30 de maio de 2014

Três livros académicos recentes.

Independentemente dos géneros e estilos que ela possa implicar, poderemos pensar na banda desenhada como uma espécie de locus amoenus? Não no seu sentido estrito de um lugar pastoral, onde decorreriam cenas românticas, plácidas, mas enquanto um espaço separado da azáfama e perigos da vida mundana, e que encerraria nesse seu cantinho um grande número de frutos e calmia. Enquanto texto, a que obrigará ao momento apartado da leitura, suspensão da vida “lá fora”, poderá funcionar dessa forma, mas isso não significa que evite todos os perigos, sobretudo os do pensamento, os da empatia para com experiências diferentes das nossas, e para as correntes da política e da história, de que fazemos sempre parte, mesmo que não o desejemos ou imaginemos estarmos imunes a elas. Num certo sentido, é para isso que os livros académicos sobre banda desenhada servem, fornecer-nos instrumentos e caminhos mais claros sobre como é que esse acesso ocorre, em que condições e em que resulta. Eis três volumes recentes. (Mais)

Alan Moore and the Gothic Tradition. Matthew J. A. Green, ed. (Manchester University Press).
Como se compreende pelo título, este é mais um livro dedicado quase exclusivamente a um autor, no sentido de ser ele o cerne da atenção, o centro da criação de todo um número de textos que são passíveis de análises sob os mais diversos focos. Ora no caso do presente volume, que colecciona 13 ensaios (o primeiro é uma introdução pelo editor, o que leva a imaginar que a numeração do mesmo serve somente para evitar aquele número), o foco é um campo tão delimitado como possível de expandir nalguns aspectos, que é o da literatura gótica, compreendida sobretudo por uma produção inglesa dos séculos XVII a XIX. Porém, de imediato essa noção é aberta para englobar produções subsequentes, inclusive cruzamentos inter-genéricos e noutros meios, como o cinema e performance, uma vez que não é apenas a banda desenhada e Moore e colaboradores a ser estudada. E os estudos não se limitam àqueles títulos que surgiriam como os mais óbvios (Swamp Thing, From Hell, A Disease of Language, The League of Extraordinary Gentlemen) mas igualmente a produção de super-heróis, os livros "alternativos" (A Small Killing), ao romance (Voice of the Fire). O caso de The Bojeffries Saga (que teve recentemente uma reedição) é de extrema curiosidade, uma vez que é, a um só tempo, uma fabricação sobre todo um conjunto de tropos do gótico como uma subversão cómica do mesmo. Aliás, se se apresenta alguma definição do gótico, também há visões suficientemente distintas para não apresentar uma ideia demasiado empedernida. As duas dimensões mais importantes, parece-nos, têm a ver com o gótico apontar para uma ideia de alteridade e excesso. De certa forma, são dimensões coincidentes, mas se a primeira se relaciona com processos de subjectivação, a segunda prende-se com questões de estilo, isto é, textuais, superficiais se quiserem. Pensamos que qualquer leitor/espectador atento da obra de Moore identificará de imediato a exactidão dessas palavras para a discutir. Se existem outros autores que poderiam ser estudados sob este foco (Gaiman, Mignola, Gabriel Delmas, Junji Ito), é Moore que explora este território não apenas de uma forma mais engajada cultural e historicamente, consciente mesmo, como de forma reinventada e, o que é mais significativo e repetido pelos autores dos ensaios, relançando-o no palco cultural. Quer dizer, Moore não apenas seria o "mais" góticos dos escritores de banda desenhada como seria responsável mesmo por uma vida mais contemporânea e viva do gótico nesta arte.

Nalguns casos, trata-se mesmo de ensaios de literatura comparada, elegendo-se um conceito (o "duplo", o monstro, a desrazão, etc.) que se lê, contrastiva ou complementariamente, num título de Moore e numa obra de literatura (Mary Shelley, Le Fanu, Walpole, Stoker, Lovecraft, etc.). No entanto, o volume encontra-se tentativamente organizado de maneira a estruturar dimensões diferentes de analisar e estudar o fenómeno: consideram-se aspectos políticos, sobre os tropos, a questão da herança e adaptação, e finalmente uma quarta parte dedicada à "arte, magia, sexo, outro". Se algumas das interpretações não são de forma alguma coincidentes com as nossas - em vez de de subsumir, por exemplo, os eventos fantásticos à "nossa" realidade consensual e, logo, votar à loucura algumas personagesn, como Gull, lemos "no interior da ficção" a realidade da magia que ocorre de facto - quase todos os ensaios apresentam argumentos elaborados e debatidos.

Estranhamente, apesar da promessa e premissa conduzir a essa dimensão, a discussão sobre a prática de magia de Moore não é analisada transversalmente, nem Promethea se torna texto central de nenhum dos ensaios. Independentemente dos sistemas de crenças e práticas sociais dos estudiosos, uma falta de confronto com essa dimensão - real para Moore e real nas suas obras - é algo como uma oportunidade perdida. É o ensaio de Christopher Murray (de resto, autor de estudos sobre o uso da banda desenhada enquanto instrumento de propaganda política) que directamente debate a noção de "Ideaspace" que Moore discute em vários títulos, inclusive a League.

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Drawing From Life. Memory and Subjectivity in Comic Art. Jane Tolmie, ed. (University Press of Mississippi).
Uma vez que o género da autobiografia se parece ter consolidado nos últimos anos como aquele mais imediatamente pronto a analisar com todos os instrumentos académicos empregues no campo literário e dos estudos culturais, não é surpresa alguma que seja ele a receber maior atenção crítica e variações nas abordagens. Esta é uma colecção de ensaios, todos eles pertinentes, mas que acabam por focar os suspeitos do costume: Bechdel, Spiegelman, Chris Ware, e Satrapi. Gaiman também se encontra nesta lista, mas é um estudo que finalmente se centra nos primeiros livros que criou com Dave McKean (Signal to Noise sendo o texto principal), mais significativos em termos pessoais, emocionais e próximos dos géneros centrais destes estudos do que a obra-prima da fantasia que lhe trouxe fama internacional. Ainda assim, há espaço para regressar a “clássicos obscuros” como The Cage de Martin Vaughn-James (num ensaio de Jan Baetens), Lynda Barry e a “nouvelle manga”, semi-inventada por Boilet. O foco está previsto desde logo no título completo da obra, mas há um foco particular, que é o da “corporização” (embodiment) das experiências mnemónicas. A amálgama nascida dos estudos de J. Butler, G. Whitlock, e H. Chute convergem aqui para criar um panorama teoricamente sólido para análises textuais que se não reinventam as próprias premissas teóricas, demonstram a pertinência do seu papel.

Parte do centro nevrálgico das pesquisas aqui reunidas terão a ver com o facto de que o que informa as narrativas escolhidas não é apenas um agenciamento da memória humana, mas a sua transformação numa plataforma de inquirição sobre a subjectividade própria e a negociação com o mundo ou a história. Se nalguns casos (Spiegelman e Satrapi) há necessariamente um diálogo imediato com um tecido colectivo, mesmo esses, e os outros, procuram auscultar as formas como os indivíduos são afectados por situações extremas, a que podemos chamar de traumas, com todas as suas consequências psicológicas, emotivas mas também políticas. Tolmie, na introdução, parte de um confronto directo das obras (e análises textuais específicas) de Lynda Barry, One! Hundred! Demons!, e de Debbie Drechsler, Daddy's Girl, encontrando em ambas, que tratam do abuso sexual de que foram vítimas na sua infância-adolescência, uma tensão polarizada: a escolha pela não-visibilidade de Barry e a obscenidade directa de Dreschler. De uma forma ou outra, “[os textos dessas artistas] sublinham trauma recorrentes e quotidianos, traumas de desigualdade de género, traumas que tem lugar no lar e que têm lugar a cada dia. Num certo sentido, estes textos são sobre aquelas coisas completamente vulgares e se há coisa completamente vulgar é a impossibilidade de destrinçar corpo e espírito [mind], palavra e imagem, emoção e política” (xvi).

Tolmie compreende as diferenças entre as matérias narrativas e abordagens plásticas dos autores abordados, mas encontra uma característica comum em todos eles nas práticas de “auto-retrato [rendering] e refabricação e representação da memória (xx). Ora serão essas práticas que pautarão as questões, diversas elas mesmas e com resultados diversos, colocadas pelos autores de cada ensaio, procurando a forma como a “morte do autor” pode ter levado a apagamentos críticos do corpo e contextualização emocional de quem fala, como os afectos têm lugar através de várias estratégias estéticas, e como a construção da subjectividade se imiscui nos discursos colectivos da história, da política e da sociedade. São particularmente eficientes, digamos assim, os estudos de Lopamudra Basu e Davida Pines em torno da forma como In the Shadow of No Towers de Art Spiegelman e American Widow de Alissa Torres e Sungyoon Choi criam espaços controversos de vozes singulares, individuais e personalizadas contrastando com os discursos oficiais que tentam apagar precisamente as diferenças individuais em nome de uma grande narrativa homogénea (neste caso sobre o 11 de Setembro, mas que é teorizável noutros contextos).

Um dos pontos mais importantes desta antologia, parece-nos, é aquele apontado pelo estudo de Alisia Chase, num estudo comparatista da história da arte, que se concentra em projectos autobiográficos femininos. Para além do que a autora tem a dizer sobre os textos particulares (Kelso, Doucet, Gloeckner, entre outras), é o seu contraponto com a esfera das artes visuais e performativas norte-americanas, na sua passagem do modernismo para o pós-modernismo (décadas de 1970-1980) que sublinha as “crises específicas” desta arte. Ao passo que, exemplos de Chase, a performance “Interior Scroll” de Caroleee Schneeman, de 1975, seria um passo decisivo e chocante contra o discurso dominante da arte monumental e minimal dos grandes artistas (masculinos) da época (Judd, Stella, Motherwell), a emergência do campo autobiográfico na banda desenhada, mesmo que tenha sido desenvolvido mais tardiamente do que outras esferas artísticas, aceitava desde logo o pessoal, o subjectivo, o emocional e até mesmo o irresolvido como elementos próprios, e não alheios, àquilo que poderia fazer esses mesmos textos constituir-se enquanto artísticos. Bem diverso na negociação lenta e até dolorosa que teve de ocorrer no campo das artes galerísticas e museográficas. Quer dizer, e para citar o texto lido por Schneeman na performance, eram precisamente “a tralha pessoal, a persistência dos sentimentos e a indulgência dos diários” que, em vez de serem um entrave ao crescimento artístico da banda desenhada, constituíam a sua força maior. E é isso o que é analisado por Chase.

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M. Töpffer invente la bande dessinée. Thierry Groensteen (Les Impressions Nouvelles)
Para quem tem acompanhado a produção de artigos, ensaios e estudos de Groensteen, não é de surpreender que o seu contínuo foco na obra e recepção de Rodolphe Töpffer viesse a ser alvo de um volume. Uma vez que o autor, tal como muitos dos outros ensaístas europeus, vão escrevendo pequenas abordagens tópicas para as mais variadas publicações e conferências, o corolário de os reunir e dar-lhes alguma coesão não se faz esperar. Assim sendo, poder-se-ia dizer que não haveria muito de novo neste volume já que em grande parte este livro reúne aqueles escritos que já haviam estado presentes em Töpffer, l'invention de la bande dessinée, co-escrito com Benoît Peeters (1994), com algumas excepções, quer em termos de redução – as partes de Peeters estarão a ser refeitas num volume deste mesmo autor – quer em termos de acrescento – os ensaios analíticos.

Este volume tem um papel muito claro, que é o de precisamente compreender o que é que se alterou na recepção da obra de Töpffer nos últimos 20 anos. Para além do cartaz de Angoulême de 2012, assinado por Spiegelman, e que é transformado em ponto de partida para Groensteen, em que la boucle est bouclée com a obra de Töpffer acessível via tablet, a presença do autor genovês saiu dos dicionários literários para um perfil mais público do seu papel e importância no desenvolvimento de uma arte moderna que viria a ser conhecida por banda desenhada. Afinal de contas, as reedições, as exposições, as criações de mais prémios e obras de referência, o próprio desenvolvimento exponencial dos estudos de banda desenhada, sobretudo a sua dimensão verdadeiramente histórica – isto é, para além do mero levantamento arquivístico, necessário, sem dúvida, mas que nada tem a ver com o trabalho redentor e integrador da história – tem feito com que a figura de Töpffer se torne uma referência incontornável na mesma medida que outras figuras levantadas enquanto, não apenas “canónicas”, mas sobretudo nevrálgicas (Outcault, Pinheiro, Hergé, Spiegelman, etc.). Os dois livros monumentais preparados por David Kunzle (os ensaios e a obra de Töpffer) não são alheios a esse processo, sobretudo no mundo anglófono.

O livro está dividido em cinco partes. A primeira parte centra-se na “ruptura simbólica” que a obra de Töpffer provocou na história da narração por imagens. Se não é totalmente impossível nutrir um interesse transhistórico por todo e qualquer tipo de produção de ciclos, séries ou sequências de imagens que possam construir um tecido narrativo na história humana (das pinturas rupestres a murais a azulejaria cristã às estampas de Hogarth), uma mais atenta preocupação histórica terá de compreender as alterações profundas em termos sociais, económicos, culturais e até mesmo questões de circulação mediática para que progressivamente os “álbuns em estampas” contribuíram. Desta forma, Groensteen cria um percurso desde a “hipótese Lascaux”, passando por ciclos medievais (as Cantigas de Santa Maria são abordadas), a caricatura inglesa do século XVIII, a estamparia popular europeia, a obra de Hogarth, até chegar mesmo à obra do pai de Rodolphe, Adam Töpffer, e tentar compreender o que é que o “pai da banda desenhada” trouxe de fundamentalmente diferente e produtivo na linguagem futura.

A segunda parte, relativamente curta, é composta por análises textuais, questões técnicas e de definição desta nova forma de arte, não apenas concentrando-se na obra de Töpffer, mas procurando linhas de associação com outros autores e na fortuna da circulação dos livros. A terceira parte aborda de uma forma mais específica a “poética töpfferiana”, desde a legibilidade do traço a estratégias de mise en page, da criação de personagens à sua formação psicológica, e depois progressivamente concentrando-se na narratologia e comicidade do autor.

A quarta parte centra-se sobre os seus herdeiros, quer imediatos e hoje talvez algo obscuros (alguns anónimos, outros usando pseudónimos inidentificáveis, e Gabriel Liquier, Henri Hébert, A. Meylan, etc.), quer aqueles que contribuíram de forma decisiva à emergência popular desta forma, como Cham, Gustave Doré, Nadar, Christophe e outros, quer ainda os mais recentes, encontrando-se aqui um importante arco compreensivo, que tanto abarcará autores que ainda cultivam um traço rápido, de esquisso mas de observação social aguda, como o caso de Wolinski, como abordagens mais “intelectuais” e “frias”, estando Chris Ware num lugar de destaque. Este é talvez o grande coração da obra, e que demonstra o modo como a obra de Töpffer, não sendo totalmente isolada na “invenção” da banda desenhada, merece um lugar de destaque crucial, por ter sido, digamos, a bateria que inflectiu todos os instrumentos que viriam a tornar-se, não essenciais, mas produtivos desta nova forma de arte.

Tal como no volume de 1994, este também reúne os escritos teóricos de Töpffer, que perfazem a quinta parte do livro, nomeadamente o “Ensaio sobre fisiognomia” (apresentando em fac-simile), o “Reflexões a propósito de um programa”, verdadeiro manifesto de uma nova forma de arte, a correspondência com Cham, entre outras peças.

Nota final: agradecimentos a todas as editoras, pelas ofertas dos livros respectivos. Imagens colhidas da internet. 

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