19 de novembro de 2014

Monkey Trip. Gonçalo Pena (Mousse Publishing)

Na continuidade do artigo anterior, e após a sua introdução geral, passemos à consideração desta “colecção de desenhos” de Gonçalo Pena, pequena galeria portável. Traduzindo de forma “selvagem” (à lá revista K) a expressão de “viagem macaca”, poder-se-ia dizer de facto que este volume é tão-somente uma colecção de desenhos de Pena. Conhecido sobretudo por uma prestação de telas imensas a um gosto antigo mas onde se investigam novas possibilidades de recruzamentos simbólicos, e por um inaudito fanzine-acto nas Caldas da Rainha (o “Cona da Mão”), Pena é um artista cujos instrumentos o colocam sempre na senda de ingredientes mais ou menos classicizantes: a figura humana, o desenho a traço, as promessas narrativas que dele pode advir, as noções de “ciclos” (temáticos, matéricos, composicionais). (Mais) 

Contendo mais de 250 desenhos, porém, é difícil subsumir todos aqueles seleccionados neste volume a um qualquer princípio ou unificação. Temos desenhos a grafite, lápis de cor, esferográfica, caneta de aparo (?), pincel, aguarelas, aguadas, e sobre os mais diversos papéis em termos de qualidade, cor, textura e mesmo formatos e orientações (ainda que tudo trabalhado de modo a que, na reprodução do livro, elas surjam uniformizadas; isto é, apresentadas enquanto unidades de valor idêntico face ao olho do leitor). Quer dizer, logo à partida, reunindo trabalho de uma vintena de anos, ou mais, de produção, ao serem-nos como que “devolvidos” num só objecto, eles surgem-nos menos como elementos de um catálogo, colecção, reunião antológica ou balanço – o que pediria por instrumentos editoriais bem diversos, de alguma lógica e organização de dados e comunicativos – do que como elementos singularmente identificáveis de um texto a ler. Tal como o havíamos afirmado em relação a Edmond Baudoin ou a Marco Mendes (que aplicável a uns quantos outros autores), também Gonçalo Pena faz demonstrar, neste livro, que todo e qualquer seu desenho pode fazer parte do seu próprio Poema Contínuo.

Se quiséssemos arrastar o autor para mais próximo do território que nos é mais querido, o da banda desenhada na sua acepção mais lata, que permitiria objectos cuja coordenação das unidades não seguem necessariamente um plano de absoluta lógica, irmanaríamos Pena com autores tais como C.F., Debeurme, Sfar, Koch, Manouach, entre outros, no sentido de autores que pensam através do próprio acto de desenhar, mais do que subsumi-lo a um programa de representação ou de narração. Mas mais importante ainda, tem a ver com aquele prazer do momento em fazer desdobrar as linhas, formas e cores no seu próprio acto, que permitem logo de seguida a dar-lhes uma espécie de continuidade noutros gestos.

A ordem, por exemplo, em que os desenhos são apresentados, não é cronológica, nem temática, nem material. Mas é tampouco caótica ou ocasional. Encontramos alguns desenhos que partilham características comuns, seja um mesmo assunto, por exemplo (um casal composto por uma mulher muito jovem e um homem mais velho, retratos de Hitler, cenas de óperas wagnerianas, representações de estatuária ou frisos gregos, etc.), mas que podem estar distribuídos de modo afastado no livro, obrigando o “leitor” a criar esses elos de modo retrospectivo, ou convidando mesmo a um folhear não-linear do mesmo. Perguntamo-nos, então, haverá uma qualquer regra de organização entre eles? Provavelmente apenas circunstancial, o que se revelará importante e se une ao desenho formado por outro desenho, a que aventámos atrás.

Algumas das imagens parecem não ser mais do que o mais breve dos riscos compondo uma figura, ainda que sigam o pulso bem treinado do autor, outras parecem ser buriladas ao longo de um ponto paciente, outras ainda citarão sem dúvida pinturas, outros desenhos, fotografias, de livros ou jornais. Algumas misturam frases articuladas, títulos propícios, ou frases soltas, palavras desconjuntas, estranhos e fortuitos encontros. Passo a passo, isso aproxima-nos do campo da “referencialidade”, ou até se quiserem da “intertextualidade” (visual, claro está), cuja constelação seria infinita. Vemos Gauguin, Topor, um Guston tardio, Blake, sombras de Leonardo, riscos de Grosz, corpos de ninfetas de Klossowski e de Louÿs, sátiros de Pascin, formas animadas de Segar, formas esquálidas de Fabre, ecos de Léger e de Allori, por aqui: ora desirmanados, ora de mãos dadas? Gonçalo Pena é afinal um autor que gosta de retrabalhar as referências da dita Alta Cultura, de forma mais ou menos explícita, mesmo que as desviando para propósitos menos imediatos dessa mesma História, logo não será estranho encontrar esse permanente convívio nestas imagens, ora sob a forma de citações, ora sob a forma de “influências”, por mais diluídas que elas estejam no uso livre das “anedotas” do autor. A licenciosidade, o absurdo, os encontros entre o animal e o homem (devires-animais do homem e devires-homem do animal?), uma certa propensão a citações da cultura alemã (óperas de Wagner, os dois conflitos bélicos, Hitler e as suásticas, como já se referiu), uma galeria de figuras mitológicas gregas e bíblicas, e até um retrato de Pacheco Pereira, compõe os “assuntos”, que se nos surgem, não convergem num terreno inabalável, mas antes num movediço tecido flexível, cheios de pontos de fuga.

No meio deste tumulto de referências, matérias e assuntos, existirá uma desorganização da parte do autor? Quer dizer, agora falando do ponto de vista da produção da parte da obra, não do livro. Uma falta de certeza em eleger um tema que conduzisse de forma mais específica este seu volume? Uma dispersão de interesses? Um desejo de auto-aniquilamento? Na página 81 parece-nos ver uma espécie de auto-retrato do autor, uma figura a ser esfaqueada por dois esbirros indiferenciados e pré-individualizados de lado a lado (os dois editores? Os críticos?). Poderemos lê-la como a confissão semi-oculta do autor, como todos os autores o fazem no seio das suas obras?

Ainda na perseguição de sentidos de ordenação através de detecção de elementos específicos nos desenhos, notar-se-á que algumas das folhas ostentam o carimbo do Instituto Politécnico de Leiria, ou mesmo formulários da antiga ESTGAD, em que o autor foi docente. Essa revelação, por assim dizer, poderia ser lida de duas formas. Uma mais superficial e abusivamente familiar, biografista: tratando-se tão-somente das folhas disponíveis no “emprego”, são o suporte repentino da descontração entre momentos de labor, com outro tipo de labor (e isso permitira agregar apenas essas folhas, eleger os temas e tratamentos, e querer identificar constantes sentimentos, por exemplo). Outra mais intensamente estética, e apenas demonstrar os movimentos necessários para que, na convergência absolutamente circunstancial entre o momento e o acto do artista, tenha desabrochado o próprio acto do desenho, e que este tenha sido coroado com o seu próprio êxito, cujas regras ele mesmo havia instituído, na sua mais plena autonomia.

Aqui, uma associação, mesmo que metafórica, à ideia da Ur-planta de Goethe, pode revelar-se produtiva. Logo na abertura de A Metamorfose das Plantas, Goethe escreve o seguinte, explicitando a “doutrina” que ele aí expõe: “as leis da metamorfose, pelas quais a natureza produz uma parte através da outra”. Nesse ensaio, Goethe persegue, através da sua descrição dos avanços e recuos, desdobramentos e florações, ao longo da vida de uma flor, uma forma, fantasmática, hipotética, superior, de planta. Todavia, essa Urpflanze não é propriamente uma forma hipotética e externa, passível de uma descoberta ou chegada da investigação, mas uma forma virtual que advém precisamente da consideração global de todas as formas visíveis. Como escreve Maria Filomena Molder na sua introdução à tradução desse texto do escritor alemão (pela INCM), “[e]stamos em presença de uma imagem que representa a possibilidade de uma planta, de um modelo de desenvolvimento que [Goethe] actualizava em todas as formas concretas da vida da planta”. Se olhássemos todos estes desenhos como fases concretas e individualizadas de um gesto, qual é a forma do Ur-gesto do artista? Será possível re-traduzi-lo para uma só imagem?

Ainda nessas notas, Molder escreve que para Goethe “toda a escrita é escrita de circunstância”. Até certo ponto, não poderíamos dizer o mesmo das pesquisas de Pena? Afinal, elas percorrem menos um caminho pautado por princípios organizadores ou conceptualizações planificadas, do que desvios presididos pela força dos seus gestos cumpridos. Mesmo identificando os tais “ciclos” ou “grupos”, o trabalho editorial que levou à sua remistura e reordenação coloca-os a todos num mesmo plano, numa mesma posição de relação para com o tal ur-gesto.

O livro é ainda acompanhado de dois textos, cada um da lavra de um dos seus editores (no sentido de editors, não publishers), os artistas visuais Pedro Paiva e João Maria Gusmão, este com uma espécie de rábula que reescreve os mitos de Adão, Eva e família num ambiente de pesquisa antropológico-simbólica, à la Mauss, aquele com uma pseudo-memória de tempos revolucionários, onde a aprendizagem sexual se imiscui com a da introdução ideológica.


A sua leitura enquanto “ilustração” dos desenhos – eles surgem em inglês no início do livro e em português no final, enquadrando a maior parte deles – permitiriam outras associação, decerto, mas tentámos (forçámos?) uma autonomia maior aos desenhos, plástica no sentido moldável, como que perscrutando a linha virtual, fantasmática, que todas elas desenham em conjunto. De certo modo, também uma viagem da linha. 

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