Tal como ocorrera com o número anterior, na transformação do formato de comic book (irregularíssimo) para o de um volume (igualmente irregular, mas de forma menos premente), Seth faz convergir neste objecto não apenas o seu projecto narrativo corrente, como explora várias outras possíveis linhas temáticas, estilísticas, e até de pesquisa matérica. Não deixará de ser estranho, em termos materiais, ter um título de uma série sob a forma de livro, não o sendo, isto é, acima de comic book, digamos assim, ou mesmo de revista antológica, mas que não é de forma alguma como livros de uma série contida, como o Berlin de Lutes ou uma qualquer colecção de TPBs. A capa dura, o vinco, a capa com revelos e aplicações prateadas, as guardas irrepreensíveis, o papel de gramagem superior, a “mão” ou ergonomia perfeitas, tornam estes Palookaville em objectos, no fundo, de algum luxo.
Dividido em três “secções”, Seth apresenta-nos três modos narrativos distintos, distintos igualmente pela sua abordagem visual e estrutural. Em primeiro lugar, temos a continuação de “Clyde Fans”, uma espécie de saga familiar melancólica e derrotada, em torno dos dois irmãos Simon e Abraham, e da sua companhia de ventoinhas eléctricas. Se It’s a Good Life if you Don’t Weaken era uma obra maior da melancolia e da lentidão, no seu sentido mais poético, introspectivo mas também de atenção para com os pormenores que apenas aqueles que se dão à distracção da vida acedem, parece-nos que “Clyde Fans” atinge patamares ainda mais profundos dessa lentidão. Se aceitarmos aquele símile de que Kundera fala em A Lentidão, em que a velocidade é proporcional ao esquecimento e a memória à lentidão, o que faz com que uma pessoa, passeando, estugue o passo para impedir recordar-se de algo de que não se deseja recordar, e diminuí-lo para que a memória o apanhe, então esta novela de Seth mostra um homem que já quase não tem forças para fugir das memórias que o apanham, e de toda a herança da vida, mas também da pobre perspectiva de que aquilo que havia construído profissionalmente irá atingir uma inexorável dissipação, quem sabe coincidente com a sua própria morte. A relação de Abraham com a sua mulher, de quem se separou, a quase patética rivalidade com o irmão, e o assalto de uma memória longínqua do caso com Alice, são aparentemente os únicos resquícios que lhe ocupam os dias. Como de costume, neste texto, Seth opta pela construção de páginas em estruturas regulares, com poucas variações, dando particular atenção a momentos de flânerie, ou de observações de pormenores espaciais, quase desimportantes, ou interrompe a “acção” com vinhetas a negro e legendas, que apontam à consciência do protagonista. Isto é, em “Clyde Fans” tudo parece concorrer para que não haja espaço a acções.
Há uma atenção particular e gráfica para o modo sonoro: onomatopeias sublinham todos os gestos, por mais insignificantes que eles pareçam ser, desde a máquina de barbear ao zumbido de uma lâmpada solitária, dos tacões no soalho às baforadas no cigarro, tudo parece ganhar uma dimensão adicional que não necessitaria noutras circunstâncias. Todavia, o facto destes “eventos” serem sublinhados pelo som servem precisamente para acentuar a ausência de outras dimensões mais dramáticas ou espectaculares. São elas que “enchem” o espaço, o texto, a vida de Abe. Se outros textos em torno da velhice, há pouco discutidos neste espaço (Living Will, El arte de volar), demonstravam ainda a resistência possível da velhice ao tempo, as formas como se podem assumir os papéis activos que ainda restam na vida, esta narrativa de Seth parece antes prender-se aos fiapos da mesquinhez, aos egoísmos destilados, aos rancores guardados durante anos, e que desgastam as personagens. Veremos se o término está próximo, e como fechará o cômputo delas.
Antes de passar para a segunda secção, falemos da terceira, ocupada pela anunciada primeira parte de “Nothing Lasts”, uma história que faz Seth regressar ao campo da autobiografia pura e dura como já não fazia desde o início de Palookaville (aceitando-se que It’s a Good Life se inscreve antes na “auto-ficção”). O autor concentra-se aqui na sua infância, prestando atenção sobretudo às mudanças de casa, numa zona relativamente circunscrita daquela zona do Canadá, às correspondentes transformações das relações de amizade com outras crianças, colegas da escola ou vizinhos, modos de explorar o espaço em torno da casa, hábitos de lazer, variadíssimos episódios passados na escola ou colónias de férias, etc. Mas ainda mais central, ainda que sempre de modo difuso e subtil, está a relação com o pai e com a mãe, sobretudo a mãe. Na verdade, este ponto faz-nos recordar a obra maior do colega e amigo de Seth, Chester Brown: I Never Liked You é um livro que também se concentra em memórias da infância para poder tecer ou regressar a uma relação perdida com a mãe, tentando talvez compreender o que mudou nessa relação e assinalar uma perda. Mais ainda pelo facto de tanto a mãe de Brown como a de Seth terem sofrido nos últimos anos das suas vidas doenças degenerativas, que a afectam a personalidade, e isso ser debatido, ainda que de modos diferentes, nos textos.
Talvez para assinalar essa representação, ou melhor dizendo, reconstrução das memórias da infância, Seth opta aqui por um estilo mais arredondado, cartoonesco, próximo de certos estilos de humor que ele próprio admira e segue, desde Peter Arno a John Stanley. Essa factura, por assim dizer, não quer portanto criar uma total ilusão de “verdade” ou de “regresso prístino” dessas memórias, e o autor vai deixando questões que colocam em causa algumas das memórias ou da arquitectura das reminiscências. Uma dessas questões é coloca de forma subtil mas visível, para que os leitores atentos a “cacem”: Seth vai indicando toda uma série de nomes de ruas e bairros e pontos que presumimos serem verdadeiros e existentes naquelas pequenas cidades de Ontário, mas há um momento em que ele nos mostra um pequeno edifício que indica o nome “Dominion”. Os leitores do número anterior de Palookaville reconhecerão o nome, e aperceber-se-ão de que essa palavra cria de imediato um factor destabilizador da suposta “verdade judicial” do que está a ser contado, até certo ponto uma expectativa típica na leitura da autobiografia (tal como discutido por vários teóricos, como Elisabeth El Refaie), mas ao mesmo tempo ela permite que se estabelece uma tensão entre a “auto-ficção” e outros modos de poder criar a “autenticidade” neste tipo ou género de banda desenhada.
Contudo, não são essa tensão e negociação próprias do funcionamento da memória humana? Tal como Kundera, também Seth é um criador de metáforas poderosas da memória. A “grelha” em “Nothing Lasts” é ainda mais apertada do quem “Clyde Fans”, partindo de um modelo de 4 x 5, mas aqui e ali fundindo vinhetas para dar a ver uma cena maior, usualmente de um edifício ou um retrato, ou uma cena mais significativa. Algumas dessas imagens levantam porém um problema aos protocolos de leitura. Se algumas delas terminam as páginas, não levantando problemas de maior, e apenas num caso abrindo a página, existem outros momentos em que elas se encontram a meio do percurso e lançam o leitor na dúvida: deverá ler-se a vinheta maior logo após a vinheta menor que a antecede, ou deve ler-se a vinheta menor em baixo e depois passar para grande à direita? Este breve desarranjo não é grave, nalguns casos é claro, e é, claro, propositado, servindo talvez para fazer “tropeçar” a leitura e portanto impor uma velocidade muito particular, um ritmo de retorno e avanço lento, conservando todo o projecto na filosofia do autor. Mas há outras metáforas. A dado momento, e tirando partido desta grelha apertada, Seth fala de umas gavetas onde guardava, ou jogava apenas, brinquedos velhos que já não o interessavam, velhos modelos de plástico de aviões, carrinhos ou bonecos. À medida que a gaveta de enche, as figuras começam a apertar-se até se quebrarem e não deixarem senão fragmentos de si mesmas a encher esse espaço. Pela economia da narrativa e a navegação das páginas, Seth faz passar dessa discussão sobre os brinquedos para a de um cinema local, na página seguinte. Mas repare-se como estando lado a lado essas imagens, e apesar da imagem do interior do cinema poder ser lida como uma imagem contínua sobre a qual está sobreposta a grelha das vinhetas, não só esses espaços acabam por isolar as figuras (estão juntas, partilham um ritual social, mas na sua acção de entrega imaginativa ao filme estão em espaços isoláveis na sua maioria) como elas parecem imitar as peças quebradas dos bonecos. Quererá o autor acentuar o isolamento das pessoas? Ou dele mesmo quando criança das restantes criaturas? Somente impor um ritmo de narratividade e tempo, como querem certas teorias semióticas da banda desenhada? Ou permitir uma navegação em dois sentidos, que tanto aparta como tece esses “fios de memórias”?
Essas interpretações metafóricas parecem ganhar um agente poderosíssimo no terceiro texto deste volume, a segunda secção, intitulada “Rubber Stamp Diary”. Seth começa por explicar este projecto: discutindo com Ivan Brunetti a dificuldade que havia em manter um verdadeiro diário em banda desenhada, teve a ideia de criar alguns carimbos que tivessem vinhetas pré-desenhadas com cenas recorrentes (a caminhar, de perfil ou de costas, a ao estirador, cenas urbanas, a sua casa, etc.) e que lhe permitiriam criar uma página rapidamente, bastando acrescentar o texto; além disso, um carimbo adicional com apenas a moldura de uma vinheta ajudá-lo-ia a precaver-se a situações inéditas. Seth acabou por “ficar” com essa mesma ideia e deu início a este projecto, que agora divulga pela primeira vez. Tal como em “Nothing Lasts”, que é indicado pertencer ao “Sketchbook no. 10”, remetendo à ideia de uma obra contínua, arquivável, revisitável de vários modos (v. Vernacular Drawings, p. ex.), também estes Diários do Carimbo foram feitos em cadernos quase de burocracia obsoleta. A sua reprodução aqui é directa, sem qualquer tipo de intervenção ou limpeza posteriores, o que dificulta a leitura por vezes. Além disso, nota-se perfeitamente os locais onde a tinta está mais gasta, onde houve um desenho com marcador ou caneta por sobre o desenho do carimbo, pequenas alterações ou adições, nota-se igualmente de forma nítida as repetições e/ou diferenças entre a utilização de um mesmo carimbo em momentos diferentes. E finalmente, temos novamente uma grelha, 2 x 4, como se Seth quisesse demonstrar em todos os seus gestos criativos a preferência por uma quase absoluta regra de construção, sem desvios, para se concentrar no que é contado, num “conteúdo” transmissível: as experiências de um passeio, a visita a um novo restaurante, a rotina de um dia de trabalho fechado em casa, uma observação permitida pelo quotidiano…
Menos autobiografia do que observação momentânea, existem vários trechos que farão recordar os leitores de John Porcellino do tipo de “haikus” possíveis de surgir nessa entrega ao “sem-importância”. A repetibilidade das imagens e a ausência de um tratamento que melhor a qualidade das imagens enfatiza essa predisposição ao banal. A grelha irrepreensível insistirá numa certa disciplina do corriqueiro, tornado afinal “Rubber Stamp Diary” num texto menos interessante pelo que revela do que da forma como se revela e nos obriga a repensar as formas de atenção e de trabalho.
Num só volume, de um mesmo artista, e correspondendo a um período relativamente similar de tempo em termos de produção, eis como Seth nos dá a ver três modos totalmente diversos - ainda que com grandes traços comuns - de tratar a memória, de tecer narrativas e até mesmo de gerir as matérias visuais e gráficas de uma mesma mão. A obra de Seth é de uma sofisticação muito complexa, ainda que aparente tratar-se de algo quase indolor de criar. Aquela expressão do “falsamente simples” poderia ser aplicável de uma forma perfeita a este autor, se não estivesse gasta por um uso abusivo em relação a trabalhos que mimam o tipo de profundidade que Seth atinge (relembremo-nos, a título de exemplo, de Daytripper) para se ficarem por uma superfície demasiado burilada. Talvez baste dizer que cada vez mais o título de Palookaville faz menos sentido.
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