Entre os leitores portugueses, Angeli é sobretudo recordado
pelos seus trabalhos dos anos 1980 com a Chiclete
Com Banana, que marcou, pelo menos na óptica do que chegava por aqui (e
tornada cega pela presença quase monolítica dos gibis da Abril), a viragem de
uma nova banda desenhada brasileira, mais adulta, iconoclasta e mais sensível
aos tempos de uma globalização crescente, sobretudo num sentido de referências
comuns entre vários países. Se a expressão “tribos urbanas” é hoje vista como
algo caricata e desusada, não o seria naquela época, e Angeli era, talvez de
entre os seus companheiros mais próximos (Glauco e Laerte, com quem estremava
os “Três Amigos”), aquele que melhor criou uma galeria dos seus representantes
mais marcantes: de Rê Bordosa a Walter Ego, de Wood & Stock aos Skrotinhos,
de Bibelô a Bob Cuspe. No Brasil, porém, a associação do seu nome aos cartoons políticos, ou como é dito no
Brasil, charges, é algo consolidado
há longa data, uma vez que o autor trabalha para a Folha de São Paulo desde 1973. (Mais)
Se o autor terá produzido um corpo de trabalho para esse
jornal que preencheria facilmente não um livro mas uma estante inteira, este
volume procura ser mais concentrado, em termos tópicos mas possivelmente conceptuais
também. Reunindo trabalhos precisamente de charges produzidas para a Folha desde 2001, dedicadas a temas
internacionais mais ou menos advindos do conflito entre a potência militar
norte-americana e a Al Quaeda, e todas as metástases (a palavra não é inocente)
associadas, o foco é específico. Encontraremos aqui toda essa lista de compras
dos temas internacionais que têm marcado esse “lado” do mundo: o 11 de Setembro
de 2001, a invasão (final?) do Iraque, a consequente guerra incansável, assim
como os conflitos mais tardios no Afeganistão, a captura e morte de Saddam
Hussein, depois a de Bin Laden, os governos e gestos de George W. Bush e depois
de Barack Obama, as controvérsias em torno deste último pelas camadas mais
racistas dos Estados Unidos, as ditas (e curtas?) Primaveras Árabes no Egipto e
Líbia, precisamente a breve e fútil resistência de Kaddafi, e finalmente a
guerra protelada na Síria. Como se imagina, o conflito israelo-palestiniano
encontra-se como uma espécie de baixo contínuo por entre todos estes temas “pontuais”,
assim como questões sobre a segurança interna nos Estados Unidos, o Estado de
Direito, Guantánamo e todas as humilhações dos prisioneiros de guerra, discussões
em torno de armamento, inclusive o nuclear, os tratados e encontros que
levariam à Coligação da Vontade, que tivera lugar nos Açores, enfim, a fundação
do “Eixo do Bem”… Angeli não se esquece
de outros temas, como o Zimbabwe e o escândalo do futebol, mas essas presenças são
reduzidas apenas a um toque-e-foge, e não à continuidade dos temas referidos.
Apenas esta listagem é demonstrativa desde logo de uma
escolha, naturalmente. O volume não reúne toda a produção do autor. Além destes
temas internacionais, Angeli abordava, como é evidente, os acontecimentos da
República do Brasil, as suas controvérsias domésticas, os celerados episódios
políticos, etc. No entanto, tem de ser significativo que este volume, com este
título, reúna estes materiais. O
título do livro nasce de uma expressão aparentemente cunhada por Trostky, que a
declarava como premonitória admoestação, e a qual tem sido repetidamente
empregue, não tanto enquanto um termo que pretenda ter um valor conceptual
fortemente estipulado, mas antes uma espécie de fórmula heurística do próprio
desejo de quem a declara. Isto é, aquele que a pronuncia deseja que o objecto
do seu desprezo venha a ser votado no “lixo da história”: esquecido, irrelevante,
passível de ser omitido do cômputo final.
O seu uso por Angeli, todavia, é bem diverso. E não é
totalmente clara a forma como deve ser entendida. É por demais evidente que nos
recorda a imagem famosa de Walter Benjamin, da história como uma montanha de
detritos que se vão acumulando, a que o Anjo da História tenta retornar para
poder redimi-los, mas sendo empurrado inexoravelmente pelo vento que sopra do
Paraíso e que tem por nome Progresso. Se é o Progresso, portanto, que impede
que se redimam as coisas, e apenas nos resta esperar que o lixo se acumule,
então Angeli demonstra aqui alguns dos eventos que mais contribuem para esse
empilhamento incessante. É recorrente a imagem que ele emprega de um globo
terrestre largando resquícios de pele ou pedaços podres, associando-o a doenças
ou sujidade. Se por um lado isso pode ser associado com uma famosíssima tira de
Quino, em que Mafalda coloca o globo numa cama, como se se tratasse de um
doente, depois de ouvir as notícias radiofónicas, Angeli leva essa metáfora um
ou dois passos à frente, e com a sua abordagem visual sofisticada, a organicidade
e repugnância da imagem aumenta.
Mas com mais de 300 páginas, não deixa de ser curioso que
os temas gravitem sempre em torno mais ou menos dos mesmos eventos,
personagens, forças. Por isso é que podemos falar de temas contínuos, centrais
e de outros pontuais. Não que a vida no Zimbabwe ou na Síria, na Coreia do
Norte ou na Tailândia fique suspensa entre os “eventos” que permitem dar-lhes
atenção. Mas é precisamente essa economia de importâncias que desenha de forma
quase definitiva a ordem mundial. E o autor desenha bastos mapas tentando
metaforizar essas mesmas redistribuições.
Aliás, esse tipo de recorrência nota-se mesmo no trabalho
de Angeli, já que são várias as imagens que, mesmo com um intervalo de alguns
anos – aqui sofrem por o intervalo ser de algumas folhas somente -, repetem
estratégias figurativas, metáforas visuais ou até mesmo matéria (um ou outro
desenho reaproveitado, reenquadrado, etc.). Tendo em consideração que o autor
tem de criar uma imagem todas as semanas, esse tipo de tema e variação não pode
surpreender-nos. Afinal de contas, a verdadeira leitura de uma charge,
sobretudo política, associada intrinsecamente à espuma dos dias, tem de ser
lida no seu contexto físico e hodierno. É verdade que podemos hoje olhar para
trás e deliciar-nos com os desenhos de um Daumier, um Bordalo ou um Bofa mesmo
que não compreendamos totalmente o seu contexto histórico, a sua referência
específica ou não reconheçamos as personagens em questão. Todavia, as suas
linhas de força só atingem toda a sua potência se for um “texto no contexto”,
para citar uma investigadora da ilustração, Catherine
Delafield: o cartoon é lido não
isoladamente, mas no seio de um objecto, neste caso um jornal, em que todas as
outras informações concorrem para a sua tessitura final, desde as notícias ao
lado, as escolhas editoriais das matérias principais e parangonas, até mesmo o
estilo e tom do jornal em si, a paginação, e outras circunstancialidades. Neste
caso, não temos acesso a esse outro material (salvo uma ou outra referência),
ainda que haja textos nos extremos do livro que procuram criar esse mesmo
contexto. A longo prazo, porém, poder-se-ão revelar algo desnecessários, ou
pela sua irrelevância total ou mais realisticamente pela sua incompletude
inevitável.
Os desenhos de Angeli
encontram-se aqui num estado de solidez máxima. A forma como ele delineia os
pormenores dos corpos e texturas, tornados ainda mais consistentes através do
trabalho paciente da cor, torna toda esta matéria visual quase palpável,
pesada, com uma forte presença, ainda que reconheçamos a estilização do autor
das suas personagens clássicas, há uma certa perda de ligeireza, de suavidade,
até mesmo de elegância nestas trabalhos, tombando muitas vezes em abordagens
mesmo grosseiras. Estamos em crer que essa é uma escolha decisiva para a
criação destes gestos, que afinal têm de criar calos e protecções próprias para
remexer em pilhas de imundícies. E se nalguns momentos nos parece que o autor
se entrega a algumas imagens feitas – a ideia dos líderes com mãos cheias de
sangue, a bestialização dos amantes da guerra, a banalização da violência, etc.
– mais uma vez isso de deverá a uma assinatura
necessária a um ritmo semanal.
Nestes trabalhos em particular, Angeli tem também a
característica de não usar somente a
trilha visual. O uso de legendas, explicativas ou narrativas, e até mesmo
balões de fala, inscreve-o num domínio mais limitado do cartoonismo político, aproximando-o do cartoon editorial, da tira
editorial. Isto é, e mesmo que precisássemos de mais instrumentos e
argumentação para sustentar esta afirmação, diríamos que Angeli procura menos
construir imagens icónicas e concentradas sobre si mesmas do que actuar um
processo de comentário em relação ao que sucede nesses dias. Tal qual uma
coluna, um artigo de opinião, etc., ele agrilhoa-se ao momento precisamente
para ter maior contundência. O facto de que os actores passam e se esquecem,
retirando algum do poder aos cartoons,
não é imputável ao artista nem à sua obra. Aliás, seria mesmo óptimo que todos
estes eventos e personagens abjectas, valesse a ingenuidade, fossem mesmo
esquecidas…
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Olá Pedro,
ResponderEliminarTenho que defender o Quino :-). Bem sei que é comum entre os espanhóis achar os argentinos pouco sofisticados, muitas das vezes só pela sua pronúncia castelhana parecer derivada de dislalia funcional. Na Bd de metáfora política, não atendendo aqui a quem o desenhe, o Eternauta é na sua simplicidade aparente uma obra sofisticada para o seu tempo. E o Quino, para além de ter deitado o globo terrestre doente numa cama, encontrou soluções ainda mais subtis (que o Laerte), entre muitas outras, ao murchar uma planta pela mera convivência numa mesa com o globo, ou, ainda mais próximo da imagem do Angeli, ao oferecer a sua Mafalda para coçar o globo onde este tivesse mais comichão, com o efeito inevitável dela acabar numa viagem de "circumichão". Roubando uma "tira" ao "tudo sobre a minha mãe", uma BD é tão mais sofisticada quanto mais autêntica for na abordagem do que pretendia transmitir por si mesma. E isso o Laerte, parece-me, conseguiu fazê-lo melhor através doutro lixo de histórias que nos curaram via administração de supositórios de doses maciças de fel, ou de forma mais inrudita, pela dialética skrotática.
Tudo bem, você pode xingar meu comentário de rebordoso.
Obrigado e Abraços
José
Não vou xingar de "rebordoso", mas talvez de excessivo, uma vez que a menção ao Quino não visava diminuir nem a sua força política nem a sua capacidade inventiva, que prezo. Não era preciso "defesa". Apenas me referia à abordagem plástica, que é necessariamente mais "naturalista" em Angeli do que Quino. Ou seja, nenhuma das tuas interpretações, com as quais concordo nas linhas gerais, pode ser imputada ao que escrevi, que se poderia talvez apenas de acusar, a esse respeito, de ter sido elíptica demais.
ResponderEliminarPedro
Era tudo de brincadeirinha, é claro que eu estava sendo só rebordoso contigo :-) pelo espírito do Laerte. Tentava juntar mais ligações às semelhanças (inspiração?) que podemos encontrar entre a evolução do trabalho do Laerte e a do Quino, com ambos a sentirem precocemente a necessidade de se libertaram das suas personagens primas.
ResponderEliminarAbraço,
José