Apenas como pequena pausa antes de retomar o final destas duas semanas sob o signo dos comic books, façamos um desvio significativo, mas que ao mesmo tempo iluminará, com humor, as pistas gerais desse território. Trata-se este de um pequenino livro lúdico sobre algumas das profissões esquecidas ou ocultas na produção da banda desenhada. Se o livro é francês, a verdade é que na capa se adivinha desde logo um piscar de olhos à indústria norte-americana e, portanto, a um desejo de ser um retrato transversal desses bastidores.
Como se sabe, há usualmente uma crítica (ou, pelo contrário, uma reificação absoluta) da indústria mainstream norte-americana devido ao seu sistema taylorista, isto é, à grande divisão de trabalho que existe na banda desenhada, na qual se repartem os passos da autoria, da responsabilidade, ou da execução, entre o criador, o argumentista, o desenhador, o artista das arte-finais (ou “traçador”), o colorista, o legendador, mas também o editor, ou outros colaboradores. A verdade é que na banda desenhada franco-belga ou japonesa, também existe algum grau de distribuição de funções, mas como existem formas de trabalho diferentes, de “estúdio”, as mais das vezes os nomes desses mesmos colaboradores diluem-se na assinatura do “Mestre”. Nunca vimos os nomes de Jacobs, De Moor, ou de Van Melkebe nas capas de Tintin, não sabemos os nomes dos assistentes de Tezuka ou de Maurício de Sousa que os ajudaram a erguer os seus “impérios”, nem sempre o nome das coloristas de Moebius ou de Bilal surgiram de forma visível, nem sempre sabemos se os artistas que admiramos deixam pormenores para serem preenchidos por discípulos… Essa história social, aos poucos, vai sendo feita, e sobretudo nos Estados Unidos, precisamente pela “clareza” ou “nitidez” dessas relações profissionais, o que deve dar que pensar face ao ainda continuado mito do “autor completo” que medra por um certo círculo de apreciação desta arte nascida no cadinho da imprensa, da literatura de massas e da cultura popular.
Bom, a verdade é que mesmo através de desvios “falsos”, senão mesmo espatafúrdios, criam-se linhas de força de um pensamento possível. O livro apresenta-se como uma listagem, organizada, de 28 profissões, numa espécie de enciclopédia imaginária (não estando longe de um trabalho com afinidades com José Carlos Fernandes) mostrada por um desenho de Reuzé, cujo estilo é algo gestual e nervoso neste livro, e não estilizado e seguro como de costume, mas eficaz e próprio ao género, e textos descritivos de Coudray, cuja herança de Jarry se nota na sua adaptação de Ubu à banda desenhada, textos estes tão explicativos como providos de comentário irónico e lateral. Algumas das profissões são extremamente importantes, desde o desenhador de esboços, que providencia todo um mercado e festivais de banda desenhada com desenhos meio-cozidos, com ar inacabados e que dão acesso mágico ao “processo” dos autores, ou então ao “colocador de balões”, que sabe exactamente onde colocar os diálogos na composição das vinhetas, ou o indispensável “pintor de margens brancas”, pois que seria da banda desenhada se não existissem esses traços brancos entre imagens? E que dizer do actor, que personifica todas as famosas personagens que nos habituámos a seguir? Mesmo no seio de tanto absurdo e humor desabrido, que recordará toda uma tradição francesa, mas não só (pensamos em Goscinny e Gotlib, mas Kurtzman está na fonte), estas pequenas anedotas dão algo que pensar a sério em relação aos lados “industriais” da banda desenhada. Pensadores de ideias, testadores de gags, críticos, os duplos dos super-heróis, quer perdem a vida para a óptima posição heróica, os criadores de onomatopeias, o leitor ideal - que é pago para ler, não opinar nem fazer nada mais, mas ler, apenas ler, idealmente… - são apenas algumas das outras profissões, que a editora, e bem, apelida de “zoologia”, o que não deixa de conter a sua própria lógica.
Criado para festejar os dez anos desta pequena plataforma editorial, o preço do livro é particularmente surpreendente, não dando desculpas a não adquirir este “guia” fundamental sobre o métier.
Nota final: agradecimentos a Filipe Leal de Faria, pela oferta do livro.
As profissões "esquecidas". Que bom que alguém se lembra delas, e não apenas no gag recorrente de Kevin Smith dos "tracers", que acho que começou com Chasing Amy.
ResponderEliminarFiquei com curiosidade. Obrigado.
"Chasing Amy", yep.
ResponderEliminarExistirá também um livro dedicado ao "fordismo" e à produção em massa na banda desenhada a auxiliar os autores mais prolíficos dos nossos dias? Este artigo fez-me lembrar a indústria da animação e o recurso, como qualquer indústria dos dias de hoje, à exploração da mão-de-obra barata existente em paraísos laborais, pasme-se, como na insuspeita Coreia do Norte, conforme podemos ver nas várias cidades do Guy Delisle mais a oriente. É que estou mesmo a ver uma equipa de 500 indianos a escrever textos preparatórios para o Bendis, ou de 500 malaios a desenhar inbetweens para o Steve Epting. Os chineses disponíveis, é claro, estão todos açambarcados pela Disney. Um nicho a ser explorado em Portugal :-)
ResponderEliminarObrigado e um abraço.
Existem, pelo menos, artigos que exploram todas essas questões, de facto, do ponto de vista económico, mas as mais das vezes de épocas passadas. Alguns escritores trabalharão não apenas com editores mas assistentes. É normal que a indústria de animação necessite de muito mais mão de obra, mas até os nomes desses pequenos exércitos surgem nos créditos finais de um filme...
ResponderEliminarObrigado,
Pedro