22 de maio de 2014

Échos. AAVV (L'employé du moi)

Este livro é composto por seis histórias que nascem de um trabalho curioso de colaboração, ou melhor dizendo, de exercícios de canto de responsorial. Contam-se seis artistas, todas elas trabalhando, quase exclusivamente, com lápis (grafite, colorido ou outro) sobre papel. Mulheres de várias nacionalidades, algumas das quais já tivemos oportunidade de ler no passado, os “ecos” que criam são transnacionais: Joanna Hellgren é sueca, Amanda Vähämäki é finlandesa, Noémie Marsily é belga, Joanna Lorho é francesa, assim como Julie Delporte ainda que esta tenha trabalhado no Canadá sobretudo, e Aisha Franz é alemã. O livro está dividido em três partes, estando cada uma delas composta por duas histórias, criadas aparentemente por cada duas artistas ao mesmo tempo, com elementos narrativos ou temáticos idênticos. (Mais)


Cada par de histórias parece poder ser descrita, de uma forma ou outra, da mesma maneira, existindo uma premissa comum que depois encontra desenvolvimentos e pormenores discretos, já para não falar do “traço” necessariamente distinto, mesmo que os seus instrumentos sejam também próximos entre si. Cada parte dupla é aliás precedida de uma página dupla, com uma fotografia – provavelmente de uma paisagem, urbana aqui, florestal ali, partilhada – e uma frase que descreve as narrativas.

Hellgren e Vähämäki, unidas por preocupações “do norte”, mostram duas protagonistas presas a uma rotina algo esmagadora das suas vidas (uma trintona presa a um emprego odioso e que a aliena, e uma namorada que não parece partilhar as mesmas preocupações profundas dela, a outra uma bibliotecária com três filhos, a aguardar o fim-de-semana em que estará “livre”), num clima igualmente desolador, e que encontram uma possível saída no reino do maravilhoso. Se ambas atravessam a fronteira da fantasia, ou se se tratam de alucinações, sonhos ou projecções, não é claro, mas tampouco é importante para a realização dos seus desejos imediatos. A esmagadora maioria das páginas de Hellgren apresenta uma incontornável e quase marcial grelha, o que corresponde ao ritmo empedernido da vida da protagonista. Vähämäki, como é sua assinatura, deixa que os traços da grafite, o seu pó leve, “contamine” aquelas áreas que esperaríamos limpas, como se quisesse mostrar uma espécie de cansaço, sentido pela mulher, esborratando todo o ambiente em que ela se encerra.

Marsily e Delporte mostram duas personagens escrevendo-se mutuamente. Marsily assume a personagem de Bernadette, que escreve uma carta a Julie. É uma personagem feminina, sem dúvida, mas Marsily representa-a como um caranguejo-eremita, primeiro de um tamanho idêntico ao de um ser humano mas depois ocupando todo o interior de uma casa, que arranca das fundações e leva na sua fuga final. Ela escreve a carta numa máquina de escrever, mas a autora quase reduz a história ao silêncio, apenas algumas palavras são trocadas pela protagonista em resposta ao gato, ou interrompendo o que parece ser o permanente sopro do vento com outras onomatopeias, a do piano, a da máquina, a do ruído do trânsito que atravessa a floresta. Quanto à protagonista de Delporte, que se dirige a Bernadette, espalha as suas sensações, sentimentos e impressões por uma espécie de “escrita” diarística feita de fragmentos (característica da sua obra), também coloridos, mas todos eles como gesto de saudades para com a amiga. Se Marsily usa uma abordagem cheia de toda a página, com cores não-naturais e vincadas no papel (notam-se algumas pressões aqui e ali que incutem às figuras uma presença menos diáfana e passageira), Delporte usa uma figuração mais sumária, desgarrada, à la patchwork, e em que as letras são desenhadas com cores diferentes e de uma forma quase infantil, a um só tempo transmitindo vergonha de se estender em demasia nas palavras mas dizendo-as de um modo decidido.

Franz e Lorho criam duas histórias separadas, mas em que ambas envolvem duas raparigas que visitam a casa da avó, à beira-mar. A de Franz é uma adulta que revisita essa casa, tendo a avó morrido há muito. A de Lorho é uma criança, passando o Verão com a avó, e parece ocorrer um terrível acidente qualquer (talvez com o pai). Essas estadas, mesmo que temporárias, irão permitir um cruzamento fantástico a outro mundo de experiência, de forma a que cada protagonista se cruze com um fantasma. No caso da primeira, visita-se o passado, no da segunda é o fantasma (do pai?) que salva a menina das águas turbulentas do mar, e depois ela quem o salva a ele de águas ainda mais túrbidas. Franz cria estrutura de composições tanto regulares como irregulares, algumas com escolhas geométricas inusitadas mas de grande elegância, em que os intervalos entre vinhetas são negros como caixilhos, e no interior das quais as personagens estilizadas elaboram cândidos movimentos. Lorho, por sua vez, “abandona” as personagens nas páginas sem divisão de vinhetas senão o branco entre os desenhos, mas cria formas fluidas perfeitas que acompanham as ondas dos espaços e dos sonhos atravessados pela menina.

Os ecos que atravessam estas páginas – cada uma delas em torno da trintena - podem ser então entendidos a um nível apenas narrativo, entre cada par de histórias, mas também ao nível da materialidade dos desenhos e dos gestos, apenas um instrumento aparentemente simples dando continuidade e rasto gráfico aos movimentos dos pulsos e dedos. Todavia, também se unem num maior conjunto, não tanto pelos lápis, não tanto pela grafite, nem pelo facto de serem autoras, mas por focarem em vidas de protagonistas que, casadas ou divorciadas, amantes ou solitárias, jovens ou vividas, apaixonadas ou desencantadas, saudosas ou autónomas, encontram nessas suas experiências de solidão uma espécie de passagem entre mundos, que se poderiam chamar de vigília e sonho, ou realidade e fantasia. Isso, porém, não é negar de forma alguma a parte que cabe à fantasia ou ao sonho de moldar a vida, sobretudo no que diz respeito às pulsões e desejos que tanto a animam. Mas é talvez um modo de dar a entender que, tal como a Eco da mitologia grega, onde antes existia uma profusão de histórias e uma voz incessante, resta apenas um traço, melancólico e desacelerado, de algo que é já pretérito.

Nesse conjunto de alguma melancolia, porém, restam sempre as sombras que se lêem e a beleza que devolvem.

Nota final: as imagens usadas foram colhidas da internet, sobretudo da própria editora. 

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