A
Critical Inquiry é uma das mais importantes publicações
académicas dos Estados Unidos, nas últimas décadas, no que diz
respeito à dita “High Theory” ou Estudos Culturais (que agrega a
crítica literária à psicanálise, passando pela filosofia(s), o
pós-estruturalismo, teoria dos media, feminismo, enfim, toda
uma série de cruzamentos entre as disciplinas das humanidades). De
certa forma, no seu círculo, a conquista de um espaço de atenção
nas suas páginas é um sinal, ainda que não absoluto e completo e
final, de entrada e prestígio na academia. Esta publicação já
abriu espaço para muitos papers dedicados, claro está, às
mais diversas das artes, desde aquelas mais consolidadas
historicamente, como a literatura e a pintura ou mesmo o cinema, até
às mais recentes mas imediatamente prestigiantes e integradas, como
a instalação ou o vídeo, passando por algumas aspectos da dita
cultura popular, como a fotonovela e a televisão. Mas a banda
desenhada esteve até agora arreigada do seu espaço (uma busca no
seu motor próprio não dá resultados significativos), surgindo este
objecto – que lhe é quase exclusivamente dedicado – como uma
espécie de correcção. Mas sê-lo-á? (Mais)
Tendo
colocado esta questão a um conjunto de investigadores desta arte, o
conselho máximo, que recebemos e acarretamos, é a de não querer
criar demasiadas expectativas num único número de uma só
publicação, como se ela fosse o singular ponto de amparo ou
propulsão para a transformação da banda desenhada em objecto digno
de estudo académico. Afinal de contas, essa transformação tem-se
verificado nos últimos anos, pelo menos em duas décadas, garças a
um concertado aumento de produção de obras prestigiantes em termos
formais, políticos e de conteúdo literário e cultural, as
transformações editoriais e de circulação (a passagem para um
universo “livresco”, que implica presença em livrarias, espaço
de crítica em jornais e revistas generalistas, entrada em prémios
literários ou outros, uma comercialização mais lata para além dos
espaços especializados), pela abertura de cursos ou disciplinas em
universidades que a contemplam e, também, pela produção de
monografias, conferências e papers em seu torno. A emergência
de um número especial da CI não é feito num vazio: apenas
nos Estados Unidos, poderíamos pensar em The Journal of Popular
Culture, English Language Notes, SubStance, Relief,
e Modern Fiction Studies, entre outros. Porém, ela ocupa um
lugar muito especial que levaria a esta espécie de expectativa em
encontrar no seu interior trabalhos críticos que fizessem um
contributo substancial no “avanço” ou na “expansão” dos
estudos de banda desenhada, e é essa expansão que julgamos ser algo
limitada. Como nos escreveu Peter Sattler, “enquanto marco na
intersecção da 'teoria crítica' e da 'banda desenhada' – ou até
mesmo um passo na legitimação dos estudos de banda desenhada – é
praticamente inconsequente”.
Em
primeiro lugar, este número acaba por ser o repositório de muito do
material criado no seio do encontro Comics: Philosophy and Practice, que teve lugar em 2012 na Universidade de Chicago,
instituição a que pertence a revista. Acima de tudo estão aqui
presentes as transcrições das várias discussões e conversas
públicas que tiveram lugar entre os autores convidados e alguns
investigadores académicos (oito diálogos, para ser exacto). Estas
conversas estão disponíveis em vídeo no site, mas a
sua leitura permite um outro tipo de, e isto não é tautológico,
“leitura”. Contudo, parte do problema deste número reside
precisamente nos autores convidados, como veremos...
Os
editores, que organizaram o encontro, são professores da
Universidade de Chicago: Patrick Jagoda e Hillary Chute, esta última,
como é sabido, uma das vozes mais vincadas e activas no seio da
academia norte-americana a trazer a banda desenhada enquanto campo
digno de estudo a este campo de inquérito intelectual, com Graphic Women, o trabalho de Meta Maus,
a edição de um número (também) especial de Modern
Fiction Studies, e outros. Mesmo que haja algumas críticas a
fazer em relação à sua atitude geral em relação à banda
desenhada como um todo, e que se confirmam neste encontro – uma
visão que parece apenas contemplar um determinado estilo, género e
abordagem à banda desenhada, nomeadamente a “autoral”,
“autográfica”, “de envolvimento pessoal”, “culta”,
“alternativa” e outros descritores -, não há dúvida de que
Chute tem contribuído para uma passagem bem sucedida e culturalmente
ancorada. E foi ela a instigadora destes encontros, que deram origem
a conversas excitantes com essa nata da criação da banda desenhada
contemporânea em língua inglesa. Além disso, a intervenção de W.
J. T. Mitchell, editor-chefe da Critical Inquiry e famoso
autor de uma série de livros que procura estudar as relações entre
as linguagens artísticas “verbais” e as “visuais”, num
contínuo espectro de criação, a sua intervenção, dizíamos, como
coordenador de algumas das conversas públicas (com art spiegelman e
Joe Sacco), trazem para primeiro plano a possibilidade desses
diálogos, se bem que o seu grau de produção seja bastante
debatível. Em muitos momentos, e isto ocorre com as conversas
públicas com outros académicos e autores, parece que o diálogo é
feito menos numa procura de confronto com os autores do que com a
criação de um espaço de divulgação das suas experiências e
percurso. Nada de novo, portanto, em relação aos conhecimentos a
que um leitor atento da obra destes mesmos autores, de suas
biografias e entrevistas longas, ou mesmo artigos, não tenha tido
acesso.
Os
autores convidados para estas conversas foram os seguintes (por ordem
alfabética): Aline Kominsky-Crumb, Alison Bechdel, art spiegelman,
Ben Katchor, Carol Tyler, Charles Burns, Chris Ware, Daniel Clowes,
Françoise Mouly, Gary Panter, Ivan Brunetti, Joe Sacco, Justin
Green, Lynda Barry, Phoebe Gloeckner, Robert Crumb e Seth. Todas as
escolhas são sempre parciais e limitadas, claro está, mas
compreende-se que esta em particular leva a uma espécie de
afunilamento por um determinado território mais ou menos consensual
em termos intelectuais e seguros. Estão ausentes autores que
trabalhem, por exemplo, em mais colaborações, sejam eles escritores
ou artistas. Estão ausentes autores que explorem géneros mais
populares da banda desenhada, que ainda assim poderiam ter um
contributo especial para o seu entendimento. Estão ausentes autores
que tenham testado formas radicais de experimentação que tenham
expandido a linguagem estrutural da banda desenhada (estão presentes
Panter e Ware, claro, mas pensamos em trabalhos ainda mais
disruptivos, não-narrativos, não-representacionais, pós-objecto,
etc.). E não estão presentes autores que escapem a um certo núcleo
linguístico, geográfico, e até mesmo geracional. Assim como estão
ausentes autores cuja inscrição política não procurasse consensos
(desde Dave Sim a Ted Rall ou Seth Tobocman). Andrei Molotiu chegou
mesmo a debater este grupo de autores convidados como um gesto, da
parte dos organizadores, não tanto de “formação de um cânone”
mas de “consolidação de um cânone”, que já estava operado
desde outros momentos e circunstâncias, não sendo a sua publicação
por determinadas plataformas a menos importante (a underground
comix press do final dos anos 1960 e inícios dos 1980, a Raw,
e depois a Fantagraphics, a Drawn & Quarterly, entre outras).
Isto significa, enfim, que a própria escolha encaminha um
entendimento da banda desenhada por uma forma mais ou menos coesa,
que não corresponde de forma alguma à sua totalidade.
Além
disso, há um grande problema em tornar a espinha dorsal das
discussões o que os artistas têm para dizer, sobretudo este
conjunto, articulado entre si, de autores que cultivam uma ideia de
que são “perdedores”. Quer dizer, Spiegelman, Ware, Crumb e
Burns, apesar de terem angariado uma crítica fenomenal, uma
circulação dos seus nomes bem para além das suas expectativas de
“bd”, ainda continuam a cultivar a ideia de que são totais
outsiders quer da sociedade em geral quer da sub-cultura da
banda desenhada. E mesmo que isso tenha a sua razão de ser
(Spiegelman não consegui publicar In The Shadow of No Towers
nos Estados Unidos, Ware e Crumb ainda têm trabalho recusado por
publicações), não se podem colocar numa posição dessa sem
admitir igualmente as vitórias que atingiram. Independentemente das
vidas precárias e os escolhos pelos quais atravessaram ao longo das
suas vidas, e que não podem se renegados, a verdade é que este
grupo de artistas pertencem a um conjunto de autores que tem
angariado um “capital cultural” substancial, e sobretudo para
além da sub-cultura popular dos comics. No entanto, de acordo
com estes autores, a entrada da banda desenhada neste mundo mais
académico e intelectualmente prestigiante parece ter de ser feita
com duas ou três estratégias de defesa: a ironia, a companhia de
amigos respeitáveis (outros meios mais “treinados” e “expostos”
ao estudo crítico) e uma certa distância. Um certo grau de
desconfiança é salutar, mas não de um quase sistemático
anti-intelectualismo, que parece impedir um trabalho de interpretação
que de forma alguma “esmaga a arte”. Bem pelo contrário, a
crítica bem feita, tal como entendida por Walter Benjamin, aproxima
a obra da ideia de arte, logo apenas um diálogo articulado entre
todas as partes – tal com o título do encontro o diz, “filosofia
e prática” - o conseguirá cumprir de forma efectiva. E o facto
desse mesmo título poder ter sido emprestado ao seu uso irónico por
Ivan Brunetti numa pequeníssima mas excelente obra pedagógica não
o impede.
Uma
das dimensões que se torna aparente é que os artistas estão mais
interessados em desviar conversa, criar discursos de auto-derisão
(uma espécie de humor que passa por defesa), mas no fim de contas o
que isso valida são obstáculos à interpretação. Alison Bechdel
chega mesmo a dizer que a “explicação arruína tudo”. Mas será
essa uma verdade inamovível ou apenas uma atitude generalista contra
um determinado tipo de abordagem? É óbvio que pode ser argumentado
que, na posição de crítico, acreditamos precisamente no contrário:
de que o inquérito e o uso de determinados instrumentos analíticos
revelará significados e estruturas ocultos “a olho nu”, e que
isso nos aproxima, não tanto do “significado verdadeiro” ou
“oculto”, mas pelo menos a uma possibilidade de uma intepretação
mais activa cultural, ideológica e formalmente.
Seja
como for, de todos eles, apenas a apresentação de Ben Katchor não
foi aqui incluída, uma vez que o próprio pediu que não fosse
transcrita. De acordo com Peter Sattler, a apresentação de Katchor
dedicou-se a reminiscências pessoais em torno da imprensa iídiche,
a qual abriu uma dissertação sobre a relação com as imagens,
desenvolvimentos tecnológicos e circunstâncias económicas
associadas a ideologias, transformando a ideia da materialidade das
imagens dissipando-se ao longo do tempo como sinal de uma relação
nostálgica e produtiva com essas mesmas imagens.
No
entanto, e curiosamente, essas mesmas questões da materialidade da
banda desenhada – o formato dos livros, as suas qualidades tácteis,
a relação inter-corporal, se assim se pode dizer, entre leitor e
livro, e outras, são elementos quase centrais de todos os ensaios
aqui reunidos, assim como são tópico recorrente nas conversas.
Katalin Orbán, por exemplo, lê Stitches de David Small e In
The Shadow of No Towers de Spiegelman para debater uma relação
mais ou menos metafórica entre o leitor e a materialidade do livro.
Dizemos “mais ou menos metafórica” pois a autora voga entre
questões de representação que providenciam imagens imaginárias
(em contraste com a possibilidade da imagem-enquanto-sinal, matéria
no papel, etc.) que são vistos como quadros de interpretação do
acto de leitura. A autora deseja que se passe dessa leitura
metafórica para uma leitura metonímica, em que a superfície da
página e as inscrições proporcionadas pelo desenho surgem como
convite de aproximação incorporada, física, que ganha um
significado particularmente acutilante numa narrativa que lida com
questões de deficiência.
A
publicação contém, portanto, para além das transcrições das
conversas, alguns artigos críticos. Mas quase nenhum deles, mesmo
que partam de autores reconhecidos ou com trabalhos de investigação
francamente interessantes, contribuem para a tal expansão a que nos
referimos acima. O texto à guisa de epílogo de W. J. T. Mitchell é
exemplar nesse sentido. Este autor tem em seu nome uma bibliografia
impressionante e de extrema importância para todos aqueles que
desejem estudar com alguma seriedade e rigor as relações entre
texto e imagem, dos livros de artista à ekphrasis, da
iluminura medieval à obra de William Blake. Contudo, o autor, tal
como muitos outros intelectuais, historiadores de arte, críticos e
investigadores que tenham estudado esta complexa e alargada área de
criação, jamais abordou de forma directa ou particular a banda
desenhada. É ele próprio quem o admite e tenta explicitar as
razões, biográficas e teóricas. Mas essa é uma situação mais
generalizada. No seio de todos os pontos de encontro possíveis entre
este tipo de comparativismo, a banda desenhada (e talvez alguns tipos
de ilustração) são vistos ainda com alguma desconfiança, se não
mesmo alguma soberba cultural, ou até desprezo (nascido de uma
percepção limitada fundada na infância ou na ignorância, que
jamais foi alterada através de novas leituras, possivelmente).
Mitchell admite, porém, que a banda desenhada é em si mesma um meio
prêt-a-analiser, como dissemos noutra ocasião, para as
questões levantadas por essa família de estudos. Partindo da imagem
“recusada” pela The New Yorker de R. Crumb, usada
na capa deste número, o teórico examina as ambivalências e
incertezas que cria em relação a uma série de dicotomias
usualmente apresentadas como “normais” ou “naturais” na(s)
nossa(s) sociedade(s) para a transformar numa metáfora precisamente
das relações possíveis – que se verificam mas numa
multiplicidade insubsumível a apenas um quadro descritivo – entre
os vários termos que foram sendo articulados, senão mesmo
“esgrimidos”, nos encontros e nos ensaios: banda desenhada,
media, estudos académicos e disciplinas teóricas, e as
várias artes, sejam elas entendidas como modos singulares com
especificidades essenciais ou em si mesmas formas texturadas de
várias linguagens expressivas contribuindo para uma experiência
mais complexa (como é o caso do ballet estudado por Daria Khitrova,
que em vez de ser visto como uma arte, um meio, pode ser visto como a
convergência feliz entre “música orquestral, passos de dança
clássica, e uma narrativa de fantasia desenrolada frente a cenários
agradáveis”, pg. 34). No seguimento dessa sua ideia, e tal como o
famoso teórico de cinema Tom Gunning, que também tem um ensaio
neste número, Mitchell revisita a “pureza” desejada por um
Lessing e, mais tarde, por um Clement Greenberg, que é
particularmente negada pela banda desenhada ou, como quer tornar o
mais explícito possível a grafia singular de Art Spiegelman, os
co-mix, em que cada um desses prefixo e sufixo (podem)
implicam um conjunto de ideias díspares e complexas. Mas nenhum
destes ensaios traz propriamente novidades à análise da banda
desenhada, basicamente repescando ideias já existentes, mais
consolidadas até, e com exemplos mais au point.
No
entanto, é impressionante como o texto de Mitchell rapidamente entra
num domínio absolutamente pessoal, inviolável e doloroso: a morte
do filho, que havia assistido às conferências, torna-se um mote
para algumas considerações do autor na sua relação com este meio
(através de desenho feitos por um amigo...). Ora, aqui entramos num
território minado logo à partida, mas não há como não avançar:
não podemos dizer nada sobre uma confissão pessoal da parte de uma
pessoa, mas essa confissão tanto nos desarma em qualquer crítica
que possamos fazer como derrota precisamente a ideia de estarmos a
manter uma discussão balizada por argumentos e enquadramentos
teóricos. Ou seja, evita-se – enquanto pessoa, o autor tem todo o
direito e o fazer – a discussão teórica por entrarmos em
reminiscências pessoais (e horrivelmente traumáticas) – mas isso
também implica um selo absoluto na potencialidade de desdobramento
crítico do meio. Pois essa “argumentação” leva a que o autor
escreva, informado pela constelação de autores convidados,
sobre “the highly personal and expressive character of much
contemporary comics artistry” (263), e explicitamente contra outros
géneros, sobretudo o de super-heróis.
Não
é que nos faça espécie “falar-se” mal dos super-heróis, um
género que tem exposição a mais através de outros canais,
associados à banda desenhada propriamente dita ou através das
ligações com outros meios e adaptações. A questão está em
construir uma afirmação generalista que deverá servir todos os
géneros, como se necessariamente toda banda desenhada “altamente
pessoal e de carácter expressivo” levasse necessariamente a algum
tipo de inovação formal e sofisticação cultural, (escusaremos
mencionar títulos) ou se todos os super-heróis seguissem os mesmos
caminhos genéricos (o recentíssimo Supreme: Blue Rose, de
Warren Ellis e Tula Lotay é um exemplo maior do espaço que ainda
existe para a experimentação no género). Além disso, a análise
de uma banda desenhada entregue ao autor como uma carta pessoal por
um autor desconhecido poderá funcionar bem na continuidade
biográfica da discussão, mas a sua abordagem enquanto
potencialidade futura da expressão artística da banda desenhada
passa ao lado das experiências efectivas e publicadas
existentes há anos (e que este espaço tenta revisitar de modo mais
ou menos contínuo, com maior ou menor fortuna).
Com
artigos sobre ballet russo, o papel de Charlie Chaplin na Rússia
revolucionária, um ilustrador negro norte—americano do final do
século XIX, e uma discussão sobre um jogo de realidade alternativa,
restam-nos apenas os artigos de Tom Gunning, Mitchell, Orbán e ScottBukatman. Este último, com um estudo sobre as vinhetas “estáticas”
no Hellboy de Mignola,
é o único que de facto contribui com um excelente artigo sobre
banda desenhada, incidindo sobre ela não apenas como objecto de
trabalho mas campo articulado e global de estudo, e com os
instrumentos que lhe são próprios. O autor, ao escolher
precisamente um título popular, que bebe e contribui para a banda
desenhada de género (discutivelmente de terror, fantasia e
super-heróis), procura qual a especificidade desses usos nesse
contexto. O autor começa por notar que existirão outros efeitos
similares em autores alternativos, como Ware e Moriarty (como se
estivesse a responder precisamente à constelação de autores dos
painéis do encontro), mas que a sua integração narrativa em
intrigas aparentemente cheias de acção levam a resultados bem mais
disruptivos e surpreendentes – em termos narratológicos,
estruturais, e até mesmo ontológicos – do que na naturalidade do
quotidiano e “banalidade” dos momentos inertes dos outros
autores. Essa é uma das razões pelas quais este é, no fundo, o
único artigo que parece cumprir a tal “promessa” (mesmo que
imaginada) do encontro este esta publicação e o meio da banda
desenhada.
O
tom geral celebratório deste número especial – outros
investigadores partilham connosco a desconfiança de que signifique
uma abertura para com a banda desenhada para além de um “momento
especial”, mas apenas o tempo o dirá – confirma-se ainda pela
integração de excertos de obras de Ware, Seth e Kominsky-Crumb, e
por trabalhos inéditos de Mouly, Tyler, Gloeckner e de Bechdel com
Chute, mas nestes dois últimos casos, a qualidade do trabalho está
muito, muito aquém da usual prestação destas artistas. Ocorre a
ideia de que isto serve apenas “ilustrar” senão mesmo
“abrilhantar” o objecto, o que não deixa sempre de contribuir
para a tal ideia geral... Mais, os editores regozijam-se da sua
integração e do facto do número ser o primeiro integralmente a
cores, mas parece-nos que essa superficialidade não significa muito
contra o “conteúdo”.
Em
termos gerais, para os interessados nos estudos de banda desenhada,
este número é ou será sem dúvida um passo nessa direcção, mas
algo envergonhado e lento.
Nota
final: agradecimentos a Hillary Chute e à editora, pela oferta da
publicação, assim como a todos os membros da Comix Scholars List.
Parece que a discussão fica numa relação entre alta e baixa cultura. O que a meu ver é equivocada. Mesmo os trabalhos de Crumb carregam elementos da baixa cultura ou do homem médio da cultura de massa (só citando como ex.: como se classificaria Fritz, the Cat, a não ser como uso de uma forma de massa, no caso tiras de animais e indo mais adiante os animais da fauna de Disney, e não me digam que Disney segue a tradição de Esopo. Assim como Spielgman utiliza essa mesma cultura de massa em em Maus) Essa parece ser uma discussão que está superada em todas as demais artes e persiste nos quadrinhos apenas como uma tentativa de legitimação, o que no fundo pode denotar uma insegurança em relação a si mesma e ainda auto-depreciação. Assim a classificação entre como baixa cultura, cultura de massa, mainstream ou como queiram chamar me parece superficial, ultrapassada ou equivocada. Afinal classificar (eu sei que são os mesmos de sempre) Alan Moore ou Grant Morrison como baixa cultura, cultura de massa, mainstream é ignorar o quanto de erudição ou alta cultura esses artistas colocam em seus trabalhos, assim como de experimentalismo. Ou seja é ignorar, pelos motivos que citei acima, A Pop Art, os romances "mainstream" de Umberto Eco (e talvez os romances de Thomas Pynchot, ou para buscar uma referência brasileira, pois sou brasileiro, os romances - "policiais" - de Rubem Fonseca) o cinema de faroeste de Ford ou Sam Peckinpah, o faroeste spaghetti, os filmes "de suspense" de Hitchcock. O que não é muito aceitável em termos acadêmicos. Mesmo que no caso do Crumb isso seja compreensível, visto seus conceitos sobre Andy Warhol.
ResponderEliminarCaro Felipe dos Santos,
ResponderEliminarAgradeço o comentário, com o qual, penso que terá notado quer pelo texto em torno deste número da "C.I." quer por outros neste blog, concordo nas suas linhas gerais. Apesar dessa "distinção" (no seu sentido corrente e no seu sentido Bourdieu-ano) fazer sentido em certos discursos analíticos e sociológicos, no que diz respeito à apreciação e teorização formal ele dissipa-se quase de imediato.
Não sei se a sua primeira frase se está a referir às discussões tidas no interior da revista ou à leitura que deles faço, mas se no primeiro caso está perto de uma espécie de oposição criada, na segunda está totalmente ao lado. Repetidamente escrevi, como o Felipe concorda, que a utilização de uma expressão como "arte de massas" para a banda desenhada contemporânea é um equívoco. Mas atenção!, não o foi há trinta, quarenta anos atrás: isto é, a banda desenhada tem uma história e herdou um peso de uma certa percepção social de que lhe é custoso livrar-se, mas não vale a pena branquear essa mesma história. Logo, o combate é ainda necessário, por razões óbvias.
Também apontava que a academia não está assim tão afastada dessas mesmas questões e existem hoje muitos teóricos e críticos, de todas essas formas de arte, que têm assinalado e estudado essas porosidades. Logo, nada de novo. É uma pena é que me pareça que este número da publicação trabalhe mais numa dessas percepções atrasadas do que contribuir decisivamente para a sua contínua abertura...
Obrigado,
Pedro Moura
Concordo contigo, Pedro. Eu realmente me referia ao texto da revista (à qual infelizmente não li, pois moro em uma cidade muito pequena no Brasil, que apesar de possuir uma universidade - a qual frequento - onde tais publicações não chegam, fora o fato de meu inglês não ser tão desenvolto). Por isso fico com teu relato crítico. Corroborando o seu/nosso ponto de vista, Carlos Argan em seu "Arte moderna : do iluminismo aos movimentos contemporâneos" ao analisar o trabalho de Lichtenstein, cuja análise de resto é ótima, diz mais ou menos que as hqs, simplesmente informam ou comunicam um conteúdo narrativo sem possuir valor estético. Fora como relata a página em português da wikipédia de Lichtenstein que ele copiava Kirby e Russ Heath (artista que eu não conheço) sem lhes dar crédito. Assim como uma vez li em desses sites da vida um relato de Melinda Gebbie que diz que Tim Burton foi conversar com Alan Moore antes de fazer seus "Batmans" e também não lhe deu crédito. Daí provavelmente a imagem do teste de Rorschach no filme, algo que pode ser novidade no cinema, mas que para nós leitores de hq não é novidade nenhuma. Assim como não é novidade nenhuma as histórias dos atuais filmes blockbusters de super-heróis. Ainda dizem que hq não é vanguarda. Nesse sentindo gostaria de sugerir uma comparação entre a estética, com as devidas diferenças é claro, de Watchmen do Alan (sempre!, isso é muito chato!, mas fazer o que) e o trabalho do artista plástico, também dos anos 80, Haim Steinbach. Creio que irás te impressionar, caso não o conheças. Acho que essas relações abrem espaço para uma comparação histórica entre as hqs. e as demais artes (por ex.: - mais uma vez com as devidas ressalvas - Crumb x Philip Roth). Nesse sentido acho muito relevante os jovens escritores brasileiros da atualidade lerem e traduzirem e produzirem hqs. Espero não ter me alongado, mas tu bens sabes que hqs são nossa paixão, caso o tenha feito lamento antecipadamente.
ResponderEliminarOlá, novamente.
ResponderEliminarNão há problema algum em te alongares, bem pelo contrário, só assim é que um diálogo pode ser o mais claro possível.
Bom, a verdade é que todas essas questões devem ser tomadas também com cuidado e no seu momento histórico. Quando o Lichtenstein criou as suas telas, a própria autoria da banda desenhada - sobretudo nos Estados Unidos - não estava assegurada de forma alguma para fora do próprio circuito das HQs. É claro que os fãs de HQ/BD hoje poderão falar de "roubo", ou algo assim, mas a prática da reapropriação, típica da POP art (e que já havia sido tentada no Cubismo, Dada e outros movimentos mais ou menos atomizados), escuda-a dessa acusação simples e exige que seja feita uma integração mais complexa. Claro que convida a discussões: porque é que se chama "reapropriação" no trânsito da bd para a arte, mas da arte para a bd seria já uma "imitação" ou "plágio"? Já havia escrito algo sobre esse assunto quanto escrevi sobre um catálogo de arte, neste blog... Quanto ao Carlo Argan, é preciso ter atenção que ele também estava a escrever nos anos 1960, muito antes de alguns dos desenvolvimentos futuros (inclusive os de Alan Moore, no mainstream), mas também na cegueira a muitos dos desenvolvimentos já tidos no seu próprio país (Guido Buzelli na linha da frente). Essa atitude também levaria o próprio Eco a escrever algumas generalidades, no seu ensaio sobre o Super-homem, que já estavam desfasadas da produção de HQ do seu próprio tempo... Não é que eles estejam "errados", pois têm razão ao olhar para a esmagadora maioria da produção do seu tempo e se depararem com um panorama particularmente pobre em termos de representação política, qualidade narrativa e até mesmo de arte (derivada, convencional, etc.). Não vamos agora pensar que a banda desenhada esteve sempre no seu estado actual de diversidade e qualidade. Não esteve. É por isso que os ataques a um Wertham são por vezes ridículos, pois ele tinha razão em relação a muitos aspectos.
A HQ não é vanguarda em si mesma. Não poderia jamais concordar com uma afirmação dessas, demasiado genérica. Ela é um território artístico, no interior do qual existirão alguns autores que têm práticas inventivas, informadas e criativas em relação à própria arte, mas a esmagadora maioria deles trabalham no interior de convenções, categorias reconhecíveis e "normas". O mesmo ocorre em relação a qualquer outra disciplina. Nada há de essencial numa forma de arte que a torna necessariamente mais interessante do que outra, ou mais bem preparada para responder a uma certa ideia... Depende da prática particular.
Dito isto, o que é aborrecido não é tanto que se trate a banda desenhada de uma forma positiva ou negativa, é que se a trate de uma forma generalista, que não está atenta de modo algum à sua diversidade interna.
Pedro