24 de novembro de 2014

AAVV. 2 Pattes de Mouche (L'Association)

Depois de um mais ou menos prolongado hiato da colecção, já para não falar da dificuldade de a ver distribuída comercialmente pelos nossos pontos de venda, a colecção Patte de Mouche tem dado sinais de continuidade, quer com os autores perenes da casa, quer com novos artistas quer com amigos que por lá passam. É precisamente o caso destes três livros (que já têm cerca de um ano) de que queremos dar breve recado. (Mais) 

A Patte de Mouche tem uma presença física – 24 páginas, 10.5 x 15 cm – que convida desde logo a “exercícios de estilo” nas quais confluam a concisão, a concentração, assim como o gesto livre do desenho. Muitos dos autores experimentam aqui ora lanços livres dos lápis e instrumentos de expressão, ora um qualquer jogo que devem cumprir no interior do espaço que lhes é reservado, ora então experimentam apresentar de forma célere e nuclear uma ideia, que pode estar ou não relacionada de forma directa com a matéria de expressão que lhes é usual nas obras maiores.

Como já havíamos mencionado noutras ocasiões, esta colecção foi extremamente influente, tendo informado (literalmente, “dado forma”) toda uma série de outras colecções de editoras independentes espalhadas na Europa e mesmo além. Colocar lado a lado a Patte de Mouche à Quadradinho, minitonto, O filme da minha vida, kus!, etc. demonstrará não apenas uma escolha ditada por condições financeiras, as quais ajudam na decisão da forma e pormenores de produção (impressão apenas a preto, a uma outra cor, duas cores, quadricromia, diferenciação significativa entre a gramagem da capa e do miolo, presença de badana, e depois a questão do design), mas também numa moldagem que conduza a decisões estéticas. Isto é, os autores trabalham da composição das pranchas (afinal, reduzidas em tamanho), o ritmo do folhear do livro, a cadência dos textos com as imagens, etc., de acordo com o resultado formal.

Ao olhar uma selecção ao acaso desta colecção, não podemos dizer de forma alguma que haja uma preferência por utilizar uma imagem por página, ou legendas epigramáticas acompanhando imagens intervaladas no tempo e acções, etc. Pelo contrário, há uma diversidade tão significativa como em qualquer outro formato ou abordagem. A questão da leitura formal, porém, é que tem de conduzir a um aspecto que ilumine o projecto global, e nesse sentido, aquilo que vemos é a tal ideia de concentração, de rapidez, de exactidão. Empregamos termos de Italo Calvino, pois é ele quem descreve, em Seis propostas, a ideia de que mesmo considerando estas linhas descritivas como “critérios exteriores”, elas são conducentes a “uma particular densidade” quando feitas no interior de uma qualquer limitação, como é o caso deste formatinho.

Labyrinthum. Marc-Antoine Mathieu. Se bem que a personagem principal, e única, deste livrinho , seja vista de costas, não pareça usar óculos nem ter o cabelo negro, partilha quase todas as características físicas, comportamentais e de vestuário com a personagem Julius Corentin Acquefacques, da famosa série “clássica” do autor. E a “filosofia” parece ser a mesma dessa série, ou mesmo da obra do autor, como em 3 secondes: um pensamento metalinguístico e recorrente e circular da própria matéria de expressão passível de explorar na banda desenhada.

No caso presente, o labirinto é composto pelos padrões supostamente criados pela concatenação das páginas impressas de uma banda desenhada, os sulcos dos espaços entre as vinhetas, e em várias escalas de maneira a que se criem padrões infinitos de linhas rectilíneas mas fractais. Mas este padrão não é superficial e bidimensional, mas eleva-se num volume, e uma minúscula personagem escapa dos seus fundos, subindo para o seu topo. A “câmara”, porém, aproxima-se dele, para relevar que no seu interior, uma outra personagem se eleva, e que a sombra lançada sobre ele pertence a uma outra pessoa que é ele mesmo noutra escala, e por aí fora, abrindo-se a esse conhecido efeito visual chamado “mise en abyme” ou “efeito Droste”. Os textos, entretanto, pertencem a um narrador externo mas que se mistura com as sensações e impressões da personagem, num claro lavrar do discurso indirecto livre, com um efeito dramático e emocional relativamente efectivo nesta espécie de mini-episódio da “Twilight Zone”.

A página final, que serviria de coda, tem o símbolo do infinito elevado ao quadrado, que, das duas uma, ou pretende encetar um diálogo com questões da física, ou surge como uma figura metafórica da possibilidade não apenas do movimento infinito da personagem, encerrado no seu livro (tal como o infinito se encontra encaixado nos parêntisis), como também no convite à releitura incessante do mesmo, ainda que apenas potencial, prometida, eventual.

Deste autor, também, acaba de sair igualmente a reedição de La Mutation (de 2004), na qual se corrige uma única palavra (“pleinement” e não “péniblement”), o que corrige também toda uma possibilidade de interpretação moral da pele abandonada do seu pobre e desmemoriado protagonista.

Cavalcade Surprise. Jessica Abel, Matt Madden, e Lewis Trondheim. Se o livro anterior é um pequeno prolongamento dos processos habituais do autor, aqui não será muito diferente. Trondheim tem uns quantos Patte de Mouche no currículo, Matt Madden não é alheio a formatos mínimos. nem a exercícios. Mas onde em Mathieu o formalismo é conducente a um discurso metalinguístico, estes três autores elevam as próprias circunstâncias das suas vidas num qualquer jogo que leve à expressão momentânea. Por ocasião de uma passagem de ano em família, juntos - o casal norte-americano, que tem trabalhado junto sobretudo no campo da educação, visitando a casa do autor francês -, e sobretudo com os filhos dos primeiros brincando com os brinquedos do segundo, os autores resolveram fazer algo de extremamente simples. Todavia, algo de alegre e divertido, que nos leva a pensar que Trondheim encontra soluções de protecção do perigo que assola todos os "prisioneiros" de fórmulas e repetição típicas da banda desenhada (leia-se este livro para compreender)

Cada um dos autores fizeram 7 desenhos, pequeníssimos retratos dos brinquedos espalhados no chão: uma caixa de plástico com rodas com peças desconjuntas de Lego, dinossauros de borracha para o banho, um camião betoneira, um jogo de peças de madeira, um boneco de peluche, etc. adicionaram-lhes legendas, cada autor num tom distinto: Trondheim usa legendas emolduradas, na primeira pessoa e quase descrevendo objectivamente as cenas que enquadram os brinquedos; Madden cria uma espécie de ficção fantasiosa em que os brinquedos planeiam escapar, sob as ordens de uma gata peluda, a “Rainha Hairkitty”; e Abel escreve apenas frases soltas, palavras isoladas, como se se tratassem de poemas mínimos, títulos, orações moleculares, que “dão uma cor” especial aos objectos que as acompanham.


Os desenhos, de cada um – é curioso que, sendo desenhos ligeiros e “soltos”, é sobretudo pela caligrafia de cada um que os leitores poderão conseguir identificar a autoria, ou por detalhes: o contorno grosso e limpo de Abel, os efeitos de trama de Madden, a linha nervosa de Trondheim – constituiriam uma perfeita série, senão mesmo ciclo, senão mesmo uma narrativa. Mas de acordo com a nota inicial do volume, os desenhos foram “juntos e ordenados”. Esta ordem, porém, nunca segue uma mesma ordenação; simplesmente um mesmo autor não se sucede a si mesmo, e procuram-se unidades dos três. As tais “linhas narrativas” misturam-se, mas em vez de serem anuladas ou interrompidas somente, acabam por se espelhar e reforçar de alguma forma: a revolução dos brinquedos (Madden) parece irromper na aparente acalmia doméstica (Trondheim), e certas personagens partilham sensações ou impressões do que sucede (Abel). Dessa maneira, uma frase de um autor parece ser um comentário à acção desenhada por outro, ou associamos um mesmo objecto, brinquedo, evento a outro, que o ilumina de forma diferente do que se estivesse isolado. Dessa maneira, então, os autores parecem revelar parte da magia inerente às estruturas mínimas desta forma de expressão, chamemos-lhe banda desenhada ou outra coisa: por mais aleatório que seja o acto de capturar um objecto em desenho, por mais ocasional que seja a circunstância que leva a essa sessão de caça, por mais displicente que seja a ideia que leve às palavras que lhes estão associadas, e por mais improvável que sejam as “núpcias”entre todos eles no momento de ordenação, estas últimas ocorrem de facto. Com multiplicidade, polifonia, potencialidade.  

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