectiva pessoal, que pode ou não ser partilhada por outros, podendo existir posicionamentos mais conservadores, sem dúvida, mas igualmente posicionamentos mais iluminados e menos ignorantes; nada destas realidades permite pensar num espectro matematicamente objectivo e universal, mas permite porém que compreendamos estar mais ou menos perto de papéis políticos descritíveis por adjectivos tais como “conservador”, “tolerante”, “aberto”, “liberal”, “informado”, e outros, com todos os problemas inerentes a cada um deles), o que sucede quando somos confrontados com situações menos habituais na nossa experiência? Como acomodar essa nova experiência? Em que medida a nossa perspectiva social é alterada? De novo, o curioso de [D]ejected é que não há qualquer tipo de apresentação argumentativa, dogmatismo ou exposição programática: há uma narrativa melodramática que nos coloca de chofre num canto e nos obriga a mergulhar nessa mesma realidade, ainda que seja fictícia ou, quem sabe, biográfica transfigurada. E começamos assim a juntar carqueija...
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta da publicação.

2 comentários:

  1. "é como se estivéssemos perante várias plataformas que se misturassem"... oh, it's funny cuz, bem, não vou partilhar, mas oh-funny-funny-funny!... Sometimes é scary como sais com estas coisas. Entretanto, aproveito que estou numa semana de "refutações" para tentar meter aqui um plug descarado ao nosso site: http://www.ospositivos.com/2013/10/ler-bd.html :)

    ResponderEliminar
  2. Olás.
    Essa frase das plataformas é para dar a ideia de "cebola" que os [D]ejected têm. Não bastará uma interpretação - p.ex., "novela" - para a esgotar. Mas refuta à vontade. E, seja como for, ameaças de bastões não me assustam, pois tenho cinturão negro em karaoke.
    Até breve,
    Pedro

    ResponderEliminar