Em 1990, o MoMA
apresentou uma exposição comissariada por Kurt Varnadoe,
um dos curadores de pintura do museu, e Adam Gopnik, jornalista e crítico de
arte (e estudante de Varnadoe) da The New
Yorker. Essa exposição visava explorar alguns dos modos de comunicação
entre as “belas artes” e as suas supostas fontes populares ou idiolectos
demóticos, desde os cartoons dos
jornais aos graffiti. Essa exposição chamava-se High & Low, Modern
Art and Popular Culture, deu origem a um livro monumental e ainda hoje
precioso, mas ao mesmo tempo criou toda uma série de controvérsias, mal-entendidos
e até mesmo um posicionamento demasiado polarizado (começando pela assunção da
designação “high” e “low”), sendo atacada quer do lado dos conservadores da
sublime estese quer pelos praticantes da viva diversidade das artes “baixas”.
Um desses praticantes foi Art Spiegelman, que criou uma pequena peça,
chamada “High Art Lowdown,” que
servia de comentário, ou mesmo crítica (review)
sob a forma de banda desenhada, publicada na revista Artforum. (Mais)
Quer a atitude crítica quer as escolhas formais de Spiegelman para a
construção desta imagem encontrarão as suas raízes, ou parte delas, na obra gráfica
de Ad Reinhardt. A colecção aparentemente heteróclita de informações mas que se
tornam satélites de uma noção central que deve ser criada pelo
leitor-espectador, a distribuição não-axial dessas mesmas unidades imagéticas
ou de sentido, a variação estilística no seu interior, o cruzamento entre
citações provenientes de uma cultura refinada, intelectual e sensível a
complexidades estéticas e a aceitação incondicional de um humor brejeiro e
bruto (recordando as preferências de um Adorno pelos extremos, evitando
qualquer tipo de middlebrow, mas suspendendo
as questões, mais importantes, a nosso ver, que uniriam a suposta esfera
autónoma da arte com a da política, do uso individual, etc., que uma teoria
como os Cultural Studies viriam
rever, e já se debatia em Walter Benjamim), tudo isso faz eco das práticas e concepção histórica e
conceptual de Reinhardt nos seus
próprios trabalhos “de banda desenhada” sobre artes visuais que criara
sobretudo na década de 1940.
Este livro enorme, e
desde logo fundamental em termos históricos, que serve também de catálogo a uma
exposição havida no final de 2013 na galeria David Zwirner, reúne todos os
“cartoons” – pois essa é a palavra mais exacta que lhes serve de descritivo –
que Ad Reinhardt produzira para o diário liberal P.M., entre os anos de 1946 e 1947, mas também para a ARTnews e uma série de outras
publicações (um ou dois cartoons por título). Organizado por ordem cronológica,
com algumas repetições (a famosa “How to Look at Modern Art in America”
repete-se para contrastar, lado a lado, com a versão de 1961), o livro em si tem
uma legibilidade exímia, com um texto introdutório, concentrado, e depois
seguido apenas das imagens, sem quaisquer comentários ou dissecações
excedentárias. É certo que muitas das “piadas” exigirão da parte dos novos
leitores um substancial conhecimento da cultura da época, os nomes, as tricas,
os jogos de poder, a compreensão de detalhes – por exemplo, um prémio de arte
patrocinado pela Coca-Cola não é senão explícito por ter a garrafa icónica
pendurada com uma etiqueta “denotando um vencedor de um concurso popular”).
Além disso, os cartoons de Reinhardt
não são nem tão simples em termos de humor como, por hipótese, os de Peter
Arno, nem tão universais em termos gráficos e sensibilidade imagética como os
de Saul Steinberg (todos contemporâneos), mas recompensam seguramente aqueles
que puderem aceder aos seus significados mais obscuros (ou menos, conforme o
nível de familiaridade com esta história).
Como explicita o
crítico Robert Storr no seu prefácio (“Diogenes of the Funny Pages”), há toda
uma fatia da história das artes visuais dos E.U.A. das décadas de 1930 a 1950
que foi, se não suspensa e esquecida, pelo menos posta de lado em relação ao
triunfalismo do Expressionismo. E uma das características que Storr sublinha
com afinco, angariando nomes tais como os de Hopper, de Kooning, Guston,
Steinberg e William Gropper, é o facto de eles “pertencerem a esta espécie de
quase-secreta fraternidade modernista que trabalhavam como pintores e
escultores vanguardistas durante o dia, mas faziam uns biscates como
ilustradores para a imprensa popular”. Storr explica também imediatamente que
por “imprensa popular” se está a referir a toda uma constelação de publicações
de tendências políticas de esquerda, tais como a magnífica e importante marco
na história da ilustração editorial norte-americana The Masses/The New Masses,
e que constituíam uma claríssima oposição a títulos mais famosos, mas
igualmente menos politicamente progressistas, como a Time, a Life ou a Fortune. Um outro nome esgrimido nestas
breves mas brilhantes colunas é o de Saul Steinberg, se bem que o artista
romeno seja visto como alguém que trabalhou exclusivamente no território do
desenho publicável/reprodutível, não se lhe conhecendo peso significativo
noutra área, como no caso do próprio Reinhardt, cujo nome deve constar de
qualquer história de arte que se preze, por mais generalista e mainstream que se trate.
Storr providencia
informações sobre as fontes visuais das colagens de Reinhardt, sublinha
métodos, temas ou figuras recorrentes (as árvores, a estrutura em vinhetas
não-sequenciais), torna clara as suas estratégias de significado, de humor e
posicionamento crítico em relação à cultura que se expõe, satiriza ou desmonta
nas imagens, estabelece paralelos dessas suas práticas particulares e aquelas
de outros artistas com os quais se poderia irmanar quer em termos técnicos e
processuais (Daumier e Ernst, por exemplo), mas também lança pistas de interpretação
e de implicações políticas e estéticas compreensíveis aos próprios leitores
contemporâneos, e não, hipoteticamente, ao próprio Reinhardt, como quando
referencia The Simpsons ou Family Guy para tornar clara o aparente
paradoxo de termos autores socialistas como Guston e Reinhardt a trabalharem
para publicações cujos proprietários eram altos representantes do capitalismo
mais gritante (e de sucesso).
Em termos composicionais, as estratégias de Reinhardt não só mostram ser
Spiegelman um seu herdeiro (mesmo que parcialmente, mas a navegação da
legibilidade de In The Shadow of NoTowers é-lhe muito devedora), como abrem a possibilidade de o associar a
outros autores com os quais não teria sequer cruzamentos contextuais possíveis,
tais como os “Ecos da Semana” de Botelho (e os herdeiros deste, pelo menos na
nossa óptica, como Burgos e Câmara). No entanto, se focarmos sobretudo o “emprego”
e a conceptualização dos argumentos presentes nos cartoons, existirão
raízes mais recuadas neste tipo de argumentação visual e estrutural, começando
com Analysis of Beauty (1753), de
William Hogarth, também ela uma composição cravejada de pormenores e informação
que a torna uma imagem dialéctica, como desejava Walter Benjamin (citado por
Storr, mas não neste aspecto). Esta é um espaço de encontro entre o passado e o
presente, entre as faces contraditórias ou mesmo aparentemente antagónicas de
um mesmo objecto, uma sobreposição entre algo descritível como “real” –
objectos, arte, práticas, um fóssil –
e uma imagem “virtual” – desejo, sonho, um fetiche.
Nesse sentido, não pode deixar de ser “chocante” – esta palavra também é
emprestada de Benjamin, no sentido de uma situação que alerta o espectador para
algo que se apercebe, nesse momento, ter estar desapercebido – que Reinhardt
tenha construído alguns dos seus argumentos críticos em relação à prática
artística, a ideias chãs de “cultura”, etc., não através de uma suposta
articulação textual e argumentativa, mas através de pequenas colecções de
situações narrativas combinando imagens e textos, legendas e expressões
corporais e físicas, citações e colagens, constelações contraditórias de
referências e possibilidades de navegação por informações paralelas e
complementares, mas não subsumíveis a uma “resposta”. Benjamin falava do “choque”
constante no espaço urbano, do assalto aos sentidos pelas imagens em todo o
torno, e cada um destes “How to Look…” não deixam de ser assaltos concentrados.
Como escreve Storr, estas imagens constituem, no seu conjunto e cada uma delas,
“um exercício complexo de crítica sob a forma de uma arenga farsante”.
De facto, apesar do que
parecem prometer os seus títulos individuais, não se conseguem nessas imagens
descobrir um só sentido ou lição unívoca, mas antes uma pluralidade de posições
ou um jogo multifacetado de questões que impede precisamente uma conclusão precipitada
ou uma resposta simples à pergunta, ou série de perguntas que é aparentemente colocada:
“como olhar x”.
Na verdade, se se
tentarem consultar estes cartoons
diagramáticos de Reinhardt em busca de uma resposta formulaica, simples e
directa ao que parecem perguntar, haverá graves problemas. Por exemplo, em “How
to Look at an Artist”, toda uma série de frases é espalhada pelo campo visual,
dizendo “arte é x”, com pequenas imagens ou cenas mais ou menos ilustrativas
dessa mesma situação. “Arte é imitação” mostra um macaco, “é uma profissão
antiga” mostra uma suposta prostituta, mas ainda se vão encontrar os axiomas
que declaram ser a arte “um escape”, “um bem”, “uma reflexão”, “divertimento”, “experiência”,
“útil”, “brincadeira”, “ilusão”, “conhecimento”, “internacional”, e “imagens”...
São essas ideias contraditórias ou aditivas? Estabelecem elas princípios
absolutos e universais ou antes mutáveis conforme os contextos sociais e
culturais?
Para a P.M., Reinhardt criou uma série
relativamente coerente de situações e/ou questões: “como ver uma pintura
cubista”, “como ver a alta arte (abstracta)”, “como ver a baixa (surrealista)
arte”, “como ver um artista”, “o espaço”, “a conversa sobre arte”, “uma boa
ideia”, “arte e indústria”, “a iconografia” e por aí fora, enquanto para outros
títulos (a Belfry, a trans/formation, Art d’aujourd’hui, etc.) criou imagens mais singulares, mas sem
deixar de empregar muitos dos elementos técnicos, estilísticos e de humor da
série mais famosa. Se nalguns casos é possível destilar uma subtil trama
narrativa, ou uma ordem sequencial entre cada “unidade” (não propriamente
vinhetas organizadas enquanto tal, mas pelo menos nódulos legíveis como
situações singulares), a verdade é que a esmagadora maioria das imagens permite
uma leitura mais livre, quase aleatória. Apenas um estudo mais aturado, a que
não nos entregámos, revelaria a correcção dessa impressão.
Portanto, Ad Reinhardt
cria o mais importante serviço na aproximação à arte: cria questões. As quais,
recordemos, são diferentes de perguntas, umas vez que estas têm respostas, e aquelas novas questões ou problemas. Com efeito, pode-se imaginar perfeitamente – ou pelo
menos nós fazemo-lo – uma forma de ensinar a apreciar e a compreender a arte,
inclusive contemporânea, através destas imagens, destas verdadeiras “lições”.
Se John Berger criou uma série televisiva (que daria origem ao seu famoso
livro), Ways of Seeing precisamente
“fora” de um discurso normativo e histórico, mas antes através de um
treinamento individual de princípios conceptuais, é precisamente isso o que
está em jogo nestas imagens do autor norte-americano. Em vez de encerrar os
potenciais novos espectadores da arte com toda uma série de platitudes e
obstáculos conceptuais, começando pela ideia de talentos divinos, compreensões
subtis acima do comum mortal ou cidadão, ou a necessidade de conhecimento para
se aproximar de uma qualquer obra de arte (antiga ou contemporânea, vetusta ou
desconhecida, sustentada institucionalmente ou descoberta sem contexto),
Reinhardt faz parte daqueles pedagogos, com estes cartoons, que convida a se estabelecer uma relação directa de
interrogação com a obra de arte, e uma predisposição, que só pode ser
individual, para esperar que a resposta se comece a formar. De certa forma, é
uma atitude muito próxima da de Kant, que esperava que a única comunidade
humana possível fosse a estética, e que a predisposição à discussão, isto é, a
troca de argumentos com vista à entrada nessa comunidade, fosse desde logo um
gesto comum, de aproximação, de concordância, e não de criação de campos
opostos e de conflito ideológico.
Da perspectiva “dialéctica”
aventada acima, ou das contradições inerentes à vontade humana, emerge a
necessidade de apontar o óbvio. Estes cartoons
são uma produção totalmente diversa da própria prática pictórica de Reinhardt,
que desabrochou num abstraccionismo para atravessar várias fases nos anos 1930
influenciado por toda uma série de movimentos e ismos, e desembocar nos seus
magníficos quadros monocromáticos da década de 1950. No entanto, essa
“separação” só o é em termos imagéticos ou técnicos, já que toda a sua prática,
de editor a crítico, reflectia o seu extremo posicionamento sem concessões,
passível de se encontrar resumido na sua concepção de que “A arte é a arte.
Tudo o resto é tudo o resto”, impedindo-se qualquer trânsito, ou melhor,
qualquer promiscuidade ou confusão perigosa entre arte e vida.
As imagens desta edição
são reproduzidas com grande qualidade (assim como todo o objecto físico, em
termos da gramagem e textura do papel, a encadernação exímia e flexível, a
elegância do design), revelando o trabalho de linhas e mesmo das colagens no
seu alto contraste de preto-e-branco, “apagando” o velho amarelo das folhas
impressas (de que se mostram alguns exemplos, assim como de esboços, colagens
originais ou reproduções de “fontes” e “influências”). As margens brancas
generosas aumentam a facilidade com o nosso olhar pausa sobre estas “lições do
olhar”, e é esse mesmo o seu propósito. Muitas destas imagens surgiam aqui e
ali, mas finalmente temos uma edição definitiva e prístina.
Nota final:
agradecimentos à Hatje Cantz, pela oferta do livro.
Há cerca de cinco anos que ando à espera de um livro assim. Entre os cartoons e as pinturas monocromáticas, nessa distância, há muito por explorar ainda. Obrigado Pedro por nos apontares para o livro, e pelo contexto que produzes.
ResponderEliminarOlá, Francisco.
ResponderEliminarSim, um livro sobre os monocromáticos seria mais uma adição. Posso estar em erro, mas nunca vi nenhum, apesar de conhecer boas bibliotecas de arte. Aliás, imagino que uma monografia sobre monocromáticos, que unisse Malevich a Reinhardt a Fernando Calhau, por exemplo, seria uma adição óptima. Didi-Huberman?
Abraços,
Pedro