9 de agosto de 2014

Choc, Les fantômes de Knightgrave 1. Stéphan Colman e Éric Maltaite (Dupuis)

A banda desenhada actual, em termos globais, atravessa uma fase de contaminação constante que atravessa géneros, idiomas, geografias, estilos e mesmo condições editoriais de uma forma mais ou menos original na sua história. É evidente que não se pode afirmar que os vários pólos de produção tiveram desenvolvimentos estanques em relação uns aos outros, que as “linguagens” (no sentido aventado por Neil Cohn) não tiveram pontos de convergência e influência mútua, que cada território se consolidou de forma totalmente independente. No entanto, até certo ponto pode dizer-se que a banda desenhada seguiu graus de singularidade, sobretudo nacional, que não têm par nas artes mais internacionalizadas do cinema, da literatura, das artes plásticas ou mesmo da fotografia e do vídeo. Não deixa de ser curioso, logo, sermos testemunhas de cruzamentos mais evidentes. (Mais) 

Para todos os efeitos, Choc é um livro que se inscreveria totalmente num campo a que poderíamos chamar, sem tergiversações, “franco-belga”. Afinal, ele recupera uma personagem famosa de uma das séries que faz de elemento perene da dita “escola de Marcinelle”, Tif et Tondu, faz parte também de uma das séries que sobrevive no modelo editorial de pré-publicação em revista (o Journal de Spirou), vem reforçar uma espécie de reemergência da História e da Memória nesta banda desenhada (que usualmente vivia delas desprovida), e está nas mãos dos seus herdeiros “directos”: o escritor, e também artista, Colman, é um detentor de um estilo perfeitamente na linha “clássica” de um Franquin, e o artista Maltaite é filho de Will, o artista original desta personagem, Monsieur Choc.

Comecemos pela ideia do “franco-belga”. Mais do que um compósito entre as produções de banda desenhada dos dois países, que nos pode surgir agora como um bloco homogéneo, a verdade é que numa primeira fase, nem sequer fazia sentido pela quase ausência ou insuficiência da produção francesa, e numa segunda fase, por essas duas produções serem, no fundo, opostas. Esta oposição é, ou foi, a um só tempo, artificial e correcta. Artificial, pois não foi jamais uma oposição clara e impermeável a toda a espécie de cruzamentos e trânsitos expectáveis, mas também correcta por, ao se estudar cada fase, ou dimensões de todo um complexo fenómeno social, existirão aspectos que surgirão como diferentes, se não mesmo como antagónicos. Se a expressão geral “banda desenhada franco-belga” é uma espécie de aberração histórica, como António Dias de Deus, e outros, insistem, alertando para a necessidade de ter um foco mais “micro”, por outro lado existe a tendência de criar estruturas conceptuais “macro”, e que levam a essas ideias. Como escreve o historiador Philippe Capart, esta oposição será criada em base de “um discurso esteta sobre 'a linha clara' e 'o estilo Atome' tal como numa literatura romântica sobre o combate entre a revista Tintin e a revista Spirou, até ao ponto de lhes opor as ideologias políticas” (La Crypte Tonique no. 6: Qui mène la danse? C'estWalthéry!). Presumimos que uma pedra de toque dessa segunda literatura seja Le duel Tintin-Spirou, de Hugues Dayez, ao qual voltaremos.

Regressando, contudo, à nossa frase inicial, aquilo que se verifica em Choc. Les fantômes de Knightgrave, mas igualmente noutros projectos (sendo talvez o de Spirou o que estará no centro), é uma influência gritante da banda desenhada contemporânea norte-americana, menos pela via do visual e compositivo, do que por uma certa sofisticação nas estruturas narrativas e na pesquisa por uma psicologia e moral das personagens. Com a excepção de Spirou, que foi passando de mão em mão, como víramos, quase todas as personagens da banda desenhada franco-belga pertenciam aos seus autores, mas recentemente temos visto uma tendência em abrir o leque para garante da sobrevivência delas: Blake & Mortimer, Astérix, Marsupilami, a hipótese Tintin, remetida para o futuro e, aqui, o vilão de Tif et Tondu. Ficará para outra ocasião as diferenças – de contexto de produção, de estratégia comercial e, mais importante, em termos de resultados estéticos – entre todas essas séries. Todas elas, porém, parecem influenciadas, em parte pelo menos, de estratégias narrativas fomentadas noutras paragens.

De certo modo, aquilo que ocorre em Choc é algo como a fórmula “Year One” que seria seguida no mainstream americano. Fundado pelo ainda hoje magnífico Batman: Year One, de Frank Miller e David Mazzucchelli (a nosso ver superior a The Dark Knight Returns), rapidamente seria adoptado em círculos cada vez maiores: os títulos associados a Batman, depois na DC, depois a Marvel (sobretudo as séries das cores de Leob e Sale), e mais recentemente outras personagens (na Dynamite: The Shadow, Green Hornet, etc.). Segundo a ideia de “prequela” - que tanto pode ser vista como um desenvolvimento tardio de certas sagas cinematográficas, como algo com raízes mais vetustas em certos textos literários – Choc foca a vida deste vilão antes de se tornar o antagonista implacável que viria a ocupar um lugar de destaque na série-mãe original. Mas o “tom” deste livro destoa gritantemente com essa mesma série, pelo seu ambiente mais matizado, sombrio, e até sóbrio, que nada ou pouco tem a ver com a “aventura adolescente” dos dois heróis de Will.

Na economia da Dupuis, como já dissemos, as histórias passavam de mãos em mãos, e não há praticamente nenhuma história em que, independentemente da assinatura destacada (Franquin em Spirou, Modeste et Pompon, Peyo nos Estrumpfes, etc.), em que não haja ajuda dos colegas nos argumentos, cenários, viaturas, já para não falar das artes-finais e cores, evidentemente. Tif et Tondu haviam começado ainda na primeira fase da revista, e também atravessaram várias vidas (tendo começado, por exemplo, apenas com Tif, ainda nas mãos do seu autor original, e olvidável, Fernand Dineur, e depois mais tarde encontrando companhia no barbudo Tondu, que mais não é que uma variação da outra personagem, mas peludo), lançando-se depois em todas as aventuras formulaicas expectáveis, já nas mãos do desenhador Willy Maltaite, ou Will, e de vários escritores, entre os quais Bermar, ou Henri Gillain, o irmão de Jijé, de quem Will foi aprendiz e protégé. É na década de 1950 que, com a entrada de Maurice Rosy, a série muda de figura. Rosy, que já havia trabalhado com Jijé e Franquin (é dele o argumento de O ditador e o cogumelo, por exemplo), faz com que as duas personagens entrem no domínio do policial, ainda que com muitos contornos de fantasia, e é na (sua) primeira história, Tif et Tondu contre la main blanche, de 1953 (ainda na revista, em 1956 em álbum) que surge a personagem que viria a ser o inimigo principal da dupla: Monsieur Choc [ver imagem acima]. É na entrevista a Will (no livro de Dayez, Le duel, citado acima), que entendemos ser de Rosy a responsabilidade quase exclusiva da criação desta personagem, que, para os leitores da série, inclusive o que escreve estas linhas, era bem mais interessante que as personagens principais.

Famosamente, numa entrevista Alfred Hitchcock afirmou o seguinte: “Antes os vilões tinham um bigode e davam pontapés no cão. Agora, o público é mais sofisticado, e não quer levar com vilões com a cara iluminada de verde. Querem um ser humano vulgar com falhas” (há mesmo um livro dedicado a este tema no realizador: Hitchock's Villains, de E. San Juan e J. McDevitt). Talvez seja esta a origem de uma “lei” atribuída a Hitchcock que é bastas vezes citada, mas que não saberemos identificar com exactidão: “quanto melhor o vilão, melhor o filme”. Isto é verdade, e o campo cinematográfico, assim como o literário, vivem numa ordem de sofisticação e complexidade de que a banda desenhada só mais recentemente se aproximou. E é no campo da cultura popular que esse axioma funciona na perfeição, estamos em crer. Como já havíamos debatido a propósito de Hellblazer, na óptica infantil Star Wars só era mais interessante devido a Darth Vader e a série de animação He-man valia pela presença de Skeletor. Talvez Darth Vader, Skeletor e Choc não sejam propriamente “seres humanos vulgares”, e talvez as falhas deles sejam bem diferentes, mas são extremamente eficazes no prazer emotivo e intelectual que estimulam, no interior das suas ficções respectivas. Choc talvez seja o mais humano deles todos, e aquele que revelará, quem sabe, mais falhas. Um outro modelo será, sem dúvida, o de The Killing Joke. Talvez, como tantas das acções de Moore, seja esse o modelo desta tendência em vasculhar as motivações, biográficas e psicológicas, dos vilões, permitindo-lhes alguma simpatia no seio da mais abjecta das violências.

Mas, em contraste, tal como o abismo de Choc não é tremendo, tampouco é a persona que ele adoptará, em termos de consequências psicológicas para ele mesmo. Já que em termos de violência é possível que venhamos a compreender ao fim de toda esta saga um posicionamento sócio-económico mais decisivo do que em Moore e Bolland.

Pois de facto, qual é a melhor via para a construção do vilão? É a da motivação. A explicação da razão, se ela existir, da emergência de um vilão. E as razões estarão aqui, neste livro, sem dúvida, de modo distinto: a devastação da guerra, as desigualdades sócio-económicas e as desconfianças das classes, preconceitos e desconfianças raciais entre as culturas, uma certa impotência dos desfavorecidos face à prepotência dos privilegiados, e um nível mais raso entre ciúmes, amizade, laços de família e perseverança. Tudo isto, porém, vai sendo acumulado no cadinho do peito de Choc num só sentimento, talvez básico, mas eficaz para a construção da ficção e fortíssimo na sua cor e contornos: a vingança. Ainda que este seja apenas o primeiro volume de três planeados, vemos aqui desde logo exercida parte dessa vingança sobre as personagens que infligiram dor em Choc no passado – que se serve fria e a longo prazo, como reza a lei -, mas também as recompensas daquelas que, de uma forma ou outra, lhe foram benfazejas (o que não deixa de ser um outro tipo de vingança, social e/ou económica, dirigida a entidades mais abstractas).

Com vista a essa construção paulatina de emoções e motivações, a estrutura temporal do livro não é linear, mas não é propriamente muito complexa. Existindo um enquadramento no “presente” (que tem lugar, seja como for, na década de 1950), seguem-se depois vários níveis ou momentos no passado. Desde o encontro de coup de foudre entre os pais de Choc no final da 1º Grande Guerra, a ida da mãe para Londres, a fuga desta para o castelo de Knightgrave onde se torna uma das empregadas domésticas, ao erro que lança o jovem Eden – é esse o seu nome – numa casa de correcção e a fuga (o que permite aos autores atravessarem toda uma série de temas e géneros literários, cinematográficos ou tleevisivos mais ou menos consolidados e culturalmente específicos, desde o manor house mystery, o period drama, a boarding school story, e um retrato da estratificação social, económica e política da Inglaterra das décadas entre as guerras, etc.). Estes vários momentos são revisitados fora de ordem, espoletados pela compra do castelo de Knightgrave por Choc em 1955, que ao passear por aquelas paisagens e corredores vai-se recordando do que experienciou em criança e o que escutou da mãe. Os autores espalham esses passados de forma mesclada com um novo ataque no presente por Choc e que lhe vai construindo a aura de criminoso potente e implacável, de maneira a três tempos poderem estar, numa mesma página, presentes (o trocadilho não é inocente). Por vezes, numa mesma vinheta, o Choc actual passeia-se numa cena no passado. Todavia, é preciso ter atenção que é muito claro que esta perspectiva do passado é focalizada por Choc, e não por um meganarrador externo. Se no início é o movimento de Choc, a sua travessia pelos espaços que o faz recuar para o passado nesses mesmos espaços – que tem algo da memória involuntária de Proust -, o leitor fará as inferências necessárias entre as pausas de Choc, que correspondem às da acção no “presente”, ou as rememorações por outras personagens, etc., para entender de que forma é que os vários pretéritos se tecem na mente do protagonista. Tendo acesso também, num momento, a uma cena de sonho, onde estão inscritos os ingredientes da sua persona criminosa futura, entenderemos portanto que o livro em si vogará entre uma matéria totalmente desenrolada no interior da mente de Choc como no acesso “mágico” do narrador externo.

Isto fortalece a construção psicológica da personagem, para mais tendo em conta que, pelo menos na fase adulta, jamais temos acesso ao seu rosto, e o elmo medieval impedir que possamos ver as suas emoções no rosto. Maltaite tira porém partido, de uma forma extremamente competente, toda a possibilidade de transmissão de moções através da posição do corpo ou a justaposição das personagens em temos diferentes. É como se entendêssemos a dor ou melancolia que Choc sente em ser assaltado por estas memórias. Só na leitura de todo o texto, completo, entenderemos até que ponto é que os autores conseguirão construir um arco elegante entre a ficção popular – não deixa de haver aqui um forte factor de nostalgia a alimentar o âmago do projecto, e a estrutura da intriga – e uma exploração possível nesse género dos mecanismos da memória e da identidade criada por ela – usualmente matéria de outro tipo de abordagens. Mas estamos em crer que este será um excelente exemplo de banda desenhada mainstream.

Regressando à série original, acrescentemos que nos anos 1960 Maurice Tillieux (autor de Gil Jourdan), traria elementos ainda mais realistas, e Choc não teria aí lugar (além de que a detenção dos direitos de autor sobre a personagem seriam de Rosy, não de Will e da editora). Contudo, a verdade é que o estilo visual de Will sempre a colocou numa espécie de segunda divisão da escola dita “de Marcinelle” ou “Atome”. De uma forma particular, este estúdio ou casa, a Dupuis, procurava fomentar de facto uma ideia de escola, de estilo interno à casa, uma lógica pouco preocupada com originalidade e singularidade de visões plásticas, mas uma identidade colectiva, “de marca”. Capart, no livro já citado, é demolidor quando diz que “o desenho ameaça esclerosar-se: a banda desenhada toma a banda desenhada como o seu mundo de referência”, para depois mais à frente falar de uma “polícia tipográfica”. No fundo, Will não viria ocupar um lugar particularmente de destaque, apesar de existirem fãs que defenderiam o contrário (tal como defenderão as mediocridades de Ric Hochet, Michel Vaillant, ou Todd McFarlane), e não fosse a nostalgia – que opera neste título, claro está – possivelmente permaneceria num limbo histórico.

Muitas das regras deste território clássico estão asseguradas pelo traço de Maltaite-filho, sobretudo a nível do desenho dos objectos, onde os cenários, os edifícios e as viaturas – em relação a estas, há sempre um lado de fethichismo presente, numa linha contínua desde Hergé-Jacobs, passando por Franquin-Jidéhem, etc. - são o mais realistas possíveis, e a figuração humana obedece a escolhas mais estilizadas, num ponto de equilíbrio entre o desenho anatómico e feições arredondadas. Em termos de composição, estamos na esfera da mais pura legibilidade, em que jamais se procuram arranjos radicais, mas antes elegantes e respeitando o propósito narrativo pretendido, num uso “retórico”, sem se colocar de lado uma vinheta mais espectacular ou colocada de forma a funcionar para além da mera representação. Além disso, a presença quase constante de uma pega (pega-rabuda, parece) em todos esses tempos, e verdadeira pontuação onomatopeica do seu crocito, cria um efeito muito claro de tressage, ou entrançamento (cf. Th. Groensteen), que traz coerência e finalidade a toda a história.


No fundo, o que vemos a ocorrer neste livro é uma espécie de “relançamento” de uma série anódina, inócua, que apenas alimentará os sonhos de leitores nostálgicos, em contornos mais maduros, tal como, é possível discuti-lo, Alan Moore havia começado com Marvelman/Miracleman, no início dos anos 1980, reforçando a ideia das influências em trânsito com que começámos (o facto de ser uma série britânica, sem se saber que papel teria na banda desenhada norte-americana, é quase um acidente de percurso). Resta ver até que ponto é que esta experiência é única, ou capaz de vir a ocupar um lugar de viragem em futuros desenvolvimentos.  

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