5 de novembro de 2014

Uma perna maior que a outra. José Feitor (Imprensa Canalha)

Lenta, mas de modo contundente, e pouco inócua quando o faz, cá martela a Imprensa Canalha os seus pequenos objectos gráficos, que habitam aqueles terrenos baldios entre a banda desenhada, a ilustração, o desenho, o exercício de junção de ideias soltas, apontamentos, rabiscos e fragmentos de frases. Uma última fornada providencia-nos com dois títulos, um do seu editor, José Feitor, e outro de Filipe Abranches, de que falaremos em seguida. Comecemos pelo primeiro, Uma perna maior que a outra. (Mais) 

Este pequeno livrinho lança-nos logo num desequilíbrio, nem fosse o título dar uma ajuda. Não há simetria absoluta no corpo humano, e até Lucrécio queria ver numa certa “inclinação” (clinamen) a razão da origem da diversidade do universo. A rasteira que nos é pregada desde logo é a das categorias. O que é isto? Mera colecção de desenhos soltos, sem nexo entre si temático nem material, sem sombra de variação, depois colados a frases que tampouco parecem agregar-se em torno de uma ideia simples? Ou haverá aqui algum fio vermelho que tudo une, mas nos escapa a uma primeira abordagem? Ou trata-se antes de um gesto poético, não apenas a nível verbal, nem apenas a nível da imagem, mas a nível de tudo isso unido, e que dissolve a própria vontade em criar categorias, balizas de segurança para conforto do crítico e do leitor?

Uma ideia surge: é que, tal como o acto violento de malhar ferro desperta súbitas faíscas que iluminam, a austeridade das frases e desenhos de Feitor fazem soltar laivos de autobiografia indestrinçáveis de uma ficcionalização presente pelo labor literário e a transformação das imagens. É necessário atentar à nota paratextual no fim para compreender os contornos possíveis dessa interpretação: fala-se de uma “apropriação gráfica” a partir de fotografias de António Gonçalves Pedro, “nas quais revi a minha vergonha como num espelho”. Apenas através de um escavar na intimidade do autor poderíamos talvez destrinçar as ligações directas entre cada imagem, ou cada texto – que actua como uma mini-parábola em lugar de uma reminiscência pessoal -, e a sua vida, mas Uma perna maior que a outra, se pode pertencer a um campo geral a que damos nome de autobiografia, não se lhe integra por seguir as passadas confessionais, fulanizadas, de jogo específico de identificação que usualmente se lhe compreende. Pretende-se antes uma ligação mais geral, explicada ainda na mesma nota como estendida “a todos os que fizeram parte daquele mundo”.

Um mundo semi-rural, fora das cidades principais do país, onde apesar dos avanços sociais e económicos do pós-25 de Abril, ainda se mantém linguajares mais rudes e antigos, empedernidos em tradições rústicas e de cristãos sem temor, que suportam o poder da igreja mas sem abusos, que respeitam mais a sachola do que a sacola da escola, que sabem haver mais sustento no vinho do que em promessas de banqueiro, que preferem saber quais os papéis predeterminados da mulher e da criança, do chefe de família e do louco da aldeia, do que discursos complexos da pós-modernidade. José Feitor apropria-se então das fotografias de Gonçalves Pedro, aparentemente um retratista de um Portugal menor que não de dissipou por completo aí pelos vilarejos fora dos grandes centros, para regressar – mesmo que discutivelmente num exercício ele mesmo pós-moderno (apropriação, experiência categorial, etc.) – a ele, a uma memória pessoal, e a uma espécie de fundo comum cultural que já foi alvo de revisitações literárias tantos escritores. “Romantismo de ambiente rural”? “Neo-realismo”? “Tradicionalismo”? Tudo descritores insuficientes, sem dúvida, para explicar a força dos pequenos textos, quase epígrafes, a cada página.

Apesar das imagens não estabelecerem uma sequência propriamente dita, mas obedecerem à noção da série de retratos, de personagens relacionadas entre si pelo gesto autoral que as reúne num mesmo espaço e gesto, os textos, também singulares, criam uma espécie de elo cronológico. Adivinhamos que cada um corresponde a um hipotético capítulo da história da família: a descrição do progenitor, uma gravidez acelerando o matrimónio, a obrigatoriedade de instalar o amor entre pais e filhos, as rivalidades violentas entre irmãos, amigos de infância e colegas de escola, e episódios passados nas instituições que se seguem, da escola à igreja, os animais e santos de estimação, e os muitos rituais que pautam a vida. O último texto, intitulado “ónus”, dá a entender uma espécie de muro que existe entre esse mundo e mais além, muro que é transporto por uns, para sempre sem retorno, mas não pelo hipotético protagonista. História sem final feliz? Destino irreprimível? Obstáculo intransponível? Tudo isto dependeria do grau com que lêssemos o livro independentemente do seu autor empírico, muro esse que não ultrapassaremos nós.

As imagens, para além daquela ideia de transposição e transformação, têm as suas características materiais. O pulso de Feitor encontra aqui menos momentos daquela segurança de trabalhos anteriores, no sentido de fechar os contornos com linhas grossas da mesma espessura, procurando uma espécie de homogeneidade gráfica. Pelo contrário, há uma maior soltura e urgência no registo das imagens, algumas delas até com rudimentos de esboços, recordando toda uma escola vetusta, de Saul Steinberg a Ben Shahn. Nalguns casos temos aguadas trazendo a ideia de volume ou sombra, aqui e ali um gesto de pincel seco para dar a ideia de uma continuidade que se dissipa, numa imagem centrada numa figura masculina um trabalho mais denso da negra tinta-da-China para incutir um ambiente, a um só tempo, tétrico e sólido, fantasmático e monumental. Por alguma razão um dos textos reza que “Ali os fantasmas eram pessoas reais, pessoas de facto”. Não é preciso almas penadas descarnadas, estas figuras de carne e osso e tinta são suficientemente macabras na sua recuperação da memória para criar essa noção.


Além dos textos e das imagens, há um outro mecanismo também fantasmático e também de inscrição: um pequeno apontamento de tinta, um ponto, que se vai alastrando, aumentando na verdade, até ser incómodo, pela sua presença e repetição. Depois, um fim abrupto. Sem ais histórias, e um acordo de cavalheiros de nunca mais recordar tais episódios. Está feito o luto, terminada a catarse, encerrado o passeio. 

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