5 de julho de 2014

Baratão 69. Bruno Azevêdo e Luciano Irrthum (Beleléu/Pitomba)

Não deveremos jamais reduzir os livros às suas nacionalidades respectivas, ou lê-los somente sob a óptica das suas origens geográficas. No entanto, se discutimos a realidade inerente às aventuras da Turma da Mônica como pertencentes a uma deslocalização da cultura brasileira, necessária para o seu sucesso comercial alargado, e falámos do caso de alguns dos livros de Pedro Franz e outros autores como se ancorando na realidade hodierna do Brasil contemporâneo e politizado, talvez possamos dizer que Baratão 66 é uma espécie de reflexo, ainda que distorcido, de um Brasil do interior. Talvez menos conhecido em termos gerais, talvez mais pobre em termos materiais, mas vivo como uma pedra que se rola e sob a qual pululam insectos de toda a estirpe. (Mais) 

A intriga do livro está centrada espacialmente. Um edifício numa pequena cidade rural do Brasil (talvez a cidade de São Luís, no Maranhão, e de onde é Azevêdo, e na qual se passam as acções dos seus outros livros) tem duas vidas. Uma diurna, em que se chama Baratão 66, e serve de salão de depilação de todas as senhoras da cidade, com uma especialização em cortes criativos da zona púbica (chegando mesmo a inventar novas tendências e técnicas). Outra nocturna, em que se chama Baratão 69, e o segundo andar se torna o lupanar local, visitado desde o mais comum dos cidadãos aos mais altos representantes. Entre uma nomenclatura e outra está uma brevíssima operação levada a cabo por Bozo, um funcionário para todo o serviço, que roda o segundo dígito de acordo com os papéis a assumir. Essa mudança está desde logo presente no título do livro, cujo design permitiria ler tanto “66” como “69”.

Entre os dois andares estabelecem-se elos de relação familiar, já que cada “negócio” é dirigido por uma das filhas de Dona Dadá: Margarida toma conta do salão de depilação, Francinete do prostíbulo. Estas protagonistas, assim como as restantes personagens, inclusive as mais fugazes, perfazem uma verdadeira galeria de figuras estranhas, cada qual com a sua mania e característica decisiva, tornando o livro também uma máquina de debitar criaturas “esquisitas”.

Bruno Azevêdo tem criado toda uma série de livros que mesclam a prosa e os quadrinhos, ou outras formas de expressão, que vão explorando de maneira insistente, incisiva e paradoxal todo um corpo da cultura popular brasileira (e além dela): gibis de caubóis, fotonovelas, paraliteratura de terror, romances “cor-de-rosa”. O Lerbd já deveria ter dado conta de Monstro Souza (romance de terror dedicado à comida barata que se vende nas ruas – literalmente, já que o protagonista é um cachorro quente que se prostitui), Breganejo Blues (o encontro improvável mas feliz entre o romance policial e a música “pimba” local, em que um taxista detective investiga o desmembramento misterioso de uma dupla de cantos românticos), e A Intrusa (novela psico-amorosa sobre uma relação a três, originalmente publicada como folhetim), mas infelizmente o resultado tem sido adiado sine die. Ainda assim, a recepção de Baratão 66 não redime a falta de atenção, indesculpável, à escrita de Azevêdo, que não deveria ser um segredo de poucos mas uma descoberta sobre a verdadeira liberdade da literatura. O domínio de Azevêdo de toda uma bateria de referências díspares e os cruzamentos inéditos que ele provoca nos seus textos ultrapassa mesmo o conceito do “absurdo” enquanto género literário. O autor gosta da palavra “esquisito” e, mesmo que parece um termo fraco, é talvez aquele que melhor define o concerto desarmónico dos elementos de cada um dos seus gestos. Mas ainda assim, um verdadeiro concerto.

A presença da banda desenhada nesses livros dá-se ora por pequenas citações (Breganejo “cita” tiras clássicas de western comics, inclusive o incontornável Tex), mesclas no interior (Monstro Souza divide-se entre a prosa e a HQ), ou ligações que expandem o conceito lançado na escrita (A Intrusa tem uma capa promissora de Frédéric Boilet e ilustrações pontuais no interior). O autor já havia criado outros livros de HQ/fotonovela com Isabel Comics (dedicado aos primeiros anos de vida da sua filha, e que poderá continuar), sendo Baratão 66 uma entrada mais convencional em termos formais.
Neste caso particular, a estrutura do livro, em curtos capítulos de 8 páginas cada, permite que o foco vá passando entre todas as personagens, desde a família ao estranho palhaço, pelo do seu amante, que é o padre da paróquia, e vasculhando as memórias de infância de Dona Dadá, até à sua viuvez, o que não a impede de falar com o seu marido desaparecido, através de sessões espíritas-sexuais levadas a cabo com Bozo. A intriga centra-se em todo o caso em toda uma série de linhas, que terão a ver com a busca do que cada personagem julgar ser o melhor dos mundos para si e os seus, mesmo que essas visões sejam incompatíveis entre si. Além disso, cada uma dessas buscas terá sempre consequências sobre os poderes locais, envolvendo desde franchises de companhias comerciais (uma cadeia de depilatórios) às instituições locais do património...

Dessa forma, menos importante do que a criação de personalidades completas ou redondas, levando a uma coerência absoluta psicológica entre elas, está uma espécie de retrato absurdo, cómico e talvez mesmo realista de certas realidades de poderes e intrigas locais. Azevêdo parece querer, através de formas narrativas tipificadas e eventos exagerados (o final do livro descamba numa hipérbole de horrores que se torna risível), tocar num nervo da realidade brasileira. Provavelmente, todos os pontos representados em Baratão 66, tal como nos casos dos livros anteriores, nascem de ligações à mais pura das realidades e depois atravessa uma distorção tremenda através das estranhas fórmulas da ficção de género. Essa mistura entre ficção e história está presente numa longa citação que os autores fazem do discurso de José Sarney, futuro Presidente do Brasil, quando este assumiu o cargo de Governador do Maranhão, esvaziando, de certa forma, esse mesmo discurso do seu valor textual para lhe revelar a inanidade política.

 A distorção operada pela escrita encontra nos desenhos o seu perfeito veículo. Luciano Irrthum tem um desenho grotesco – aqui sim, na mais plena acepção da palavra - que recordará os leitores portugueses de Pedro Zamith, por exemplo. Não são apenas as figuras que vivem distorcidas nos seus corpos e feições, mas os próprios espaços, objectos e perspectivas que sofrem distorções que emanam do espírito do mundo representado, reforçado pelo trabalho somente de linha, contornos grossos, preenchimento interno, e sublinhado pelo tom roxo da tinta. Mesmo que existam alguns momentos em que se pretende ver alguma beleza ou calma, ela não pode jamais surgir sem que seja invadida por um esgar de ridículo, de detalhe sórdido, de desvio insuportável. Mas é na representação de pormenores escabrosos, de corpos hediondos, de acções pilhéricas que o traço de Irrthum atinge a sua máxima expressividade.

A composição é sempre simples, com um número pequeno de vinhetas por prancha, mas a forma como o artista preenche todos os seus cantos com objectos, e os balões de espraiam em todas as direcções acessíveis e livres, e preenchidos que são eles mesmos de diálogos de uma fluidez e cor local tão específica – Azevêdo tem um dom particular para a correnteza livre das formas faladas – tornam a travessia do livro tão cheia e em obstáculos, que a sua leitura decorre de uma naturalidade imensa.

Se a sua leitura é pontuada, sem tempo para fôlego, pelo humor sarcástico, uma sua ponderação após o facto revelará a seriedade do retrato criado. Entre uma ideia e outra, encontra-se um pequeno acto de torcer um dígito.

Nota final: agradecimentos aos autores, pela oferta do livro.

2 comentários:

  1. José Sá8:12 da tarde

    Olá Pedro,

    Excelente texto e, como sempre, muto obrigado pelo grande serviço (ao) público que prestas a todos, e não só neste sítio, ainda mais coma uma impressionante regularidade e qualidade pouco comuns. A banda desenhada merece o reconhecimento da importância e influência que teve na história da arte deste século e do anterior, só podendo chegar a essa merecida "homenagem", por divulgadores inteligentes e extremamente bem preparados dos seus grandes artistas e escritores, sendo tu em português, na minha opinião, o nosso primus inter pares, salvaguardando toda a estima que tenho por todos os outros blogueres e pela qualidade do seu trabalho.

    Quanto ao Baratão, não posso terminar os elogios ao teu texto sem referir o final brilhante do ultimo parágrafo, quase uma excelente voz em off de narração da última cena do livro. Não posso concordar mais contigo, se te compreendi bem, livros destes são muito úteis para encurtar as distâncias entre as pessoas e aproximar as moscas aleixianas das carecas dos doutores. Não trará certamente a aproximação das leituras do tintin dos 7 aos 77 anos, mas ajudará muitos que se julguem com menos de 68 ou mais de 70 a deixarem-se de peneiras :-)

    Pode ser exagero meu, mas parece-me um fenómeno recorrente da cultura brasileira pegar nas correntes artísticas internacionais dominantes e transformá-las, com um valor acrescentado, em movimentos originais em si mesmos, por vezes produzindo ricochetes criativos infelizmente na maior parte das vezes periféricos, ou circuscritos à América Latina. Desde logo, recordo-me do movimento antropofágico na pintura e na escrita e o movimento tropicália na música e nas artes performativas. Também na BD, nas décadas de 80 e 90 apercebi-me do surgimento de vários criadores que acrescentavam originalidade, ou pelo menos criatividade aos modelos anglosaxónicos importados, dos quais são bons exemplos os personagens brasileiros da Disney que já abordaste em profundidade, mas também a revista MAD brasileira que me parece não ser muito ousado dizer chegou a ser durante a maior parte da sua existência superior à Americana. Não esquecendo aqui os ainda quentes Angeli e Laerte e algumas produções urbanas do tipo "Tarja Preta".
    Talvez esteja equivocado pelos meus fracos conhecimentos do fenómeno, mas quem sabe não se adivinha um movimento ao nível da BD em português do Brasil instalado há mais de duas décadas que ainda estará por identificar 8um desafio?) do qual estes exemplos abordados na tua entrada, por exemplo, poderão ser um ramo. Ou então isso já foi feito...

    Quanto aos desenhos, chamou-me a atenção a dimensão dos balões e o seu envolvimento sufocante entre as personagens. Fazem-me lembrar o estilo promovido nas "crónicas dos colonatos" do Joe Sacco, que parece servir para o leitor compartilhar o stress emocional omnipresente à diegese daquelas histórias, efeito que resulta contrário, discorrendo das tuas palavras, para o artista presente. Talvez este nordeste brasileiro esteja mais para os lados duma Palomar do Hernandez. Ou não?

    Obrigado e Abraços,

    José

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  2. Olá José. Agradeço as palavras, e fico feliz que possa haver algum grau de serviço de divulgação de autores menos conhecidos na nossa praça.
    Não quero generalizar sobre a "cultura brasileira", uma vez que estamos a falar de um imenso país, com um povo que nunca mais acaba, extremamente diverso de ponta a ponta e que não tem nada a ver com as imagens de "Globoalização" [não é gralha!] que se nos atravessam à frente. Dito isto, e conhecendo o trabalho literário de Azevêdo, sim, poderíamos dizer que ele também é um herdeiro directo da antropofagia, em que se transmutam os elementos através dos géneros. Isto é, o autor mergulha nas matérias mais "bregas" e populares para descobrir formas naturais do absurdo ou mesmo do surrealismo (eu sei que parece um daqueles usos abusivos da palavra, mas não é, há mesmo uma procura por elos inesperados, oníricos, vagos, entre aquilo que o autor provoca).
    Não sei se estes autores pertencem a "um" movimento. A exposição que organizei no FIBDA tinha um conjunto de autores que partilhavam algumas características do ponto de vista político, urbano, etc. Azevêdo também não deixa de fazer política, mas os seus instrumentos são menos o naturalismo e a observação de reportagem (mesmo que passada pela fantasia, como alguns dos outros autores) do que a mais desgarrada das comédias.
    Quanto ao uso dos balões por Irrthum, essa associação a Sacco não é displicente de todo, mas onde o repórter procura uma fragmentação da oralidade, a urgência do discurso e a forma traumática do que se testemunha, eu aproximaria mais este uso ao de um Francis Masse, em que os balões assumem uma forma orgânica com "peso" interior à diegese, como se se tratassem de objectos que sofressem a mesma gravidade que os restantes objectos da história, ou então das falas "débordantes" de um Achille Talon... Seja como for, o que é curioso é que o artista não procura uma solução "elegante" para integrar os balões enquanto veículo do discurso nas suas imagens, mas faz antes uma distribuição das formas quase simétrica. Veja-se a segunda página que mostro e reduza-se os balões e o resto a formas simplificadas: veremos um quase perfeito equilíbrio, quase de yin/yang, à la onda de Hokusai, entre umas e outras...
    Quanto aos Hernandez, não me parece. A paisagem pode até ter algumas afinidades, mas não as gentes. A melancolia de "Palomar" não aguenta onde vivem rios de cachaça, oitão nas carça, corno na sanfona e quenga, né?
    Pedro

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