1 de novembro de 2013

Linguistic and the Study of Comics. Frank Bramlett, ed. (Palgrave MacMillan).

Tal como no caso de Drawing on Tradition, este livro foi lido a dois, assim como a redacção do presente artigo, desta feita com a investigadora Conceição Pereira. Prevê-se a sua publicação em inglês no IJOCA.

Este volume contém 11 ensaios que cobrem uma imensa panorâmica dos estudos específicos deste campo particular, compreendendo portanto a linguística cognitiva, a análise de discurso, a sociolinguística, a linguística sistémico-funcional ou a dialetologia. Sendo essa a formação específica dos autores dos ensaios, são esses os seus fotos disciplinares, criando-se então no conjunto uma multiplicidade de perspectivas que nem sempre poderão convergir num mesmo propósito, ou seguir os mesmos métodos - nalguns casos há close readings, noutros análise qualitativa. Aliás, os próprios objectos de estudo, os textos de banda desenhada, são bem diversos entre si também, desde banda desenhada mainstream norte-americana a tiras ou cartoons humorísticos, inclusive de produção holandesa ou sueca, e produções japonesas, mas a forma de as analisar é muito precisa, aplicando a(s) matriz(es) linguística(s) sobre os objectos.

No entanto, a leitura conjunta faz emergir algumas preocupações comuns ou pelo menos alguns temas recorrentes, da metáfora visual ao humor provocado pela união entre palavra e imagem, assim como dimensões de identidade linguística e cultural. Existem alguns ensaios mais generalistas, tal como os de E. Potsch e R. F. Williams sobre “esquemas imagéticos e metáforas conceptuais”, isto é, ferramentas de descrição de símbolos visuais,  em banda desenhada  de acção, de J. Hallett e R. W. Hallett sobre topoi em cartoons políticos, e R. W. Todd, sobre “metafunções interpessoais e textuais” na série Far Side, de Larson. Quer dizer, apesar de se centrarem num autor ou num conjunto específico de trabalhos, as suas conclusões e metodologias são facilmente transponíveis para outros objectos e/ou campos. Outros textos concentram-se ora em temas nacionais, ou mesmo relativos a línguas e suas “misturas”, como o uso do espanhol em tiras norte-americanas, o inglês em textos suecos, ou o uso de várias línguas em textos francófonos, ou representações do inglês-irlandês… A abrangência é visível de modo nítido pela decisão editorial, que organiza, grosso modo, os ensaios numa sequência do mais geral para o mais particular.

Como é de esperar, há uma maior concentração nos usos linguísticos do que nas imagens, nas questões de estilo, de desenho ou escolas, etc. O primeiro ensaio é aquele que mais próximo estará de uma análise da “linguagem das imagens”, apesar da sua primeira frase ser muito problemática: “A banda desenhada é cinema sem movimento ou som” (13). Mesmo que essa frase dramática seja colocada para um comparatismo que leva à pergunta-chave (“Como é que as imagens estáticas da banda desenhada de acção [action comics] se tornam eventos dinâmicos na mente do leitor?”, idem), o ponto de partida coloca de imediato entraves à compreensão autónoma do meio em questão. Porém, o propósito dos autores, tal como a esmagadora maioria dos ensaios, é ir para além de uma abordagem disciplinar da linguística, por um lado, e da banda desenhada, por outro, para tentar compreender como é que as metodologias disciplinares de uma ajudam a melhor compreender a outra, e, nas palavras de Bramlett na introdução, “como os dois campos mútua e produtivamente contribuem um para o outro” (8). Potsch e Williams escrevem: “No que concerne a  linguagem, [Leonard] Talmy discutiu como ‘a função básica das formas gramaticais é a estruturação do conceito ao passo que das formas lexicais é providenciar conteúdo conceptual’. Da mesma forma, nas imagens de banda desenhada as convenções de representação visual - os autores vão falar de ribbon paths para as linhas que indicam movimento ou impact flashes para os pontos de “aplicação ou troca de forças” - estruturam o conceito enquanto que as personagens, objectos e ambientes representados providenciam conteúdo conceptual” (14) [vendo a vinheta de Action Comics, encontramos várias instâncias dessas linhas de movimento, impacto, mudança de direcção dos objectos, movimento brusco, etc.]. Desta forma, percebemos sempre que o ponto de partida da conceptualização é o campo da linguística, sobre o qual depois se descobrem os pontos possíveis de analogia com a banda desenhada. De resto, muitos autores demonstram de forma clara os modos como estes estudos podem ser iluminadores de questões de enquadramentos mais alargados. R. W. Todd escreve, no seu estudo dos cartoons de Larson, que os “schemata, também chamados de argumentos [scripts] ou molduras [frames], referem-se a estruturas cognitivas de conhecimento de eventos vulgares que permitem aos participantes gerarem expectativas do que provavelmente se ouvirá ou lerá de seguida” (38), o que constrói as predisposições para o humor, ou melhor, o humor que nasce precisamente de certas expectativas goradas, mas no interior dessa mesma possibilidade. Os Halett, citando R. Morris, abordam os cartoons editoriais como “uma metalinguagem para um discurso sobre a ordem social” (60), que vai explorar uma “normatividade, ou conhecimento partilhado, que não apenas torna acentuado um determinado assunto e a sua representação para um público, mas também cria um ‘grupo interno’ de leitores que ‘percebem a piada’” (61). Desta feita, é a própria criação de culturas, ou sub-culturas, baseadas nestes conhecimentos de base cognitiva, que acaba por ser o alvo da pesquisa.

Como seria de esperar, encontraremos aqui um artigo de Neil Cohn, possivelmente a pièce de résistance do volume. Com o seu contínuo e apaixonante  trabalho no campo cognitivo (e que verá o seu corolário num livro a ser publicado no fim deste ano), o autor apresenta aqui uma espécie de balanço sobre o seu preciso conceito da “língua visual”, que Cohn distingue da banda desenhada nos seguintes termos: “Ao passo que a ‘língua visual’ [visual language] é a capacidade biológica e cognitiva que os humanos possuem para poder transmitir conceitos na modalidade gráfico-visual, ‘banda desenhada’ é um contexto sócio-cultural no qual essa linguagem visual surge (frequentemente em conjunção com a escrita)” (113). Sem que subsuma tudo a uma espécie de imperalismo logocêntrico, Cohn associa-se a toda uma escola de outros investigadores da linguística que “partilham uma intuição de que a linguística é a disciplina apropriada ao estudo destes fenómenos [os padrões e estruturas sequenciais da banda desenhada]” (96). Na esteira da sistematização sobre as três modalidades com os seres humanos expressam conceitos, a saber, a criação de sons, o movimento dos corpos e representações gráficas, Cohn atinge uma “extensão teorética”: “quando qualquer uma destas modalidades assume uma sequência estruturada governada por regras que restringem o resultado, isto é, uma gramática, essa forma torna-se num tipo de linguagem” (97). Este ensaio portanto endereça, mais uma vez, as sequências das imagens, as suas articulações imediatas ou extensas, e as formas que constituem mesmo as informações visuais etc.

Se quase todos os ensaios de Linguistics and the Study of Comics constituem análises cujo foco principal é a linguagem verbal mais do que propriamente as especificidades da expressão artística previstas na banda desenhada, perguntamo-nos porém se Cohn é uma excepção nessa atitude, já que os conceitos que pretende avançar, como os da “grafética” [graphetics, i.e., por analogia aos fonemas, todos os pontos, linhas, e espirais que formam ângulos ou círculos, etc., pgs. 98 e ss.] ou da “fotologia” [photology, correspondente à fonologia, que “estuda a organização da modalidade gráfica”, 101], ainda que aplicáveis ao campo específico da banda desenhada, têm, como se vê, uma matriz claramente linguística, transposta para a análise de imagens.

Todavia, quase todos os textos se confinam, digamos assim, ao uso da língua, suas problemáticas, ou nas relações estabelecidas com a imagem, mas de uma forma mais ou menos não-intrínseca ou necessária. Nalguns casos, a ausência da consideração dos enquadramentos de produção e/ou históricos, ou até de considerações sobre as diegeses, levam a que as análises sejam elaboradas num campo abstracto que não corroboram as ideias  apresentadas. Num cômputo final, pensamos que os ensaios terão mais interesse para a linguística propriamente dita que para o estudo da banda desenhada em si, a menos que este seja cumprido por investigadores com uma sólida formação nessa disciplina, dada a necessidade de conhecimentos de algumas teorias linguísticas e da especificidade da sua linguagem para tirar partido das suas propostas e conseguir, de facto, usar os conceitos ou as abordagens numa análise de outros exemplos textuais. Isto é particularmente notório naqueles ensaios cujo campo de trabalho é muito específico.
Não é criticável a ausência de objectos de estudo, pela simples razão de que cada analista terá a sua própria valência e especialidade. Não obstante, a ausência de fenómenos como a tradição do inglês quebrado das tiras norte-americanas do final do século XIX às primeiras décadas do XX, a emergência de palavras ou expressões na banda desenhada (a possível origem de “jipe” no estranho animal de Popeye, por exemplo), ou até de um magnífico exercício sobre tensões políticas de base linguística como o clássico Estrumpfe contra Estrumpfe, de Peyo, fará desejar um ainda mais alargado escopo.

Frank Bramlett, na conclusão, deseja incutir nos investigadores futuros uma ideia de que se devem colocar de lado “noções de um ‘vocabulário’ ou de uma ‘gramática da banda desenhada’ para que se possa procurar um compromisso mais produtivo com a linguagem na banda desenhada” (itál. orig., 291). O editor apresenta ainda ideias de uma “variedade alargada de programas de pesquisa robusta”, usando a banda desenhada como território pronto a analisar ou a trabalhar sob o olhar linguístico, desde o seu uso enquanto campo de recolha de dados linguísticos, a estudos de mudança linguística, passando por estudos de manuscritos ou representação de variedades [de uma língua] não-padronizadas ou não-prestigiadas. Ou seja, para a linguística, este livro apresenta um fortíssimo argumento para que a banda desenhada seja incluía enquanto campo, não apenas de casos de estudo, mas como um campo mediático e multimodal em si mesmo para pesquisas informadas por teorias e metodologias determinadas da linguística. Apesar do desequilíbrio que sentimos em relação à esmagadora maioria dos ensaios, em que por vezes parece que a especialidade linguística é meramente “aplicada” à banda desenhada, Bramlett tem toda a razão quando diz que este volume terá contribuído para o apagamento das supostas fronteiras disciplinares entre a linguística e a banda desenhada, e que ele procura “promover um compromisso intelectual vincado” entre ambos os campos (293).

Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro, e ao autor, por ter facilitado o contacto. E a Conceição Pereira, pelo desafio aceite e a ajuda na compreensão de certos aspectos do volume.

3 comentários:

  1. Caro Pedro,
    Sem dúvida uma entrada de grande fôlego, talvez (certamente (puf, puf)) demasiadamente cifrada para o alcance dos meus conhecimentos. Sendo um tema muito interessante, poderás compreender, seria sempre pretensioso para um curioso qualquer (eu) ler um livro muito específico sobre linguística e os seus ramos na pretensão de poder partilhar com os seus cientistas a vitória sobre os intelectuais reaccionários que oporiam barreiras entre eles e o campus da banda desenhada. Apartes bacocos à parte, podes aqui, ou irás aconselhar/divulgar nas próximas entradas um livro que consideres mais acessível/abrangente sobre esta matéria ou, no espectro mais alargado, sobre semiótica aplicada à banda desenhada? E, claro, não concedendo, também escrita por cientistas (um Carl Sagan dos comics dava jeito :-) e não por artistas de bd generosos mas sem metodologia (risos)? Lembro-me de há uns anos atrás (uns 20 :-( ler alguns textos (de um livro?) do Umberto Eco, ou estarei imaginar?
    Obrigado e abraços.
    José

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  2. Olá, Jos]e.
    Sim, diria que alguns destes ensaios são suficientemente cifrados para tornarem a sua leitura espinhosa, mas outros poderão ser bastante iluminadores (seja como for, a sua "disponibilidade" no Laboratório de Estudos de Banda Desenhada pode torna-lo um ponto de partida).
    Essa é uma boa pergunta, que livro aconselhar. Mas a resposta não se faz tardar: em primeiríssimo lugar, "Système de la bande dessinée", de Thierry Groensteen (existe uma tradução inglesa, se necessária). Mas depois disso, revisitar outros artigos e/ou livros, de Benoît Peeters e Renaud Chavanne, de M. Sarraceni a alguns artigos. Do ponto de vista da criação e prática, não conheço nada que tenha superado os dois volumes feitos por Jéssica Abel e Matt Madden...
    Pedro

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  3. José Sá7:32 da tarde

    Obrigado Pedro,

    A WWW é uma coisa maravilhosa. Já dei uma espreitadela às primeiras páginas da versão inglesa (o meu francês é insuficiente para "livros técnicos") no site do costume. O acesso à informação e aos livros chega a ser fácil de mais, até me sinto culpado. É muito bom agarrar estes livros e tentar lê-los, ajuda a combater a "neuroplasticidade".
    Obrigado, obrigado.
    José

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