13 de agosto de 2014

École de la misère. Yvan Alagbé (Frémok)

Se, quando lemos um livro, estaremos necessariamente a criar elos entre ele e muitos outros lidos anteriormente, ou que prometemos vir a ler, como muito bem indica Christian Rosset na sua crítica a este mesmo título, em du9, elos propostos pela coincidência de um autor, de um tema, de um estilo, de uma editora, de uma referência ou uma qualquer idiossincracia do leitor, o que sucede quando percebemos, logo à partida, que este livro vem desdobrar elementos diegéticos que provêm de um livro anterior? (Mais) 

École de la misère tem como protagonista Claire, uma mulher francesa, o seu marido africano Alain, e o pai de Claire. Estas personagens já haviam surgido no livro antigo de Alagbé, Nègres jaunes. A vida deste texto é algo atabalhoada, e nasceu no seio de uma “revolução” no seio da banda desenhada francesa e belga, num grupo mais ou menos organizado que viria a ser conhecido como Autarcix Comix, e que reuniu os esforços de plataformas como a L'Association, ego comme x, assim como a Fréon e a Amok, que se reuniria na Frémok (entretanto transformada de novo, ainda que mantenha o nome). Alagbé, juntamente com o seu colega de universidade (em física) Olivier Marboeuf, fundou a editora francesa Amok no início dos anos 1990, e a primeira versão de Négres jaunes foi serializada entre os números 3 e 5 da revista trimestral dessa editora, Le cheval sans tête (de que Alagbé era também o director), entre Outubro de 1994 a Maio de 1995. Para a sua edição em formato de álbum, em 1995 (colecção Feu!), Alagbé acabaria por alterar radicalmente as pranchas em termos visuais e não só, considerando-se essa a sua versão final. Por exemplo, os episódios originais tinham, respectivamente, 16, 16 e 18 páginas, mas a versão final tem apenas 47 páginas. Em 2000 foi publicada novamente (na colecção Octave) e em 2012 teve uma outra, aumentada com outras histórias curtas, algumas das quais inédita. Esta nova versão foi re-intitulada Nègres jaunes et autres créatures imaginaires. Uma tradução portuguesa, “Pretos Amarelos”, foi trazida a lume por João Paulo Cotrim na efémera mas soberba revista Papéis 97 (Cotovia: Lisboa 1996).

École de la misère institui uma intriga mais “doméstica”, por assim dizer. Ao contrário de Nègres jaunes, não se constrói aqui uma rede social entre pessoas de várias proveniências étnicas, cada qual com associações muito específicas à política e história colonial francesa e as suas consequências sociais contemporâneas. Recordemos que nesse outro livro existia uma formação complexa com a francesa e branca Claire, o jovem negro e sans papiers do Benim Alain, a família deste, e ainda Mario, um veterano argelino orgulhoso de ter servido a França. O círculo em École é mais reduzido, já que acompanhamos Claire numa visita à casa da família por ocasião da morte e funeral dos avós paternos, o que a obriga a deparar-se precisamente com o pai – de quem se afastara violentamente pelo racismo dele e por Claire se ter casado com Alain, por amor, apesar da questão do acesso à cidadania francesa ser um ponto de rutura ou discussão mesmo entre o casal (Alain é nobre e recusa-se a casar por essa razão, mas depois é preso por ser apanhado sem bilhete de metro). Essa visita levará Claire a rememorar toda uma série de episódios, mais ou menos organizados anti-cronologicamente: os seus encontros amorosos com Alain, a captura deste no metro (cena que se repete do livro anterior), a discussão com o pai por este pensar que ela tem um namorado negro (idem), o casamento, e sucessivos episódios da sua infância e a relação com o pai, que vão surgindo ora por ela se passear nos espaços que o espoletam (mecanismo relativamente comum da memória, de Proust a Choc), por encontrar os intervenientes, por olhar uma fotografia, etc. As “cenas” repetidas do livro anterior são desenhadas de novo, mas parte dos enquadramentos, as posições dos corpos, os diálogos, são idênticos, o que nos faz, ao ler aqui pela primeira vez, estar a reler algo do livro anterior.

É óbvio, porém, que temos aqui uma narrativa diferente, e é discutível se é necessário, até mesmo obrigatório, ler o livro anterior. Talvez não. Mas tendo-o lido, é inevitável encontrar aqui uma expansão e diferenciação dessa outra história, mesmo que se compreenda serem livros independentes, algo que ocorre também em relação a, por exemplo, Souvenirs d'une journée parfaite e Faire semblant est mentir de Dominique Goblet, ou a obra de Justin Green ou de Edmond Baudoin. O que é bem diverso de, por outro lado, La Guerre d'Alan e L'enfance d'Alan de Emmanuel Guibert, ou a trilogia L'Oud de Farid Boudjelall, ou L'ascension du haut mal de David B., títulos progressivamente constituindo unidades mais coesas.

Em vários momentos Alagbé revela ser um homem espiritual, ou pelo menos alguém com uma compreensão da existência humana como numa qualquer relação com o transcendente. Isso não torna propriamente as suas obras em textos “religiosos”, mesmo que haja sem dúvida uma tentativa de conexão entre essas duas hipotéticas esferas ontológicas. As conexões, porém, não são feitas de uma forma dogmática, segundo princípios estabelecidos por hierarquias institucionais, mas algo mais imanente ao ser humano: acima de tudo, ou melhor dizendo, na base de tudo, o corpo humano. Num outro texto, a ser publicado pela plataforma Buala, abordamos a obra imediatamente anterior e base desta presente, Nègres jaunes et autres créatures imaginaires. O foco em que abordamos esse título é precisamente o dos corpos, mas não é menos verdadeiro que eles ganham novos contornos, literalmente, em École de la misère.

Claire, à medida que vai contactando os seus familiares ou os espaços da infância, é como que “assaltada” por imagens “imaginárias”: algumas pertencem a fotografias (às quais voltaremos), outras a memórias de infância, outras às memórias associadas ao seu encontro com Alain, sobretudo sexual. São variadíssimas as imagens em que encontramos imagens do casal a abraçar-se, a fazer amor, algumas cenas mesmo podendo ser consideradas pornográficas. No entanto, o objectivo dessas cenas não é titilar o leitor, mas abrir os corpos a uma nudez votiva, se assim se pode dizer. A palavra “nu”, em português, tem origem no lati nudus, que significa “sem vestes” ou “desprovido de (qualquer coisa)”. Michela Marzano, em La pornographie ou l'épuisement du désir, escreve que, para além da usual distinção entre erotismo e pornografia residir na escolha da representação explícita de actos sexuais, se prende a uma forma de apresentar os corpos nus. Uma representação “obscena” destes é vista como “sem mistério”, em relação a uma nudez que “abre ao olhar voyeur [que pode ter tanto o valor neutro de 'observador' como o mais denso da pulsão escópica] a possibilidade de captar um corpo desprovido de toda a protecção”. Num “estado de fragilidade”, acrescenta a autora numa nota. Na verdade, o obsceno “apaga” a nudez para revelar partes de corpos, funcionais, com finalidades fora deles mesmos, e é essa a razão pela qual a autora, e nós seguimo-la, de entender como mais obscenos certos empregos na publicidade, na ficção cinematográfica ou da banda desenhada dita “comercial”, do que propriamente em formas congéneres às de Alagbé neste livro. As cenas de nudez, de actos sexuais, do parto, de Claire servem como forma de ir revelando e expondo a fragilidade psicológica da protagonista, tornando-a uma superfície sensível à rememoração de uma cena traumática e, necessariamente, a uma hipótese de fuga dessa cena “primordial”.

Pois sem querer revelar demasiado, Claire rememora – e nós, leitores do texto anterior, “descobrimos” esta nova dimensão, chocante, traumática, impossível de compreender, violenta – algo que ocorreu na sua infância, e que torna a sua relação com o pai, e a própria infância, ainda mais dolorosa. É muito problemática qualquer decisão que possamos aqui tomar em relação à maneira como o autor revela este “facto” (sendo objectos de ficção, a verdade é que em parte estas personagens bebem das experiências reais e vividas por Alagbé); talvez haja um melodrama desnecessário, um aproveitamento de certos mecanismos de choque na organização textual, um abismo quase abusivo, mas como abordar estes temas senão da forma mais disruptiva possível? Como enfrentar o choque sem derrubar uma elegância formal ou narrativa que apenas existe na mente de um desejo normalizador, burguês e bem-pensante? As condições de análise e “fruição”s se nos atrevemos a dizê-lo, deste texto, serão morosas...

Nada nos impede de, desapaixonadamente, quem sabe, abordar a dimensão formal. E se Alagbé é um cultor de uma abordagem pictural que mostra uma conjunção entre corpo e expressão, bem distinta das ferramentas gráficas da banda desenhada de entretenimento, não há um abandono total de certas estruturas de clareza figurativa e narrativa. Há uma materalidade de cada desenho – as vinhetas são enormes, duas por página, e mostram todo o comportamento das aguadas, a rugosidade regular do papel, as manchas de tinta e as fronteiras com o branco imaculado, um uso nervoso de linhas para desenhar contornos e rostos, pequenas decisões para garantir um espaço, etc. - que ultrapassa a ideia de representação para existir como superfície, traço, mancha, cor – cinzentos e negros - e ausência dela. Uma assunção do preto-e-branco que vai além de questões técnicas para levantar questões quase de um modo brutalmente simplista sobre as tensões raciais, os tabus diluídos, o amor do casal, as limitações conceptuais das personagens antagónicas.

Tendo esta estrutura de duas imagens por página, todas de um tamanho constante (salvo raras excepções de imagens que ocupam ainda mais espaço), o “protocolo de leitura” não terá porém um ritmo idêntico, já que, mesmo sem a ajuda de cartografias de significado asseguradas pelo trabalho de composição (onde a alteração do tamanho ou forma de uma vinheta, a sua disposição na página, a sua relação com as outras, etc., insufla desde logo uma qualquer função de leitura), o leitor saberá, por inferências internas à diegese, entender quando há momentos de maior celeridade, quando de maior calma, ou quais cenas correspondem ao “presente da história”, à acção, quais às memórias, etc. O autor não deixa de criar situações em que nos faz ir numa direcção e depois nos rouba essa hipótese. No final do livro, quando a bebé de Claire nasce, a médica pergunta pelo pai da criança, e ela diz lamentar quando Claire lhe responde que o pai está ausente. O contraste entre o rosto sério da médica e a apresentação da bebé, em baixo, poderá criar a ideia de que o seu “lamento” diz respeito não apenas a essa ausência mas igualmente ao nascimento de uma menina negra de uma mãe branca, em que a marca da cor da pele – a obsessão da cor negra pela parte do branco, como escreveu Frantz Fanon, e assinalado em relação a Nègres jaunes por Domingos Isabelinho e Hugo Frey – assinalará sempre uma pergunta adicional... mas o autor resolve fechar o livro com um sorriso da criança, mostrando dessa outra forma como a redenção e a graça está presente na continuidade da vida.

Como havíamos dito acima, existe um episódio na história em que surgem algumas fotografias. Essas fotografias vêm da “África colonial” onde os avós viveram e, imaginamos, fizeram parte da fortuna e instituíram parte da cultura que depois trouxeram – se se compreende bem a informação elíptica, eles exploravam em França, antes de morrer, um bordel de clientela sobretudo magrebina e africana. Não são feitos quaisquer comentários sobre as fotografias. Comentários verbais, entenda-se; há apenas uma contextualização factual. Algumas das fotografias (cujas delimitações da moldura coincidem com as das vinhetas, não se criando nenhuma ilusão de distância, manipulação, “volume” no interior do mundo narrativo) mostram mulheres, de seios nus, mas se numa primeira vista poderemos imaginar que se trata do “usual”, de um “olhar antropológico neutro” - o qual, de resto, é impossível de existir, claro - que capta a vida “tal como ela era”, uma segunda foto mostra duas mulheres, uma das quais levantando a camisa, revelando os seios. Como se respondesse a um pedido de quem fotografa. Esta pequena acção, apenas presente nessa imagem, dá cor a tudo o resto, e faz-nos imaginar uma economia comportamental da parte do fotógrafo que possivelmente terá passado pela esfera da sexualidade, quer em termos de factor de poder de quem comanda e de animalização daquelas mulheres quer em termos de, talvez, “uso” sexual delas. Como dissemos, não se fazem comentários verbais, mas a forma como estas fotografias vão regressar várias vezes, em ritmos internos distintos e em diálogo com o passeio de Claire, um passeio que na verdade é uma fuga para espairecer e respirar ar limpo, leva à ideia de que elas são um gatilho de emoções, e memórias, de extrema turbulência para a protagonista.

As fotografias, tal como as cenas diegéticas, as memórias, etc. surgem todas num mesmo nível visual e estrutural da página: são todas “assinadas” com os mesmos instrumentos pictóricos, são todas apresentadas como vinhetas de idênticos valor e presença. Isso reforça a ideia do esforço do leitor, mas também permite a que haja uma porosidade entre essas diferenças. Em vez de termos uma vinheta onde veríamos as mãos da protagonista a segurar as fotografias, com uma perspectiva ocular mais ou menos idêntica ou próxima àquela que corresponderia à dela, é apenas nossa a decisão de ligarmos as fotos à cadeia narrativa em curso, e sobretudo o como dessa visão.


Na contracapa do livro, onde vemos o que parece ser o padrão de um papel de parede antiquado (da casa dos avós?) ou um velho caderno escolar ou diário (de Claire?), um pequeno autocolante apresenta o que parece ser uma espécie de colecção de títulos: “Coeur dévorante,/Amour,/Église de la chair,/École de la misère”. Trata-se de uma lista? E de quê, sinónimos, facetas de uma mesma realidade, hipóteses descritivas, elementos de uma imagem maior que as partes? Ou pequeno poema, hino, canção? De novo, regressa-se ao corpo, ao mais fundo dos âmagos – o coração, a carne, uma “igreja” - assim como a ideia de emoções desabridas, passagens excessivas de paixão, uma organização institucional, talvez falha. A miséria é funda, um talho que corta a pele de Claire – a violência, não, as violências do pai, a família desagregada, a aparente ausência de Alain, a fúria deste quando sabe do segredo, o isolamento de Claire, o assalto das memórias e dos segredos e das experiências que deveriam ser enterradas. Tudo isso acumula-se e confunde-se numa mole que vai oprimindo Claire. Mas o sorriso da filha “devora” tudo no fim num amor desmesurado. E é uma óbvia promessa de futuro, de uma nova vida, onde a concentração da mãe (e do pai?) se depositará, enterrando de vez os fantasmas miseráveis de um passado miserável. 

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