3 de dezembro de 2014

Dois livros académicos franceses (Presses Universitaires François-Rabelais)

Se temos dado conta de alguma produção académica em língua inglesa, não queremos porém dar a ideia de que a produção noutras línguas é menos regular. Se bem que algumas dessas produções estejam fora do nosso alcance ora por não lermos a língua (o caso alemão) ou pura ignorância (o que se passa na Argentina ou na Suécia?), sabemos que é contínua, mesmo que em diferentes graus de intensidade. O campo francófono, por exemplo, é exemplo disso. Mais ou menos recentemente, não apenas pequenas editoras especializadas (PLG, Les Moutons Eléctriques, entre outras) como editoras académicas propriamente ditas (a PUF, acima de todas) têm lançado livros da mais diversa natureza, mas todas unidas pela ideia de dar a lume leituras críticas e analíticas da banda desenhada. A produção é de tal ordem que permite uma edição anual do SoBD, um salão quase exclusivamente dedicado a obras sobre banda desenhada, mais do que dela-mesma. Este ano, por exemplo, instituíram mesmo um prémio à melhor obra do ano transacto (prix Papiers Nickelés), que calhou a Thierry Groensteen, pelo seu volume sobre Töpffer. (Mais) 

De uma forma particularmente dedicada, neste campo, surge então a colecção Iconotextes, da Université François-Rabelais. Trata-se de uma colecção de volumes dedicadas a toda a espécie de artes nas quais o encontro entre a produção visual e a narrativa seja mais evidente, ou mesmo os seus desvios, e contam com obras colectivas e assinadas por um só autor, monografias sobre um nome ou uma obra ou espalhadas em torno de um tema, etc. Falemos então, e brevemente, de dois desses títulos.

L'engendrement des images en bande dessinée. Henri Garric, dir. Este volume reúne 12 ensaios divididos em três partes, que se procuram apresentar como núcleos particulares da questão principal do volume, expressas literalmente no seu título: como é que se geram as imagens na banda desenhada? Como é que as imagens geram a banda desenhada? Partindo da ideia, correctíssima, de que a esmagadora maioria dos estudos existentes sobre a banda desenhada focam sobretudo a sua dimensão social e cultural, e quando se centram no domínio estético, as mais das vezes a subsumem à literatura, ou pelo menos bebendo da narratologia – como o fazemos nós, ainda que não exclusivamente – para a ler, o editor e autores procuram oferecer uma colecção de textos que procura regressar ao domínio da imagem. Não apenas à questão do desenho, linha e traço, o esboço preparatório, mas a composição da página, a coordenação das vinhetas como elementos a um só tempo isolados e conjugados, a gestão dos intervalos e elipses, os desarranjos possíveis com os elementos diegéticos apresentados visualmente, etc.

No prefácio, Henri Garric cita os estudos de B. Peeters sobre Töpffer, num entendimento – veja-se Mr Pencil – que “o movimento do desenho e as suas metamorfoses presidem à geração da narrativa”. Importa portanto interrogar esse domínio, nas suas várias dimensões, na leitura e compreensão da emergência do(s) sentido(s). Essas dimensões estão então presentes nas partes do volume, a primeira dedicada a autores particulares, a segunda a “formas, meios, géneros” e a terceira ao “processo criativo” (Benoît Peeters participa aqui então, menos como teórico do que como escritor de banda desenhada), revelando-se um lado mais empírico.

Um aspecto importante de notar é que não há aqui um grupo de objectos de estudo constrito, por exemplo a livros que explorem de alguma forma meta-linguística as capacidades expressivas ou estruturais da banda desenhada (Marc-Antoine Mathieu está ausente, apenas a título de exemplo), se bem que possamos dizer que Little Nemo, Les Cités Obscures e The Cage pertençam a esse campo alargado. Ou então, podemos ver as coisas por outro prisma: a de procurar, em todos os livros, onde está encerrado o segredo do desenho gerador. A constelação de objectos engloba então L'ascension du haut mal e Gaston Lagaffe, autores como Jacovitti, Alan Moore e Milton Caniff, tipos de banda desenhada como a dita “muda”, géneros como o steampunk e novas formas de trabalho como as proporcionadas pelas tecnologias digitais.

Cada um destes núcleos, disposto sobre um tema diferente, procura demonstrar como a geração das imagens (isto é, toda a estrutura da banda desenhada) pode ter na sua origem os mais diversos mecanismos: a estrutura do folhetim obrigará Milton Caniff a procurar uma escrita que é bem diversa daquela de Franquin, com Gaston, onde o gag obriga a tornar clara a mecanização da estrutura, mas essa própria clareza é geradora do gag (é esse o artigo de Garric), tal como para Moore a possibilidade de retrabalhar e citar a própria materialidade histórica da banda desenhada se torna um elemento de trabalho.

Encontraremos, portanto, nomes mais conhecidos do campo de estudos em questão, como Peeters, Groensteen (que volta a abordar a obra-chave de Martin Vaughn-James), Smolderen, como outros que importa seguir pela qualidade destes textos, mesmo quando temos posicionamentos antagónicos, ou pelo menos diversos, no que diz respeito à compreensão histórica, estrutural, estética e social da banda desenhada. Mas isso é sinal, não tanto de que alguma das posições estaria “errada”, mas de que, enquanto arte, não poderá surpreender-nos essa possibilidade. O artigo sobre as novas tecnologias, e as suas potencialidades, por exemplo, poderá vir a mudar no espaço de, imaginamos, dez anos, mas isso não impede que qualquer consideração sobre esse aspecto não deva tomar em conta, agora, o texto de Elsa Caboche. Na verdade, um contrastes entre este curto artigo e a monografia de Delporte de que falámos mostraria como é que se podem seguir caminhos mais consolidados, ainda que mais curtos.

O artigo de Morgane Parisi, que parte de uma série de entrevistas para construir uma abordagem antropológica da criação contemporânea, e uma entrevista ao jovem autor Boulet, no final do volume, pelo editor e Caboche, permite que as questões abordadas teoricamente no volume possam ser postas em discussão directamente em inquirições sobre a prática.

Em traços largos, há toda uma série de pequenas novas abordagens que aumentarão, seguramente, a “caixa de ferramentas” analíticas desta forma de expressão.

Hergéologie. Cohérance et cohésion du récit en images dans les aventures de Tintin. Pierre Fresnault-Deruelle. Este autor é precisamente um dos nomes-charneira para a inauguração, logo no início dos anos 1970, para essa tal “caixa de ferramentas” de forma verdadeiramente teórica, baseada num saber intelectual e disciplinar (e não somente sinal de uma “sabedoria” de factos). Tendo já publicado um número substancial de obras incontornáveis, e artigos absolutamente decisivos, algumas das quais dedicadas em exclusivo a esse autor maior belga, este volume é na verdade uma colecção de alguns ensaios que estavam espalhados em antologias ou publicações menores, com pequenas reescritas e adaptações, hoje mais ou menos de difícil acesso. Apenas a título de exemplo, a leitura magistral (em todas acepções desta palavra) Les mystères du Lotus Bleu, publicado como caderno independente em 2006 pela Moulinsart, é integrado aqui como um capítulo de um discurso corrido. De resto, o autor usa mesmo a palavra “prolongamento” dos seus estudos sobre o autor de Tintim para definir estes ensaios.

O livro encontra-se dividido em duas partes, a primeira intitulada “A inteligência gráfica de Hergé” e a segunda “Vinhetas postas em evidência [en exergue]”. Compreende-se, de atacado, o exercício intelectual diferenciado do teórico. O programa geral do semiólogo é, como sempre, o de sublinhar a natureza absolutamente gráfica, se não mesmo pictórica, de Hergé. Afastando-se de leituras que o aproximassem de considerações que confundam a banda desenhada com meios fotográficos (incluindo o cinema), Fresnault-Deruelle (FD) quer sempre que se atente em particular à “profundeza das imagens planas”, para citar uma sua obra anterior (que persegue o mesmo exercício que a segunda parte deste volume), até mesmo à redução de cada vinheta isolada a uma espécie de quadro, a qual permite, nas suas próprias palavras, a “um lugar de descentramento sempre produtor de sentido. No entanto, se isso parece tratar-se de um exercício de reductio ad absurdum, totalmente desligado de todos os outros factores, desenganem-se os leitores apressados, uma vez que esse, digamos, processo analítico serve precisamente para compreender um nível mais alargado de criação, a que FD dá o nome de “scénariographie”. Esta é uma palavra composta de difícil tradução, uma vez que mescla os termos de “scénario”, isto é, escrita ou argumento na banda desenhada, e cenografia; “argumentografia” seria uma hipótese, mas é palavra bera. O autor explica: “num autor de banda desenhada [é] o efeito produzido pela inventividade das atitudes, dos enquadramentos, da sua conjunção e daquilo que, para além do que é mostrado ou dito directamente, nos é sugerido a 'meia-imagem'” (nesta última expressão, o autor remete a uma sua obra anterior, que havíamos debatido aqui).


Apesar do autor citar outros episódios, é consabido como muitos leitores criaram “imagens que não estão lá”, terceiras imagens de ausência no espaço inter-icónico das cenas apresentadas por Hergé. Se bem que essas imagens fantasmáticas sejam complexas (a queda de Haddock do avião em Tintim no Tibete é um caso estudado bastas vezes), elas são sinal de alguma espécie de dinamismo mental que é possível nesta forma de arte, e que é mais efectiva em Hergé do que noutros autores. FD pretende, portanto, explorar essas capacidades específicas precisamente para as jogar contra uma ideia de que o dinamismo que é proposto em Tintim é já um meio-caminho pronto à sua, supostamente perfeita, adaptação a meios de imagens em movimento (animação, cinema, o encontro mesclado entre as duas da sua versão Spielberg). Bem pelo contrário, o autor pretende sublinhar de forma acérrima o dinamismo particular das imagens “paradas” e fragmentadas da banda desenhada.

De facto, ao estudar-se Hergé com tranquilidade e balizando-nos em estudos teóricos informados e consolidados (e não somente nas hagiografias, textos celebratórios, ou meros empilhamentos de factos), poder-se-ão descobrir os modos como a obra foi sendo alterada à medida que Hergé vinha entrando em contacto com vários outros autores ou pessoas influentes: Benjamin Rabier, George McManus e Alain de Saint-Ogan para a camada visual, a missão “católica” para os primeiros passos de pedagogia paternalista, uma bateria de escritores literários para os “temas”, o verdadeiro Chang para uma preocupação com o real e o político, Jacobs para uma maior textura dos cenários e do uso de efeitos de referencialidade, Van Melkebeke para uma complexificação da intriga [recordemos este livro], etc. Não obstante, a “mecânica”, a “legibilidade”, a “escrita estrutural”, essa, é totalmente de Hergé e em muitos casos são suas invenções certos processos que depois seriam vistos quase como “fundadores” da própria linguagem artística.

Cada ensaio pode ser lido de forma isolada, uma vez que se tratam de temas dispersos (por exemplo, uma crítica ao livro de Peeters, Lire Tintin, Les Bijoux Ravis, um artigo sobre a questão do conceito “linha clara”, uma leitura das capas, etc.), mas eles acabam por contribuir para aquilo que Laurent Gernier, no posfácio, chama de “Fraxinologie”, aliás, um excelente e curto artigo para apresentar o percurso do semiólogo. Se FD está no campo precisamente criticado pelo prefácio de L'engendrement, mais uma vez se demonstra que não podemos ver as coisas de modo separado ou absoluto. O percurso de FD, que tem nestes textos não apenas uma continuação mas um aboutissement da sua missão, digamos assim, da transformação do visível no legível.

Curiosamente, por razões sobejamente conhecidas, a reprodução de imagens da personagem belga levanta sempre problemas complexos, e para mais, na segunda parte, pela questão económica da reprodução de cores. Assim sendo, e por contraste à primeira parte em que se reproduzem uma dezena de imagens, a segunda, com algumas excepções (não é compreensível a regra), não apresentam as vinhetas correspondentes às micro-leituras (as quais podem prender-se a significados semióticos, psicanalíticos, ou mesmo de genealogia e famílias estilísticas, comparando-se a trabalhos publicitários de Hergé, de outros autores de banda desenhada, etc.). Assim aparece um quadrado com a referência precisa (sempre em relação à “última” versão, o que nem sempre corresponde à numeração da edição portuguesa corrente), onde se lê “ilustre você mesmo este livro: cole aqui a vinheta correspondente”, quase transformando este volume numa espécie de caderneta de cromos (bem diferente dos seus próprios livros publicados pela Moulinsart, bien sûr). Assim, há como que uma promessa que desabrocha uma materialidade potencial que a associa a toda uma série de gestos e realidades sociais que não deixam de estar ligadas a um imaginário infantil, coleccionista, obsessivo, que não estaria previsto nas próprias leituras. Não sendo Fresnault-Deruelle um hagiógrafo (ou apenas em parte) de Hergé, há aqui como que uma aproximação mais popular à obra.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos volumes.

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