26 de setembro de 2014

Critical Inquiry, Primavera 2014: “Comics & Media”. AAVV (University of Chicago Press)

A Critical Inquiry é uma das mais importantes publicações académicas dos Estados Unidos, nas últimas décadas, no que diz respeito à dita “High Theory” ou Estudos Culturais (que agrega a crítica literária à psicanálise, passando pela filosofia(s), o pós-estruturalismo, teoria dos media, feminismo, enfim, toda uma série de cruzamentos entre as disciplinas das humanidades). De certa forma, no seu círculo, a conquista de um espaço de atenção nas suas páginas é um sinal, ainda que não absoluto e completo e final, de entrada e prestígio na academia. Esta publicação já abriu espaço para muitos papers dedicados, claro está, às mais diversas das artes, desde aquelas mais consolidadas historicamente, como a literatura e a pintura ou mesmo o cinema, até às mais recentes mas imediatamente prestigiantes e integradas, como a instalação ou o vídeo, passando por algumas aspectos da dita cultura popular, como a fotonovela e a televisão. Mas a banda desenhada esteve até agora arreigada do seu espaço (uma busca no seu motor próprio não dá resultados significativos), surgindo este objecto – que lhe é quase exclusivamente dedicado – como uma espécie de correcção. Mas sê-lo-á? (Mais) 

Tendo colocado esta questão a um conjunto de investigadores desta arte, o conselho máximo, que recebemos e acarretamos, é a de não querer criar demasiadas expectativas num único número de uma só publicação, como se ela fosse o singular ponto de amparo ou propulsão para a transformação da banda desenhada em objecto digno de estudo académico. Afinal de contas, essa transformação tem-se verificado nos últimos anos, pelo menos em duas décadas, garças a um concertado aumento de produção de obras prestigiantes em termos formais, políticos e de conteúdo literário e cultural, as transformações editoriais e de circulação (a passagem para um universo “livresco”, que implica presença em livrarias, espaço de crítica em jornais e revistas generalistas, entrada em prémios literários ou outros, uma comercialização mais lata para além dos espaços especializados), pela abertura de cursos ou disciplinas em universidades que a contemplam e, também, pela produção de monografias, conferências e papers em seu torno. A emergência de um número especial da CI não é feito num vazio: apenas nos Estados Unidos, poderíamos pensar em The Journal of Popular Culture, English Language Notes, SubStance, Relief, e Modern Fiction Studies, entre outros. Porém, ela ocupa um lugar muito especial que levaria a esta espécie de expectativa em encontrar no seu interior trabalhos críticos que fizessem um contributo substancial no “avanço” ou na “expansão” dos estudos de banda desenhada, e é essa expansão que julgamos ser algo limitada. Como nos escreveu Peter Sattler, “enquanto marco na intersecção da 'teoria crítica' e da 'banda desenhada' – ou até mesmo um passo na legitimação dos estudos de banda desenhada – é praticamente inconsequente”.

Em primeiro lugar, este número acaba por ser o repositório de muito do material criado no seio do encontro Comics: Philosophy and Practice, que teve lugar em 2012 na Universidade de Chicago, instituição a que pertence a revista. Acima de tudo estão aqui presentes as transcrições das várias discussões e conversas públicas que tiveram lugar entre os autores convidados e alguns investigadores académicos (oito diálogos, para ser exacto). Estas conversas estão disponíveis em vídeo no site, mas a sua leitura permite um outro tipo de, e isto não é tautológico, “leitura”. Contudo, parte do problema deste número reside precisamente nos autores convidados, como veremos...

Os editores, que organizaram o encontro, são professores da Universidade de Chicago: Patrick Jagoda e Hillary Chute, esta última, como é sabido, uma das vozes mais vincadas e activas no seio da academia norte-americana a trazer a banda desenhada enquanto campo digno de estudo a este campo de inquérito intelectual, com Graphic Women, o trabalho de Meta Maus, a edição de um número (também) especial de Modern Fiction Studies, e outros. Mesmo que haja algumas críticas a fazer em relação à sua atitude geral em relação à banda desenhada como um todo, e que se confirmam neste encontro – uma visão que parece apenas contemplar um determinado estilo, género e abordagem à banda desenhada, nomeadamente a “autoral”, “autográfica”, “de envolvimento pessoal”, “culta”, “alternativa” e outros descritores -, não há dúvida de que Chute tem contribuído para uma passagem bem sucedida e culturalmente ancorada. E foi ela a instigadora destes encontros, que deram origem a conversas excitantes com essa nata da criação da banda desenhada contemporânea em língua inglesa. Além disso, a intervenção de W. J. T. Mitchell, editor-chefe da Critical Inquiry e famoso autor de uma série de livros que procura estudar as relações entre as linguagens artísticas “verbais” e as “visuais”, num contínuo espectro de criação, a sua intervenção, dizíamos, como coordenador de algumas das conversas públicas (com art spiegelman e Joe Sacco), trazem para primeiro plano a possibilidade desses diálogos, se bem que o seu grau de produção seja bastante debatível. Em muitos momentos, e isto ocorre com as conversas públicas com outros académicos e autores, parece que o diálogo é feito menos numa procura de confronto com os autores do que com a criação de um espaço de divulgação das suas experiências e percurso. Nada de novo, portanto, em relação aos conhecimentos a que um leitor atento da obra destes mesmos autores, de suas biografias e entrevistas longas, ou mesmo artigos, não tenha tido acesso.

Os autores convidados para estas conversas foram os seguintes (por ordem alfabética): Aline Kominsky-Crumb, Alison Bechdel, art spiegelman, Ben Katchor, Carol Tyler, Charles Burns, Chris Ware, Daniel Clowes, Françoise Mouly, Gary Panter, Ivan Brunetti, Joe Sacco, Justin Green, Lynda Barry, Phoebe Gloeckner, Robert Crumb e Seth. Todas as escolhas são sempre parciais e limitadas, claro está, mas compreende-se que esta em particular leva a uma espécie de afunilamento por um determinado território mais ou menos consensual em termos intelectuais e seguros. Estão ausentes autores que trabalhem, por exemplo, em mais colaborações, sejam eles escritores ou artistas. Estão ausentes autores que explorem géneros mais populares da banda desenhada, que ainda assim poderiam ter um contributo especial para o seu entendimento. Estão ausentes autores que tenham testado formas radicais de experimentação que tenham expandido a linguagem estrutural da banda desenhada (estão presentes Panter e Ware, claro, mas pensamos em trabalhos ainda mais disruptivos, não-narrativos, não-representacionais, pós-objecto, etc.). E não estão presentes autores que escapem a um certo núcleo linguístico, geográfico, e até mesmo geracional. Assim como estão ausentes autores cuja inscrição política não procurasse consensos (desde Dave Sim a Ted Rall ou Seth Tobocman). Andrei Molotiu chegou mesmo a debater este grupo de autores convidados como um gesto, da parte dos organizadores, não tanto de “formação de um cânone” mas de “consolidação de um cânone”, que já estava operado desde outros momentos e circunstâncias, não sendo a sua publicação por determinadas plataformas a menos importante (a underground comix press do final dos anos 1960 e inícios dos 1980, a Raw, e depois a Fantagraphics, a Drawn & Quarterly, entre outras). Isto significa, enfim, que a própria escolha encaminha um entendimento da banda desenhada por uma forma mais ou menos coesa, que não corresponde de forma alguma à sua totalidade.

Além disso, há um grande problema em tornar a espinha dorsal das discussões o que os artistas têm para dizer, sobretudo este conjunto, articulado entre si, de autores que cultivam uma ideia de que são “perdedores”. Quer dizer, Spiegelman, Ware, Crumb e Burns, apesar de terem angariado uma crítica fenomenal, uma circulação dos seus nomes bem para além das suas expectativas de “bd”, ainda continuam a cultivar a ideia de que são totais outsiders quer da sociedade em geral quer da sub-cultura da banda desenhada. E mesmo que isso tenha a sua razão de ser (Spiegelman não consegui publicar In The Shadow of No Towers nos Estados Unidos, Ware e Crumb ainda têm trabalho recusado por publicações), não se podem colocar numa posição dessa sem admitir igualmente as vitórias que atingiram. Independentemente das vidas precárias e os escolhos pelos quais atravessaram ao longo das suas vidas, e que não podem se renegados, a verdade é que este grupo de artistas pertencem a um conjunto de autores que tem angariado um “capital cultural” substancial, e sobretudo para além da sub-cultura popular dos comics. No entanto, de acordo com estes autores, a entrada da banda desenhada neste mundo mais académico e intelectualmente prestigiante parece ter de ser feita com duas ou três estratégias de defesa: a ironia, a companhia de amigos respeitáveis (outros meios mais “treinados” e “expostos” ao estudo crítico) e uma certa distância. Um certo grau de desconfiança é salutar, mas não de um quase sistemático anti-intelectualismo, que parece impedir um trabalho de interpretação que de forma alguma “esmaga a arte”. Bem pelo contrário, a crítica bem feita, tal como entendida por Walter Benjamin, aproxima a obra da ideia de arte, logo apenas um diálogo articulado entre todas as partes – tal com o título do encontro o diz, “filosofia e prática” - o conseguirá cumprir de forma efectiva. E o facto desse mesmo título poder ter sido emprestado ao seu uso irónico por Ivan Brunetti numa pequeníssima mas excelente obra pedagógica não o impede.

Uma das dimensões que se torna aparente é que os artistas estão mais interessados em desviar conversa, criar discursos de auto-derisão (uma espécie de humor que passa por defesa), mas no fim de contas o que isso valida são obstáculos à interpretação. Alison Bechdel chega mesmo a dizer que a “explicação arruína tudo”. Mas será essa uma verdade inamovível ou apenas uma atitude generalista contra um determinado tipo de abordagem? É óbvio que pode ser argumentado que, na posição de crítico, acreditamos precisamente no contrário: de que o inquérito e o uso de determinados instrumentos analíticos revelará significados e estruturas ocultos “a olho nu”, e que isso nos aproxima, não tanto do “significado verdadeiro” ou “oculto”, mas pelo menos a uma possibilidade de uma intepretação mais activa cultural, ideológica e formalmente.

Seja como for, de todos eles, apenas a apresentação de Ben Katchor não foi aqui incluída, uma vez que o próprio pediu que não fosse transcrita. De acordo com Peter Sattler, a apresentação de Katchor dedicou-se a reminiscências pessoais em torno da imprensa iídiche, a qual abriu uma dissertação sobre a relação com as imagens, desenvolvimentos tecnológicos e circunstâncias económicas associadas a ideologias, transformando a ideia da materialidade das imagens dissipando-se ao longo do tempo como sinal de uma relação nostálgica e produtiva com essas mesmas imagens.

No entanto, e curiosamente, essas mesmas questões da materialidade da banda desenhada – o formato dos livros, as suas qualidades tácteis, a relação inter-corporal, se assim se pode dizer, entre leitor e livro, e outras, são elementos quase centrais de todos os ensaios aqui reunidos, assim como são tópico recorrente nas conversas. Katalin Orbán, por exemplo, lê Stitches de David Small e In The Shadow of No Towers de Spiegelman para debater uma relação mais ou menos metafórica entre o leitor e a materialidade do livro. Dizemos “mais ou menos metafórica” pois a autora voga entre questões de representação que providenciam imagens imaginárias (em contraste com a possibilidade da imagem-enquanto-sinal, matéria no papel, etc.) que são vistos como quadros de interpretação do acto de leitura. A autora deseja que se passe dessa leitura metafórica para uma leitura metonímica, em que a superfície da página e as inscrições proporcionadas pelo desenho surgem como convite de aproximação incorporada, física, que ganha um significado particularmente acutilante numa narrativa que lida com questões de deficiência.

A publicação contém, portanto, para além das transcrições das conversas, alguns artigos críticos. Mas quase nenhum deles, mesmo que partam de autores reconhecidos ou com trabalhos de investigação francamente interessantes, contribuem para a tal expansão a que nos referimos acima. O texto à guisa de epílogo de W. J. T. Mitchell é exemplar nesse sentido. Este autor tem em seu nome uma bibliografia impressionante e de extrema importância para todos aqueles que desejem estudar com alguma seriedade e rigor as relações entre texto e imagem, dos livros de artista à ekphrasis, da iluminura medieval à obra de William Blake. Contudo, o autor, tal como muitos outros intelectuais, historiadores de arte, críticos e investigadores que tenham estudado esta complexa e alargada área de criação, jamais abordou de forma directa ou particular a banda desenhada. É ele próprio quem o admite e tenta explicitar as razões, biográficas e teóricas. Mas essa é uma situação mais generalizada. No seio de todos os pontos de encontro possíveis entre este tipo de comparativismo, a banda desenhada (e talvez alguns tipos de ilustração) são vistos ainda com alguma desconfiança, se não mesmo alguma soberba cultural, ou até desprezo (nascido de uma percepção limitada fundada na infância ou na ignorância, que jamais foi alterada através de novas leituras, possivelmente). Mitchell admite, porém, que a banda desenhada é em si mesma um meio prêt-a-analiser, como dissemos noutra ocasião, para as questões levantadas por essa família de estudos. Partindo da imagem “recusada” pela The New Yorker de R. Crumb, usada na capa deste número, o teórico examina as ambivalências e incertezas que cria em relação a uma série de dicotomias usualmente apresentadas como “normais” ou “naturais” na(s) nossa(s) sociedade(s) para a transformar numa metáfora precisamente das relações possíveis – que se verificam mas numa multiplicidade insubsumível a apenas um quadro descritivo – entre os vários termos que foram sendo articulados, senão mesmo “esgrimidos”, nos encontros e nos ensaios: banda desenhada, media, estudos académicos e disciplinas teóricas, e as várias artes, sejam elas entendidas como modos singulares com especificidades essenciais ou em si mesmas formas texturadas de várias linguagens expressivas contribuindo para uma experiência mais complexa (como é o caso do ballet estudado por Daria Khitrova, que em vez de ser visto como uma arte, um meio, pode ser visto como a convergência feliz entre “música orquestral, passos de dança clássica, e uma narrativa de fantasia desenrolada frente a cenários agradáveis”, pg. 34). No seguimento dessa sua ideia, e tal como o famoso teórico de cinema Tom Gunning, que também tem um ensaio neste número, Mitchell revisita a “pureza” desejada por um Lessing e, mais tarde, por um Clement Greenberg, que é particularmente negada pela banda desenhada ou, como quer tornar o mais explícito possível a grafia singular de Art Spiegelman, os co-mix, em que cada um desses prefixo e sufixo (podem) implicam um conjunto de ideias díspares e complexas. Mas nenhum destes ensaios traz propriamente novidades à análise da banda desenhada, basicamente repescando ideias já existentes, mais consolidadas até, e com exemplos mais au point.

No entanto, é impressionante como o texto de Mitchell rapidamente entra num domínio absolutamente pessoal, inviolável e doloroso: a morte do filho, que havia assistido às conferências, torna-se um mote para algumas considerações do autor na sua relação com este meio (através de desenho feitos por um amigo...). Ora, aqui entramos num território minado logo à partida, mas não há como não avançar: não podemos dizer nada sobre uma confissão pessoal da parte de uma pessoa, mas essa confissão tanto nos desarma em qualquer crítica que possamos fazer como derrota precisamente a ideia de estarmos a manter uma discussão balizada por argumentos e enquadramentos teóricos. Ou seja, evita-se – enquanto pessoa, o autor tem todo o direito e o fazer – a discussão teórica por entrarmos em reminiscências pessoais (e horrivelmente traumáticas) – mas isso também implica um selo absoluto na potencialidade de desdobramento crítico do meio. Pois essa “argumentação” leva a que o autor escreva, informado pela constelação de autores convidados, sobre “the highly personal and expressive character of much contemporary comics artistry” (263), e explicitamente contra outros géneros, sobretudo o de super-heróis.
Não é que nos faça espécie “falar-se” mal dos super-heróis, um género que tem exposição a mais através de outros canais, associados à banda desenhada propriamente dita ou através das ligações com outros meios e adaptações. A questão está em construir uma afirmação generalista que deverá servir todos os géneros, como se necessariamente toda banda desenhada “altamente pessoal e de carácter expressivo” levasse necessariamente a algum tipo de inovação formal e sofisticação cultural, (escusaremos mencionar títulos) ou se todos os super-heróis seguissem os mesmos caminhos genéricos (o recentíssimo Supreme: Blue Rose, de Warren Ellis e Tula Lotay é um exemplo maior do espaço que ainda existe para a experimentação no género). Além disso, a análise de uma banda desenhada entregue ao autor como uma carta pessoal por um autor desconhecido poderá funcionar bem na continuidade biográfica da discussão, mas a sua abordagem enquanto potencialidade futura da expressão artística da banda desenhada passa ao lado das experiências efectivas e publicadas existentes há anos (e que este espaço tenta revisitar de modo mais ou menos contínuo, com maior ou menor fortuna).

Com artigos sobre ballet russo, o papel de Charlie Chaplin na Rússia revolucionária, um ilustrador negro norte—americano do final do século XIX, e uma discussão sobre um jogo de realidade alternativa, restam-nos apenas os artigos de Tom Gunning, Mitchell, Orbán e ScottBukatman. Este último, com um estudo sobre as vinhetas “estáticas” no Hellboy de Mignola, é o único que de facto contribui com um excelente artigo sobre banda desenhada, incidindo sobre ela não apenas como objecto de trabalho mas campo articulado e global de estudo, e com os instrumentos que lhe são próprios. O autor, ao escolher precisamente um título popular, que bebe e contribui para a banda desenhada de género (discutivelmente de terror, fantasia e super-heróis), procura qual a especificidade desses usos nesse contexto. O autor começa por notar que existirão outros efeitos similares em autores alternativos, como Ware e Moriarty (como se estivesse a responder precisamente à constelação de autores dos painéis do encontro), mas que a sua integração narrativa em intrigas aparentemente cheias de acção levam a resultados bem mais disruptivos e surpreendentes – em termos narratológicos, estruturais, e até mesmo ontológicos – do que na naturalidade do quotidiano e “banalidade” dos momentos inertes dos outros autores. Essa é uma das razões pelas quais este é, no fundo, o único artigo que parece cumprir a tal “promessa” (mesmo que imaginada) do encontro este esta publicação e o meio da banda desenhada.

O tom geral celebratório deste número especial – outros investigadores partilham connosco a desconfiança de que signifique uma abertura para com a banda desenhada para além de um “momento especial”, mas apenas o tempo o dirá – confirma-se ainda pela integração de excertos de obras de Ware, Seth e Kominsky-Crumb, e por trabalhos inéditos de Mouly, Tyler, Gloeckner e de Bechdel com Chute, mas nestes dois últimos casos, a qualidade do trabalho está muito, muito aquém da usual prestação destas artistas. Ocorre a ideia de que isto serve apenas “ilustrar” senão mesmo “abrilhantar” o objecto, o que não deixa sempre de contribuir para a tal ideia geral... Mais, os editores regozijam-se da sua integração e do facto do número ser o primeiro integralmente a cores, mas parece-nos que essa superficialidade não significa muito contra o “conteúdo”.

Em termos gerais, para os interessados nos estudos de banda desenhada, este número é ou será sem dúvida um passo nessa direcção, mas algo envergonhado e lento.
Nota final: agradecimentos a Hillary Chute e à editora, pela oferta da publicação, assim como a todos os membros da Comix Scholars List. 

4 comentários:

  1. Parece que a discussão fica numa relação entre alta e baixa cultura. O que a meu ver é equivocada. Mesmo os trabalhos de Crumb carregam elementos da baixa cultura ou do homem médio da cultura de massa (só citando como ex.: como se classificaria Fritz, the Cat, a não ser como uso de uma forma de massa, no caso tiras de animais e indo mais adiante os animais da fauna de Disney, e não me digam que Disney segue a tradição de Esopo. Assim como Spielgman utiliza essa mesma cultura de massa em em Maus) Essa parece ser uma discussão que está superada em todas as demais artes e persiste nos quadrinhos apenas como uma tentativa de legitimação, o que no fundo pode denotar uma insegurança em relação a si mesma e ainda auto-depreciação. Assim a classificação entre como baixa cultura, cultura de massa, mainstream ou como queiram chamar me parece superficial, ultrapassada ou equivocada. Afinal classificar (eu sei que são os mesmos de sempre) Alan Moore ou Grant Morrison como baixa cultura, cultura de massa, mainstream é ignorar o quanto de erudição ou alta cultura esses artistas colocam em seus trabalhos, assim como de experimentalismo. Ou seja é ignorar, pelos motivos que citei acima, A Pop Art, os romances "mainstream" de Umberto Eco (e talvez os romances de Thomas Pynchot, ou para buscar uma referência brasileira, pois sou brasileiro, os romances - "policiais" - de Rubem Fonseca) o cinema de faroeste de Ford ou Sam Peckinpah, o faroeste spaghetti, os filmes "de suspense" de Hitchcock. O que não é muito aceitável em termos acadêmicos. Mesmo que no caso do Crumb isso seja compreensível, visto seus conceitos sobre Andy Warhol.

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  2. Caro Felipe dos Santos,
    Agradeço o comentário, com o qual, penso que terá notado quer pelo texto em torno deste número da "C.I." quer por outros neste blog, concordo nas suas linhas gerais. Apesar dessa "distinção" (no seu sentido corrente e no seu sentido Bourdieu-ano) fazer sentido em certos discursos analíticos e sociológicos, no que diz respeito à apreciação e teorização formal ele dissipa-se quase de imediato.
    Não sei se a sua primeira frase se está a referir às discussões tidas no interior da revista ou à leitura que deles faço, mas se no primeiro caso está perto de uma espécie de oposição criada, na segunda está totalmente ao lado. Repetidamente escrevi, como o Felipe concorda, que a utilização de uma expressão como "arte de massas" para a banda desenhada contemporânea é um equívoco. Mas atenção!, não o foi há trinta, quarenta anos atrás: isto é, a banda desenhada tem uma história e herdou um peso de uma certa percepção social de que lhe é custoso livrar-se, mas não vale a pena branquear essa mesma história. Logo, o combate é ainda necessário, por razões óbvias.
    Também apontava que a academia não está assim tão afastada dessas mesmas questões e existem hoje muitos teóricos e críticos, de todas essas formas de arte, que têm assinalado e estudado essas porosidades. Logo, nada de novo. É uma pena é que me pareça que este número da publicação trabalhe mais numa dessas percepções atrasadas do que contribuir decisivamente para a sua contínua abertura...
    Obrigado,
    Pedro Moura

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  3. Concordo contigo, Pedro. Eu realmente me referia ao texto da revista (à qual infelizmente não li, pois moro em uma cidade muito pequena no Brasil, que apesar de possuir uma universidade - a qual frequento - onde tais publicações não chegam, fora o fato de meu inglês não ser tão desenvolto). Por isso fico com teu relato crítico. Corroborando o seu/nosso ponto de vista, Carlos Argan em seu "Arte moderna : do iluminismo aos movimentos contemporâneos" ao analisar o trabalho de Lichtenstein, cuja análise de resto é ótima, diz mais ou menos que as hqs, simplesmente informam ou comunicam um conteúdo narrativo sem possuir valor estético. Fora como relata a página em português da wikipédia de Lichtenstein que ele copiava Kirby e Russ Heath (artista que eu não conheço) sem lhes dar crédito. Assim como uma vez li em desses sites da vida um relato de Melinda Gebbie que diz que Tim Burton foi conversar com Alan Moore antes de fazer seus "Batmans" e também não lhe deu crédito. Daí provavelmente a imagem do teste de Rorschach no filme, algo que pode ser novidade no cinema, mas que para nós leitores de hq não é novidade nenhuma. Assim como não é novidade nenhuma as histórias dos atuais filmes blockbusters de super-heróis. Ainda dizem que hq não é vanguarda. Nesse sentindo gostaria de sugerir uma comparação entre a estética, com as devidas diferenças é claro, de Watchmen do Alan (sempre!, isso é muito chato!, mas fazer o que) e o trabalho do artista plástico, também dos anos 80, Haim Steinbach. Creio que irás te impressionar, caso não o conheças. Acho que essas relações abrem espaço para uma comparação histórica entre as hqs. e as demais artes (por ex.: - mais uma vez com as devidas ressalvas - Crumb x Philip Roth). Nesse sentido acho muito relevante os jovens escritores brasileiros da atualidade lerem e traduzirem e produzirem hqs. Espero não ter me alongado, mas tu bens sabes que hqs são nossa paixão, caso o tenha feito lamento antecipadamente.

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  4. Olá, novamente.
    Não há problema algum em te alongares, bem pelo contrário, só assim é que um diálogo pode ser o mais claro possível.
    Bom, a verdade é que todas essas questões devem ser tomadas também com cuidado e no seu momento histórico. Quando o Lichtenstein criou as suas telas, a própria autoria da banda desenhada - sobretudo nos Estados Unidos - não estava assegurada de forma alguma para fora do próprio circuito das HQs. É claro que os fãs de HQ/BD hoje poderão falar de "roubo", ou algo assim, mas a prática da reapropriação, típica da POP art (e que já havia sido tentada no Cubismo, Dada e outros movimentos mais ou menos atomizados), escuda-a dessa acusação simples e exige que seja feita uma integração mais complexa. Claro que convida a discussões: porque é que se chama "reapropriação" no trânsito da bd para a arte, mas da arte para a bd seria já uma "imitação" ou "plágio"? Já havia escrito algo sobre esse assunto quanto escrevi sobre um catálogo de arte, neste blog... Quanto ao Carlo Argan, é preciso ter atenção que ele também estava a escrever nos anos 1960, muito antes de alguns dos desenvolvimentos futuros (inclusive os de Alan Moore, no mainstream), mas também na cegueira a muitos dos desenvolvimentos já tidos no seu próprio país (Guido Buzelli na linha da frente). Essa atitude também levaria o próprio Eco a escrever algumas generalidades, no seu ensaio sobre o Super-homem, que já estavam desfasadas da produção de HQ do seu próprio tempo... Não é que eles estejam "errados", pois têm razão ao olhar para a esmagadora maioria da produção do seu tempo e se depararem com um panorama particularmente pobre em termos de representação política, qualidade narrativa e até mesmo de arte (derivada, convencional, etc.). Não vamos agora pensar que a banda desenhada esteve sempre no seu estado actual de diversidade e qualidade. Não esteve. É por isso que os ataques a um Wertham são por vezes ridículos, pois ele tinha razão em relação a muitos aspectos.
    A HQ não é vanguarda em si mesma. Não poderia jamais concordar com uma afirmação dessas, demasiado genérica. Ela é um território artístico, no interior do qual existirão alguns autores que têm práticas inventivas, informadas e criativas em relação à própria arte, mas a esmagadora maioria deles trabalham no interior de convenções, categorias reconhecíveis e "normas". O mesmo ocorre em relação a qualquer outra disciplina. Nada há de essencial numa forma de arte que a torna necessariamente mais interessante do que outra, ou mais bem preparada para responder a uma certa ideia... Depende da prática particular.
    Dito isto, o que é aborrecido não é tanto que se trate a banda desenhada de uma forma positiva ou negativa, é que se a trate de uma forma generalista, que não está atenta de modo algum à sua diversidade interna.
    Pedro

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