A
Bries tem produzido toda uma série de livros de extremo interesse em
termos visuais, nos últimos anos, sobretudo no que diz respeito,
claro, a autores locais (belgas de expressão flamenga e holandeses,
sobretudo). O novo livro de Dominique Goblet, numa colaboração com
Kai Pfeiffer, também será lançado em co-produção com a Frémok
no mês de Setembro, mas a força desta editora reside nesses
talentos menos circulados no território francófono. No entanto,
muitos desses autores, como Dieter Van der Ougstraete e Wide
Vercnocke, parecem inclinar-se mais para prestações puramente
visuais do que propriamente devedoras ou mesmo reformuladoras das
estrutura e narratividade mais típicas da banda desenhada. Ainda que
o holandês Tim Enthoven seja também um autor proveniente da área
das “artes visuais” - termo paradoxalmente jogado contra
a banda desenhada -, a sua relação com esta arte é mais profunda,
íntegra, íntima e, francamente, inovadora. (Mais)
Criar
operações destas, quase de rotina, de eleger um campo contra um
outro, quase nunca, se alguma vez, funciona na sua totalidade. Mas
não deixa de ser curioso que, de certo modo, ainda que haja cada
mais experiências livres em termos de visualidade no mundo da banda
desenhada, que isso também possa significar um seu detrimento
noutras das suas dimensões. Não falamos aqui tanto numa pretensa
“diminuição” da narrativa, de um programado fito de “contar
histórias”, ou sequer de cumprir algum papel de “relevância”,
mas tão-somente a ideia de ter alguma estrutura conceptual e de
exploração formal que possa corroborar a força visual que se
pretende criar. Caso contrário, tratar-se-á de uma matéria amorfa
e algo vácua. Bela, possivelmente, mas sem impacto. Ora, não é
esse o caso de Binnenskamers.
Comecemos
com uma possível “sinopse”. Concentramo-nos na vida quotidiana
do seu protagonista, jamais nomeado, que vive encarcerado no seu
pequeno quarto alugado, partilhando a cozinha, o chuveiro e a casa de
banho com outras pessoas. No entanto, a sua rotina, altamente
estruturada, fruto de aturadas pesquisas e tentativas até se
transformar num mecanismo homeostático, leva-o precisamente a evitar
cruzar-se com outras pessoas. Nem no interior do reduzido
apartamento, nem mesmo na rua, em que visita sempre o mesmo minúsculo
restaurante de massa asiática takeaway,
jamais encontrará alguém conhecido. Numa primeira fase, a matéria
verbal surge sob a forma de legendas de um narrador na primeira
pessoa, mas de certa forma desarticulado de um corpo real, dos
eventos diários, ou então apenas presentes numa espécie de
descrição objectiva desapaixonada. No entanto, num ou outro
momento, vemos os atropelos que podem ocorrer nessa rotina (uma
chamada de telemóvel que o obriga a se relacionar com o mundo, um
pequeno acidente doméstico que o leva a ter de introduzir uma nova
acção, etc.), obrigando a personagem principal ora a libertar-se da
sua atitude anti-social, ora a assumi-la de uma forma mais ou menos
consciente, logo, com alguma distância em relação a ela.
Ainda
que de forma muito, muito superficial, Binnenskamers
parece quase uma versão europeia de alguma da banda desenhada
japonesa conhecida por “quatro tatami e meio”, que se centra na
vida de estudantes (ou losers)
que apenas podem pagar um quarto com essas reduzidas dimensões
(existe uma série de animação de algum sucesso, The
Tatami Galaxy,
que explora com humor e absurdo o mesmo tipo de emoções de
anti-sociabilidade e queda num universo interior). Mas na verdade, a
intriga, se é que podemos propriamente falar de uma, dá-se quando
esse suposto sistema regular e de funcionamento pleno é interrompido
por um amigo que se quer encontrar com o protagonista. Aos poucos,
esse amigo, Paul, invade-lhe os pensamentos, depois os sonhos, de
maneira a que o atrasa na sua rotina, criando um dominó de
causa-consequência. Um encontro com Paul, a história que este conta
sobre as suas visitas a prostitutas, o encontro fortuito com uma
série de colegas da escola de artes, uma conversa quase-de-sedução
com uma colega, a emergência de uma obsessão sexual, e depois a
mistura de todas as linhas de fuga até ao momento final, uma
resolução dessa tensão sexual e até mesmo uma coda em que,
talvez, possamos imaginar o protagonista a integrar-se nas mais
“normalizadas” interacções sociais.
O
protagonista vai reafirmando que é estudante numa escola de artes
visuais e, de forma oblíqua, vai falando de alguns dos seus
projectos. No entanto, nunca nos é dado qualquer tipo de acesso a
esse mesmo trabalho: nem desenhos, nem planos, apontamentos, nada,
nem um traço documental. Na verdade, Tim Enthoven tem uma carreira
de artista plástico, e o seu posterior projecto publicado, The
Tiny Tim,
é uma espécie de portfolio ou catálogo raisonné
da sua obra até à data. Será possível ler Binnenskamers
como um projecto autobiográfico? Apenas velado? Uma inflexão dos
seus projectos artísticos? Um cruzamento entre eles e a banda
desenhada ou um uso desta como “câmara de ressonância” dos seus
trabalhos? Talvez mesmo uma mistura disso tudo...
Esta
outra publicação, The
Tiny Tim,
é um pequena encadernação que reúne trabalhos advindos de
instalações, pinturas em larga escala, projectos escultóricos,
desenhos de juventude, etc., datados de 1994 a 2003.
Independentemente da materialidade original de cada uma das peças, a
sua presença e/ou transformação em Tiny
Tim
passa a ter uma valência de “obra em papel”, passível, conforme
o foco, de integrar as categorias de livro de artista, projectos de
desenho ou mesmo o território alargado da banda desenhada
contemporânea. Se bem que a qualidade narrativa, mesmo fantasmática,
de algumas das peças não seja de forma alguma assegurada, e se
noutros casos apenas o será pela convivência de um qualquer módulo
textual (sobretudo contextual, explicativo), a sua equiparação com
essa extensão diegética em Binnenskamers
não é totalmente impossível. E há também pistas autobiográficas
– ou de uma ficção total que cria a ilusão de ecos
autobiográficos – que poderiam ser perseguidas... Além disso, o
texto ou ensaio de Jan van Tienen aponta para uma série de pistas,
falando-se de uma exposição literária”, algo que espelha o nosso
desejo por histórias, um paradoxo, entre outras coisas.
A
própria criação visual do mundo do protagonista não mima as
estratégias habituais. Também se poderia dizer que Enthoven tem um
interesse particular para com formas arquitectónicas (à la Chris
Ware), mas menos numa concepção de edificação
do que de dissolução.
Os espaços em que o protagonista se move são absolutamente
confinados ao mínimo, e mesmo numa sua travessia
(quarto-corredor-chuveiro), não observamos tanto os percursos
ligados em contínuo como os elementos isolados entre si. Não deixa
de ser uma metáfora para as relações igualmente isoladas que vamos
observando da sua vida. Existem algumas composições visuais no seu
conjunto, as duplas páginas, que repetem padrões com pequenas
diferenças, de um gesto ou de palavras, reduzindo as impressões do
rapaz a meros padrões repetitivos. E quando, na fase final, há uma
invasão da organicidade da mulher, e a sua possível influência
sexual (ainda fantasmática), há também uma introdução de cor
radical (um rosa pálido), a transformação do seu corpo na própria
superfície em que emerge a fantasia, e depois uma gradual destruição
das categorias espaciais e actanciais de todos os envolvidos.
O
desenho de Enthoven é, quer nos projectos artísticos quer nos
comerciais (ele é um ilustrador de algum sucesso e destaque
internacional), pormenorizado em termos de texturas e padrões. Além
disso, as figuras optam muitas vezes por uma espécie de poses
dramáticas, recordando a dança ou a performance. No caso do livro,
porém, ele opta por uma paciente e controlada representação com
contornos negros e grossos, com as figuras usualmente muito pequenas
e quase sem expressão, quase próximos de esquemas industriais de
informação. Apenas na gradual penetração do mundo sensual –
primeiro pela história de Paul, depois com a figura feminina, no
contacto real e na fantasia alucinada – é que as figuras vão
ganhando outra escala, outra cor, e outro registo representacional,
que permite transmitir mais emoções e diferenciações no traço.
O
texto, escrito caligraficamente, é por vezes difícil de ler
(esquecendo o “problema” que será ler holandês), mas voga entre
a conversa de circunstância, um registo quase-mecânico e banal, ou
então diálogos que, vogando metáforas estranhas, entram num
domínio de estranheza bem denso. Quando o protagonista e a
personagem feminina entabulam conversa, esta anda em torno do gosto
partilhado por ambos de fumarem charutos, e os pormenores trocados
poderão, eventualmente, mas não da forma mais óbvia como se
imaginará à partida, revestirem-se de sentidos de sedução. Pois
há uma sedução a ocorrer entre ambos – quebrando a tal barreira
anti-social do jovem homem -, mesmo que nenhum deles o pareça querer
admitir à partida.
Poderemos
ler o título do livro como “No quarto”, em termos literais,
sendo binnen
uma proposição. Isto dá-nos a ideia de interior, enclausuramento
mesmo neste contexto. No entanto, a expressão no seu conjunto é
usualmente empregue quando se quer dar conta de um assunto que se
discute à porta fechada e não se pode revelar no “exterior”,
como em reuniões políticas, administrativas ou outras. Nesse
sentido então, o nível de secretismo aumenta e torna-se ainda mais
vincado. Mas também ao mesmo tempo implica que haverá um qualquer
nível mínimo de partilha, a existência de um mínimo grupo de
interlocutores. E afinal, apesar da transparência desse quarto
(transparência que afinal revela mais do que esconde, ou
transformando o nosso olhar num acto inevitável de voyeurismo, e que
chega a penetrar nas fantasias do protagonista – mas não,
curiosamente, dos sonhos, apresentados apenas verbalmente contra o
quarto a negro), apercebemo-nos de que os seus contornos e limites
foram adoptados pelo homem em toda a sua vida. Aos poucos, vemo-los a
dissolverem-se, mas mesmo no fim, talvez essa prisão seja já uma
condição da sua existência. O livro de Enthoven acaba assim por
ser mais uma espécie de investigação de um processo psicológico e
imaginativo do que propriamente uma narrativa simples. Isto é, ele
impede que o leitor simplesmente se veja reflectido numa trama
narrativa, nos “eventos” que discorrem, nos episódios encaixados
ao longo de uma cadeia de elos consequentes, mas obriga a que
procuremos compreender a matéria mais subtil e matizada das emoções
paradoxais que vivem a cada um dos nossos momentos de vida.
E
a sua forma organizada e radicalmente nova das estruturas da
linguagem da banda desenhada – possivelmente por não terem nada
que ver com essas estratégias, mas por terem origem num ponto
totalmente diferente, como a de uma entrega à prática do desenho
livre, sem contaminações académicas, comerciais, processuais,
funcionais, mas antes enquanto tradução de uma vontade conceptual –
tornam Binnenskamers
um livro possivelmente fundamental desta década.
Nota
final: agradecimentos a Benoît Crucifix e Patrick Peeters, pela
ajuda na compreensão do holandês. As imagens de melhor qualidade do livro foram colhidas do site do autor.
ao estilo habitual(contextualização, descrição e pistas de interpretação), que aqui não se furta a juízos de valor, uma útil divulgação deste autor (pena que não esteja incluído um link para o site do mesmo).
ResponderEliminarN:(mais uma picuinhice)o verbo "funcionar" deveria estar no singular..."Criar operações destas, quase de rotina, de eleger um campo contra um outro, quase nunca, se alguma vez, funcionam na sua totalidade."
Olá,
ResponderEliminarObrigado mais uma vez pela correcção, que já está feita. Quanto ao site, na verdade estava mesmo no fim, na nota final, mas coloquei também na primeira vez que surge o nome do autor.
Obrigado!
Pedro
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