Ambos
os livros que trazemos à vossa atenção neste único texto provêm
de um universo relativamente idêntico. Apesar de nascerem sob dois
gestos diferentes, reunirem pessoas diferentes e serem editados por
plataformas diferentes, eles contêm afinidades editoriais,
criativas, políticas e culturais por demais evidentes, que
justifica, até certo ponto, que possam ser consideradas sob o mesmo
fôlego. (Mais)
A
Abysmo e a Arranha-Céus são dois projectos editoriais com pequenas
diferenças de funcionamento, e sobretudo de catálogo, mas estão
associadas aos esforços editoriais de João Paulo Cotrim, sobretudo
mas não só. Cotrim é uma das forças por detrás de um
ressurgimento que teve lugar na banda desenhada e na ilustração de
autor do final dos anos 1990, com ligações em gestos anteriores (a
importantíssima revista LX Comics) e a certas continuidades. Claro
está que outros nomes lhe deverão estar associados nesses seus
gestos, uma longa família que compreenderá Renato Abreu, Jorge
Silva, Marta Madureira e Tiago Manuel, entre outros, mas é Cotrim,
por assim dizer, o centro gravítico e anímico destas aventuras e
configurações de esforços. O papel de um editor é, acima de tudo,
e se estivermos a falar sobretudo de um papel, de uma função, que
não apenas traz a lume os conhecimentos específicos do mester
livresco, mas também uma cultura, neste caso, visual primorosa, um
olho certeiro para as melhores uniões entre texto e imagem, mas
também de movimento financeiro, circulação cultural, espaço de
divulgação mediática, e sensibilidade gráfica, textual, de desgin
e material, o papel é, dizíamos, de um agregador. E nesse sentido,
não se pode negar que Cotrim tem sido um agregador exímio.
Para
além deste aspecto material e funcional, por assim dizer, há entre
estes dois livros um tema uno e coerente. A comemoração dos 40 anos
do 25 de Abril. Pouco importa fazer um balanço desses 40 anos.
Haverá sempre aqueles que sonham numa permanente revolução que não
se cumpriu na sua totalidade, e aqueloutros que reagem a ela
imputando-lhe todos os escolhos que vieram em nome de progressos
materialistas e financeiros, cujos frutos colhemos hoje sob a forma
de uma esperança cada vez mais espoliada. É assim que se esgrimem
discursos totalmente opostos e irreconciliáveis entre “realismo”
e “utopia”, “compromisso” e “liberdade”,
“inevitabilidade” e “subversão”, sem se compreender que não
há espaço comum sequer para começar a tentar encontrar isso
mesmo... o comum. Que comum existe entre partes extremadas?
Como
já tínhamos citado a propósito da Buraco, o
filósofo Jacques Rancière faz uma distinção clara entre o que ele
chama de “polícia”, isto é, a política entendida de uma forma
restrita, atreita aos agentes eleitos, funcionários do Estado, a
máquina da administração, e a “política”, que é um exercício
de poder mais lato, espalhado por todos e quaisquer cidadãoes, até
mesmo aqueles que podem não ser considerados “cidadãos” pela
parte dos agentes “policiais”. E esse exercício escreve ou
reescreve a possibilidade de dizer o que é comum e o que é provado,
o que é visível e audível e o que é invisível e inaudível,
enfim, são todos aqueles nexos de produção de significado que
tentam fazer emergir discursos políticos, fundar vozes. Estes dois
livros, cada um à sua maneira, e de maneiras electrificadas, pois é
através de gestos artísticos – poéticos e gráficos – fundam
vozes. Todas elas singulares, ainda que no seu conjunto dando ímpeto
a uma mesma direcção. A de que o conceito do “25 de Abril”
ainda pode ganhar contornos de sentido de abertura desse mesmo tecido
político.
Pelos
olhos dentro nasceu de uma
exposição comemorativa em Viana do Castelo, e com uma intenção
mais ou menos programática: não só a de criar imagens que
dissessem respeito a esta passagem do tempo desde essa data mas
também à possibilidade, como escreve Cotrim no seu belo texto
introdutório, a de providenciar uma “reinterpretação” dos
ícones que marcaram essa data. Assim, para além dos nomes dos
próprios participantes, surgiriam igualmente aqueles todos que
fizeram a história dos posters, murais, cromos, calendários,
páginas de revistas e jornais, que circulavam nos anos quentes
portugueses. O de João Abel Manta acima de todos os outros, decerto,
mas não seria o único.
Como
escreve Cotrim, num sentido baudelariano agudíssimo, estes são
“mestres do efémero”, mas é precisamente nessa efemeridade que
se esconde a mais pequena centelha, súbita mas acutilante, do
eterno. Os nomes desses autores são (e copiamos) Alberto Faria, Alex
Gozblau, Amanda Baeza, Ana Biscaia, André da Loba, André Letria,
Bernardo Carvalho, Carlos Guerreiro, Catarina Sobral, Cátia
Vidinhas, Constança Araújo, Cristina Sampaio, Cristina Valadas,
Daniel Lima, Emílio Remelhe, Esgar Acelerado, Filipe Abranches,
Gémeo Luís, João Fazenda, João Lucas, Jorge Nesbitt, José Manuel
Saraiva, Júlio Delbeth, Lord Mantraste, Manuel San Payo, Mariana A
Miserável, Marta Madureira, Marta Monteiro, Miguel Rocha, Nuno
Saraiva, Pedro Brito, Pedro Cavalheiro, Pedro Lourenço, Pedro
Proença, Ricardo Castro, Rui Rasquinho, Rui Silvares, Sebastião
Peixoto, Susa Monteiro e Tiago Albuquerque.
Aquelas
atitudes antagónicas que apontámos acima, ou posições
(necessariamente ideológicas, sobretudo aqueles que gostam de se
disfarçar por essa impossibilidade de “estar acima das” ou
“estar fora das ideologias) relativas ao que significa a Revolução
de 1974, estão presentes no livro sob a forma das imagens. Algumas
são claramente comemorativas, com um certo tom de alegria e
esperança; outras apresentam antes espaços ou objectos de dúvida
ou de ironia perante as conquistas, mas menos para as desprezar do
que questionar uma espécie de desaceleramento dessas mesmas
conquistas ou dos âmagos, sentimentos e motores que ainda as podiam
mover. Essa diversidade é imensa, tal como o é da materialidade das
imagens, as estratégias de composição, de ocupação do espaço,
de escolhas cromáticas, de níveis de legibilidade e de referências
extratextuais, de ironia ou poeticidade. Cada imagem permitiria uma
interpretação ensaística, como a de Pedro Brito que sublinha um
certo ensimesmamento de toda uma geração (de várias idades), e que
poderia ser uma explicação possível para alguma da falta de fôlego
de “Abril”, ou a de Esgar Acelarado, que apresenta uma outra
concepção do mesmo problema, mais cabisbaixa. A de Susa Monteiro,
prometendo desde logo uma narrativa de uma amizade que ainda poderia
acontecer. A de Rui Silvares, arvorando uma certa bílis que tem
desaparecido do cartoon
actual, e recorda os esbirros verdadeiros do Estado durante anos? E
que podem voltar, mesmo sob a forma de pequenos gatos... Ou então
que abraçam totalmente a ambiguidade, como a de Miguel Rocha, que
planeia afogamentos em confusões de bandeiras, ou a de Filipe
Abranches, que apresenta uma estranha paisagem, desolada de traços
humanos e onde a tecnologia não parece prometer muito, ou de Ricardo
Castro, cuja forma fantasmática poderia assumir formas diversas, do
voto ao lixo, do fantasma do passado àquele que nos assola no
presente, e se calhar assumem todas... E apontará a de André
Letria, de forma metonímica, desviada, elíptica, para um testemunho
pessoalíssimo? A de Amanda Baeza para uma memória que lhe foi
ditada, de fora, mas adoptada?
Já
40 x Abril,
nascendo do mesmo gesto em termos gerais, tem um contexto bem
diverso. Trata-se de um livro que reúne poemas e imagens, todas
inéditas, mas que não estão numa relação directa, “ilustrativa”
entre uns e outras, tão-somente juntas na coreia global. Alguns dos
nomes dos ilustradores são os mesmos do projecto anterior, e há
casos mesmo em que as matérias são praticamente idênticas (André
Letria citando objectos de hipotéticas memórias pessoais, André da
Loba com umas personagens homens-mão que marcham), tal como há
momentos em que parece haver artistas a partilhar temas e variações
(Nuno Saraiva e Cristina Sampaio mostrando uma “evolução” do
revolucionário), mas há também outros que não se cruzam.
Os
poemas são de lavra nova, de poetas activos, muitos dos quais da
geração “sem qualidade” (para citar uma famosa antologia de
Manuel de Freitas, também presente), que citam e evocam episódios
do nosso mundano, do
nosso momento
passageiro, do agora que já se dissipou mas por isso, e regressemos
a Baudelaire, toca nas franjas do verdadeiro eterno. Mais do que
tentar-se, por exemplo, um estilo, digamos, “grandíloquo”,
“épico” e “celebratório”, que cairia na esparrela da "lagrimeta ou da emoção empacotada. Vivendo-se num país cheio de
indivíduos “forrados a pele de 'antes assim que'” (Carlos
Alberto Machado) e onde “O lixo e o dinheiro são a única estação”
(Luís Quintais), a única celebração possível é de facto a dos
dentes rilhados e de um punho erguido e lívido, pronto a agir
novamente. Por isso algumas imagens parecem conter alguma raiva: Luís
Manuel Gaspar apresenta-nos um coração feito de galhos retorcidos,
pintados com uma listra vermelha que parece assinalar a coutada onde
a caça é possível; Ana Biscaia transformando um cravo num grito de
trompete mas também numa explosão demolidora de fogo; Tiago Manuel
revela uma pequena personagem torturada sob o jugo do Pai-Nosso na
doutrina do silêncio; Alex Gozblau mostrando um emigrante pronto a
partir, restando-nos adivinhar se se trata dos que já partiram ou
dos que ainda partirão; Manuel San Payo, Rui Raquinho e André Lemos
mostrando-nos um irascível José Mário Branco, demolindo os
contornos (e os cornos) do FMI à força da palavra; João Maio Pinto
dando-nos as boas-vindas com uma imensa aranha vermelha, feita de
pétalas de cravo aceso; e António Jorge Gonçalves, bebendo
novamente de Manta, revelando-nos a verdadeira forma de cooperação
política e económica que se nos espera nos palcos globais...
Dirão
muitos que nem um nem outro livro se nos apresenta um discurso
verdadeiramente balizado, ponderado, educado, e aceitável sobre os
40 anos do desenvolvimento do país. Que pouco se diz do crescimento
económico e da entrada de Portugal em instituições internacionais,
e o que se contribui para elas e o que elas contribuíram para o
país. Que não há um balanço equilibrado das responsabilidades do
que está mal, da educação à justiça. Que não se citam
directamente nenhum dos agentes, vistos como “positivos” ou
“negativos”, em todos esses processos.
Mas
para quê personalizar, fulanizar, a vida mais profunda de um país,
de um corpo bem mais largo e imenso? E por que razão respeitar as
regras quando estas somente existem para decidirem, logo à partida,
quem tem direito de falar e em tempos de antena cronometrados?
Essas
vozes menos se conquistam do que se ocupam. Estes dois livros
ocupam-na e ocupam-nos agora com as que leva.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos os volumes.
Olá, Pedro!
ResponderEliminarVenho acompanhando seu trabalho aqui no blog há anos e seus textos foram bastante importantes para que eu construísse um pensamento crítico sobre banda desenhada.
Estou conduzindo um trabalho acadêmico sobre o tema e gostaria de conversar melhor contigo, será que você poderia me fornecer um email de contato?
Abraço!
Caro Renan,
ResponderEliminarCom muito gosto, e obrigado pela confiança.
O meu email é pedrovmoura AT gmail PONTO com
Até breve,
Pedro Moura
Dear Anonymous,
ResponderEliminarYou seem to be a very petty, if not obnoxious, individual. Your blog or whatever that is is absolutely ridiculous. If calling oneself a "man" means to spew that kind of thing, then I would rather be called a "woman" indeed.
Good day.
PM