Alguns leitores conhecerão aquele dispositivo conhecido como dreamcatcher, um objecto de artesanato associado a algumas das culturas dos nativos norte-americanos (lakotas e ojibwes, para ser mais preciso), que se parece com um disco com uma teia no interior e penas em torno. O conhecimento do seu uso histórico é algo fragmentário, e as formas de cruzamento intercultural - numa primeira fase entre os vários povos autóctones e depois através do contacto com a cultura ocidental e as sucessivas transculturações – torna difícil compreender a exactidão do seu funcionamento, mas a ideia fundamental é de que esse objecto (a Wikipédia diz que um dos termos originais significa “aranha”) filtra os sonhos bons dos maus e, assim sendo, ajudará o sonhador a ter melhores sonhos. Poderíamos imaginar que também os livros seriam como que possíveis teias que os captassem e redistribuíssem. Este conjunto de livros vindos de Espanha constituem uma longa aranha que cumpre esse fito. A transcrição de sonhos e a sua consequente transformação em textos (literários, cinematográficos, teatrais) não é algo de imprevisto, e mesmo no campo da banda desenhada e ilustração existem bastantes casos. Estamos aqui perante um caso clássico de encadeamentos de transformações: os sonhos em si mesmos partem do núcleo da relação entre o subjectivo e o mundo exterior, e depois segue-se uma elaboração verbal que lhe impõem uma qualquer forma fechada, e finalmente temos uma nova elaboração, desta feita pelas imagens e estruturas da banda desenhada e da ilustração. Para além da mera criação de imaginários oníricos (de Nemo a Sandman), existem casos de diários (Crumb, Zograf, Veitch, Bechdel) e até mesmo de recepção de sonhos alheios para a criação de textos em banda desenhada, sendo o caso de Jesse Reklaw talvez o mais conseguido. O projecto de Roger Omar inscreve-se portanto nesse campo relativamente restrito. Sueños ilustrados é um projecto em que Omar “colecciona” sonhos de crianças, sendo elas mesmas quem os escrevem, de idades compreendidas entre os 8 e os 12 anos, de várias cidades e vilas espanholas, mas também de Cuba, do México, Alemanha, e, num caso, de “niños cirqueros”, isto é, que vivem a vida nómada do circo. Há também um caso de uma só sonhadora, Luli, com um livro, e o tratamento reflecte isso mesmo. Recolhidos por Omar, os sonhos são depois tratados e traduzidos graficamente, por toda uma troupe de ilustradores, que compreende artistas espanhóis (Max é um deles), ingleses, japoneses, israelitas, e de outras paragens. Rui Tenreiro e Pedro Lourenço são os dois artistas portugueses envolvidos no projecto. A esmagadora das publicações estão nas mãos de um só artista. Os livrinhos mais pequenos, todos em acordeão, intitulam-se “6 sueños” e já ultrapassaram a vintena. Existem também outros formatos, maiores acordeões, e mesmo um livro que serviu de antologia de ilustradores israelitas e de catálogo de uma exposição em Telavive. Cada um dos livros tem um título individual, que se refere a um dos sonhos. Além do mais, os livros estão sempre escritos em espanhol, e duas traduções, abarcando línguas como o inglês e o português, o alemão e o hebraico, o hindi e o francês, o vietnamita e o russo, o mixteco e o japonês, o chinês e o nahuatl…
Apesar dessa diversidade, o formato parece
convidar à ideia de transitoriedade. Aliás, este será o mote das nossas
considerações sobre o conjunto destes livros: uma flutuação entre um desejo por
continuidades, ligações, passagens e comunidade, e uma segura confirmação da
individualidade dos participantes e envolvidos. Poderíamos dizer que o próprio
formato dos livros, em acordeão, os aproximaria de uma performatividade de um dreamcatcher? Este formato é conhecido
em alemão e francês como “leporello”, recordando o aio de D. Giovanni, o qual
desenrola um imenso catálogo das conquistas amorosas do seu senhor. Mas esse
movimento de súbita revelação do acto de conquista da carne pode ser invertido,
se pensarmos neles numa posição horizontal, recordando os biombos, que ocultam
e prometem revelar. A ideia de acordeão solta associações à música, e até mesmo
a uma muito especial musicalidade, lúdica, alegre, de convite à dança e à
aproximação. Fora desse campo metafórico, porém, o que um formato deste tipo
permite é desagregar a leitura dos seus comportamentos mais usuais, a leitura
de duas em duas páginas, o ritmo encadeado do avanço, e permite um outro de
fluidez, de acesso imediato ou mesclado de tempos e espaços, há uma protecção
do recuo ou do salto inopinado. Mais uma vez, um movimento de maior liberdade.
Um trânsito fluido.
A “tradução” dos artistas dos sonhos das
crianças atravessam as mais diversas naturezas. Se a maioria dos artistas opta
por adaptações “narrativas” dos sonhos numa cena legível, em que todos os
aspectos estranhos ou absurdos ganham o peso concreto de personagens
fantasiosas, alguns artistas optam por soluções menos comuns. A título de
exemplo, Mitch Blunt faz como que retratos de crianças, de grandes rostos, nas
superfícies dos quais se projectam os protagonistas dos sonhos sonhados. Pedro
Lourenço isola os animais ou constrói estruturas mágicas para dar conta das
paisagens soturnas dos seus sonhadores. Takeuma e Mexer constroem, cada um, uma
ininterrupta paisagem através do acordeão aberto com os elementos dos sonhos
que trataram. A diversidade dos rostos e dos sonhos capturados e redistribuídos
está assim assegurada. Os estilos, como é de esperar de tal diversidade,
atravessam um espectro alargadíssimo, com uns representando abordagens límpidas
e claras, e outros uma expressividade mais material e espessa, uns com mais
dinamismo e outros com estruturas mais livres, alguns recordando uma animação
“nervosa” e outros escolas clássicas de ilustração infantil, etc. Alguns têm o
texto na página acompanhando a imagem (por vezes nas línguas que dominamos,
noutros casos não), noutros casos separam-se as águas, levando assim a
“navegações” diferentes também. E se quase todos são a preto-e-branco, com dois
casos impresso ora a verde ora a roxo, há casos em que intervém uma segunda cor
(como o laranja, ou o verde de Le
asustaba el verde).
Não nos interessa, de forma alguma, fazer
uma interpretação dos sonhos em si, o que seria um disparate. Em primeiro
lugar, estamos a falar de livros e não de pessoas, e não há – ao contrário de
crenças populares ou pseudo-ciências infelizmente demasiado divulgadas –
“sentidos universais” ou “fechados” dos sonhos. Não pode existir um
“dicionário” deles. O que podemos interrogar é o gesto editorial, e tudo o que
ele implica. Porém, aquém dessa interpretação, podemos tentar compreender os
mecanismos que presidem ao sonho, e aí a psicanálise é imbatível enquanto
interrogação aberta do humano, e do estranho que todos nós encerramos em nós
mesmos. Os sonhos das crianças permitem-lhes que
elas se tornem, naquela situação, os agentes de controle. Se crermos, com
Freud, que os sonhos se aliam às suas fantasias, os sonhos estão ao mesmo nível
que os jogos e brincadeiras em que as acções são repetidas ou encenadas, por
vezes mesmo cenas desagradáveis, mas onde há um forte grau de centralidade do
eu. Segundo o pai da psicanálise, em Para
além do princípio do prazer, “mesmo sob
o domínio do princípio do prazer, há meios e caminhos o suficiente para tornar
aquilo que é, em si mesmo, desprovido de prazer, num objecto a ser recordado e
trabalhado pela mente”. Como escreve o filósofo Pascal Bruckner, “dormir não é
de todo repouso; o sono não é reparador mas divagador”.
Ou seja, o sonho em si mesmo é um mecanismo que permite retrabalhar
(fala-se mesmo, como se sabe, em “trabalho do sonho”) os elementos da
percepção, da experiência, da memória e do imaginário para relançar esses
mesmos elementos de um modo diferente, e uma das actividades do sonho é a narrativização desses elementos. Ora,
sendo transcritos, transformados, traduzidos ou transfigurados – cada termo tem
as suas especificidades, mas teríamos que fazer uma análise mais cuidada,
isolada e atenta para destrinçar os seus usos em cada texto – em novos textos –
neste caso, curtas narrativas ilustradas – essa narrativização ganha uma nova
existência e tornam-se passíveis de um novo uso: a sua leitura por outrem.
O projecto
de Omar não tenta, de forma alguma, ocultar as especificidades culturais dos
sonhadores, ou mais, dos próprios sonhos, e isso justifica-se pela inclusão de
muitas informações em cada um dos livros (o nome ou origem ou idade das
crianças, as línguas incluídas, quem desenhou, quem traduziu, etc., etc.). Haverá
contornos circenses claros nos sonhos dos meninos “cirqueros”? Encontraremos
pontos comuns entre a violência e os actos de comer das crianças de Mazatlán? Há
uma preocupação por garantir que todos esses elementos paratextuais consolidam
uma ideia de autenticidade do gesto de recolha e transformação. Mas ao mesmo
tempo, é precisamente pela sua transformação com desenhos e línguas tão
diversas que se pretende sublinhar, ao mesmo tempo, a potencial universalidade
do sonho enquanto realidade psíquica e texto partilhável. Nada tem a ver com
misticismos ou inflexões jungianas que pretendem reduzir a diversidade cultural
a “arquétipos” ou “princípios universais”. Bem ao contrário da esperança algo
fortuita e talvez mesmo fútil de um esperanto, é a criação de um espaço – de
novo, de uma teia de aranha, de uma rede de caçador – onde só se pode esperar
que a tradução seja possível.
Nas considerações que Freud fez sobre o
acto da escrita, ele repete algumas das noções que tem do trabalho psíquico que
ocorre quer na memória ou nos sonhos. Em nenhum dos casos estamos perante actos
mecânicos de reprodução, mas antes de
representações, isto é, reconstruções
nas quais os elementos atravessam um qualquer filtro. Escreve ele que “o
tratamento poético é impossível sem que se suavize e disfarce”. Não queremos
crer que Sueños ilustrados procure “suavizar” as experiências reais dos sonhos das
crianças – ou melhor, do já trabalho de transformação da parte das crianças das
suas memórias de sonhos em textos escritos -, no sentido de apagamento das
individualidades em nome de um qualquer universalismo pateta e vago, mas antes
que a sua possibilidade de texto, a sua publicação em projecto, demonstra de
uma forma clara a possibilidade mesma de eleger um espaço de diálogo e tradução
mútua, logo, de verdadeira aproximação entre todos sem anulação de
individualidade. Livro a livro,
nome a nome.
Nota final: Un
saludo y agradecimento a Roger Omar, por su aprecio y por la oferta de las
publicaciones. Eis a ligação para o site: http://elmonstruodecoloresnotieneboca.wordpress.com/
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