31 de dezembro de 2014

Quadradinhos e Crumbs. AAVV (Chili Com Carne/Kingpin)

Tal como em casos anteriores de leituras “gémeas”, gostaríamos de ler estas duas antologias lado a lado, não como forma de as confundir ou comparar na direcção de uma criação de hierarquias, mas esperando somente que a sua colação possa despertar e revelar linhas de interpretação mais sólidas e argumentadas.

E com estes dois "ramalhetes", ficam os votos de um bom 2015. (Mais)

Em primeiro lugar, é de notar como ambas as antologias são projectos mais ou menos directamente associados à ideia de projecção internacional. Quadradinhos foi criado no seio do Festival de Treviso: sendo uma publicação da Chili Com Carne, é uma espécie de projecto-companheiro da exposição dedicada aos autores portugueses naquele Festival, a propósito de Portugal ser o país convidado. E a responsabilidade editorial (desde as escolhas, ao design, impressão, etc.) estava nas mãos dos organizadores italianos. Crumbs, sendo fruto da vontade editorial da Kingpin, tinha no festival de Leeds a plataforma ideal do seu lançamento oficial e divulgação “fora de portas”. Daí que se justifiquem as suas escolhas linguísticas respectivas: a primeira publicação é em italiano (com tradução em inglês nas badanas extraordinárias), a segunda exclusivamente em inglês. De resto, esta é uma estratégia bastamente comum numa série de editoras habituadas ao circuito internacional, como a Chili Com Carne no caso português.

Em segundo lugar, é necessário entender que nenhuma delas pretende ser uma representação “oficial”, a criação de um “ar português”, como alguns projectos anteriores (Perdidos no Oceano, para Angoulême, por exemplo, em 1998), mas antes um gesto assinado, isto é, em que uma visão editorial particular é assumida e deve iluminar não apenas as escolhas em si, mas o modo como são articuladas entre si e dirigem o objecto. Nada, todavia, diferente do trabalho aturado que ambos os editores fazem logo à partida em cada gesto, cada qual com instrumentos e/ou direcções bem distintas, ainda que seja totalmente artificial chamá-las de “opostas”. Não obstante, não é nenhum disparate ver num dos gestos uma tentativa em contribuir para a criação de ficções para um público mais alargado (Crumbs) e outro respondendo a um pedido particular (já que Quadradinhos, em muitos aspectos, não reflecte de modo holístico a visão particular da CCC).

Em todo o caso, e em suma, não deixa de ser curioso que haja em ambos os casos uma claríssima política de disseminação “directa”, isto é, a intervenção dos editores no fornecimento de material “nacional” composto para mercados internacionais (a CCC com mais experiência nesse campo), o que revela uma dimensão fortíssima da sua importância, por oposição a todos os agentes que para isso deviam ou podiam trabalhar: agentes estrangeiros, é certo, cuja capacidade de abertura é extremamente limitada (compreenda-se ou não as razões dessa limitação), mas também os nacionais, desde agentes do livro a instituições supostamente especializadas, passando mesmo pelos ditos editores maiores. Dito isto, a entrada em Itália é acompanhada de outras iniciativas, como a edição italiana de Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher dos meus sonhos, de Pedro Brito e João Fazenda, Airbag, de Pedro Burgos, e um projectado segundo volume deste último autor. Tudo edições com apoio financeiro-institucional da parte portuguesa.

Não deixa de ser curioso, portanto, e se aceitarmos uma certa polarização que cada vez faz menos sentido, e que em nada justifica a por demais sentida “cegueira” aspectual de certos sectores da divulgação (abstemo-nos de lhe chamar crítica, na ausência de argumentação e critérios inter-subjectivos, já que os poucos críticos que existem são capazes de contextualizar alargadamente cada projecto e sopesam todos os sectores) da banda desenhada portuguesa em relação aos territórios “opostos”, mas repetimos, não deixa de ser curioso ver estes dois pólos, digamos assim, a criarem objectos de fitos relativamente idênticos.

Mas penetremos nos seus materiais, como se partilhassem uma mesma capa. Que escolhas são estas? Existem histórias que se revestem de uma abordagem mais convencional, no sentido de serem uma história sem rodeios. Isto é, apresentam uma situação, colocam personagens prontas a exercer acções em torno dela, e apresenta-se uma clara resolução no final. Nesse campo encontraremos os trabalhos de Nuno Duarte, com Osvaldo Medina e Ricardo Venâncio, Pedro Cruz (Crumbs), mas também de Paulo Allor e Jorge Coelho, André Oliveira e Joana Afonso, e Afonso Ferreira (Quadradinhos). Depois temos aquelas que exploram antes vozes mais idiossincráticas, como se escutássemos um monólogo interior que dá acesso a memórias e experiências das personagens: é aí que agregaríamos André Oliveira e André Caetano, e as histórias de Francisco Sousa Lobo em ambas as antologias. Há ainda as experiências fora de categorias mais imediatas: João Fazenda mostrando uma cena de um quotidiano angustiado e dubitável, Manuel Neto e Jorge Coelho provocando desacertos entre material encontrado e uma forma de organização textual, Zé Burnay apresentando um breve exercício de um teaser, David Soares e Pedro Serpa (cujos lápis e grafites procuram dar uma prestação diversa do que até agora apresentou) abrindo mais um capítulo à escrita tétrica, oclusa, e simbólica de Soares, que obriga a uma paciente tarefa de decifração.

Esta distribuição é relativamente equilibrada, mas se encontramos histórias mais convencionais em Crumbs – assinalando, de certa forma, uma estratégia editorial clara -, é também nessa antologia que encontramos material menos conseguido quer em termos narrativos quer em termos visuais. Isto é, nem sempre o convencional, o imediato e o legível são significado de “bem estruturado”. E se há casos de bandas desenhadas menos alinhadas com as pesquisas de investigação formal e narrativa mais usuais do catálogo da Chili Com Carne em Quadradinhos (como é o caso da prestação de Nuno Saraiva, de André Oliveira e Joana Afonso, particularmente “delicodoce” na restante companhia, a de Coelho e Allor – digna de uma antologia qualquer da Dark Horse ou da Boom Studios, por exemplo), elas não destoam de forma alguma em relação à “embaixada” proposta pelo comissário da exposição em Treviso, Alberto Corradi. Nesse sentido, e ainda defendendo não se tratar de uma representação “oficializante”, Corradi apresenta uma breve história da banda desenhada portuguesa, suficientemente competente para a introduzir aos leitores italianos, atenta a várias frentes diferenciadas. Por seu lado, Marcos Farrajota providencia uma apresentação, como de costume muito sui generis, da cena actual, e também ela justa.

Aliás, o editor português não apenas sublinha que as suas escolhas pessoais seriam diversas como qualquer escolha seria sempre diferente. E é precisamente essa a força de toda e qualquer antologia (e até o seu sentido etimológico, como já assinalámos bastas vezes em títulos anteriormente lidos neste espaço), mas que deve ser lida em confronto precisamente com o seu espaço circunstancial, assim como com outras antologias. Ora tendo em conta o longo historial e as variadíssimas experiências da Chili Com Carne com antologias, nacionais e internacionais, temáticas ou livres, subsumidas a um programa específico ou não, etc., e quer através da visão do seu editor principal quer através de decisões mais colegiais (recordemos a Mutate & Survive, a Zona de Desconforto, a Mesinha de Cabeceira no. 23, e apenas para citar três dos mais importantes gestos antológicos na banda desenhada portuguesa contemporânea), é relativamente clara a opção em deixar as escolhas a uma outra pessoa assim como ao alargadíssimo leque de opções possíveis que se poderia perseguir.

Ambos os livros têm tanto material inédito, criado de propósito para estas antologias como histórias já antes preparadas mas que não tinham poiso, como trabalhos “recuperados”. No caso de Quadradinhos, a incidência de trabalho pré-existente é maior, uma vez que responde a um desafio “externo” ao gesto editorial, por assim dizer. Por exemplo, o trabalho de Nuno Saraiva é material provindo da sua prestação regular no Sol, as histórias de Pedro Burgos são as que alimentaram o JA, a de André Oliveira e Joana Afonso havia saído na revista Cais, a de Abranches no último Mesinha de Cabeceira (ainda que agora com uma segunda cor). Em Crumbs, onde o esforço do editor Mário Freitas, com ajuda de André Oliveira, incidiu sobre trabalho original, convidando-se os autores a responder ao desafio editorial mais centrado e dirigido, apenas apontaremos a história de Bernardo Majer sobre argumento de Ana Matia, a qual, sendo inédita, havia sido apresentada no concurso do Festival da Amadora, onde arrebatou sem grandes dúvidas o primeiro prémio em 2012. Por outro lado, os autores participantes também procuraram divulgar o seu trabalho de modos diferentes: Ana Biscaia e Mésseder publicaram a sua história numa publicação de que demos conta aqui, e Rudolfo incluiu a sua pequena história na Molly.

Inevitavelmente, haverá intensidades ou inclinações do momento que levam sempre a preferências ou pelo menos a entendimentos de forças específicas a actuar no trabalho dos autores. O trabalho de Jorge Coelho, na sua colaboração com Paul Allor, encontra-se num ponto de grande perfeição dos seus instrumentos, mas ao serviço de uma história relativamente formulaica e que emprega muitos ingredientes clássicos, à la Lovecraft de 3º geração. A colaboração de Oliveira e Caetano é visualmente sólida, mas faz desejar (e não falta pouco, temos de aguardar pacientemente) um trabalho de maior fôlego. Ambas as histórias escritas por Nuno Duarte são absolutamente bem estruturadas, mas algo desinspiradas, e optando por alguns atalhos e clichés menos elegantes. E se Afonso Ferreira é capaz de criar, e até de modo rápido (vejam-se as suas duas últimas publicações pela El Pep), alucinações e devaneios gráficos divertidos, a sua prestação em Quadradinhos perde-se num acto de violência algo gratuita.

No entanto, não deixa de haver escolhas que são conducentes de uma visão editorial bem distinta, sobretudo em Crumbs, onde inevitavelmente há uma preferência por autores que ou já trabalharam ou trabalharão no catálogo da casa. O mesmo ocorre nas experiências de Quadradinhos, é certo, como nos projectos da Chili, mas no primeiro caso há clara e deliberadamente uma estratégica de comunicação e marketing concertado, expectável e bem estruturado. Isso não significa que não haja “trânsitos” felizes entre um “território” e outro, e são esses trânsitos – fruto do trabalho dos próprios autores e/ou dos editores – que demonstram a artificialidade das divisões, mesmo que elas ajudem a uma cartografia de instrumentos expressivos, escolhas genéricas, e estratégias de investigação formal e artística.

Repare-se como mesmo escolhendo-se um mesmo artista, como Francisco Sousa Lobo, e sem que este desvirtue o seu programa contínuo – a nosso ver, como Edmond Baudoin, Marco Mendes, e outros autores, Lobo pode criar várias peças, algumas autobiográficas, outras fictícias, outras misturando essas duas linhas, algumas curtas e outras mais alongadas, e nas mais variadas formas possíveis, mas todas elas encaixando-se entre si numa espécie de linha de investigação coesa -, há uma claríssima opção em criar uma peça mais concentrada num episódio claro e distinto da sua infância com “The Green Pool”, em Crumbs, ao passo que “Long Live the Silver Skates” já se abre a maiores complicações que têm a ver com métodos de trabalho, obsessões artísticas, valências filosóficas das suas opções em misturar um tom confessional com um de ensaio artístico, etc. Em termos gerais, poder-se-á dizer que a esmagadora das histórias de Crumbs são, afinal, “legíveis”, da classe das “histórias”, “narrativas”, que levem a uma leitura suave e descomplicada. A tal “ficção universal”.

Nenhuma das antologias se pode arrogar, como é de esperar, de ser “a melhor”, “a última palavra”, “definitiva”, etc. Essa é precisamente a prerrogativa de uma antologia de autores contemporâneos, é um retrato, uma captura momentânea de um estado, o qual por definição se encontra num contínuo mutável maior. Sendo criadas para dois contextos totalmente distintos – no caso de Quadradrinhos, servindo de “catálogo” da exposição dos autores portugueses que serviam de representação do país-convidado do Festival de Treviso, no caso de Crumbs como uma pequena antologia que servirá de cartão de apresentação em vários festivais internacionais -, e sendo as escolhas em si presididas por duas visões diferentes – no caso da primeira, pelo director do festival, ou seja, um “forasteiro” com um bom conhecimento do nosso panorama mas inclinando-se sobre ele de forma “desinteressada”, no caso da segunda pelo editor da Kingpin que inevitavelmente encontrará no “seu” catálogo as razões das suas apostas -, os resultados seriam igualmente divergentes. O que é curioso, porém, é precisamente encontrar grandes linhas de força idênticas, para além da coincidência de alguns autores, que na verdade nos parece ser um assunto de somenos importância.

Qualquer antologia é sempre uma “necessidade de balanço”, de tomada de pulso ao momento, ao tal estado (sempre transitório, entre tantos outros possíveis). Pode é por vezes ser mais próximo de um gesto editorial acabado e capaz de perdurar enquanto projecção do futuro. Mas sobre o futuro, só resta esperar. É possível que Crumbs se repita, e com a esperada antologia portuguesa na Kus!, e um projecto há muito falado de Beja, continuarão a ser estas plataformas independentes a esforçar-se pela projecção internacional da banda desenhada contemporânea portuguesa. Sempre de formas diversas, mas todas elas válidas e eficazes.

Gostaríamos de terminar com duas pequenas notas. No Quadradinhos houve um pequeno episódio curioso, mas que precisaria de um melhor enquadramento e até mesmo entrevistas, de todas as partes envolvidas, para se compreender. Pepe Delrey havia proposto uma história que tecia comentários sobre o estado actual da política portuguesa, e as suas implicações económicas e sociais. Por razões de vária ordem, foi convidado a apresentar outra peça, que é a que foi publicada: nesta, duas personagens parecem digladiar-se com histórias bem diferentes, representadas por balões de fala preenchidos a negro retinto e outro com floreados que alteram as molduras das vinhetas e da prancha... mas este “delicodoce” perde o embate, e até se poderia lê-la, à história publicada, como uma espécie de comentário meta-textual à experiência primeira, vetada... (para ler essa história e procurar mais informação, ver aqui).

Uma última palavra sobre os formatos. Quadradinhos opta por um formato mais convencional, de livro, com menos de 90 páginas. A impressão é num papel couché pouco feliz, e a impressão nalgumas páginas deixa algo a desejar. O design está algo distante do rigor, elegância e até tactilidade dos últimos volumes da editora, sobretudo ás mãos de Joana Pires. Ainda assim, algumas páginas são gloriosas (as de Nuno Saraiva e as de André Coelho, cada qual num “extremo” visual). Crumbs tem um formato simpático, pequeno, quase de manual, que ficará bem ao lado dos volumes grossos da Kus!, da última Mesinha de Cabeceira, e outras experiências. A impressão, design e acabamentos do livro são também soberbos, com um único senão aos quase imperdoáveis separadores, apresentando os autores de forma pouco discreta e quase egomaníaca.

Nota final: agradecimentos à Chili Com Carne, pela oferta do Quadradinhos.  

2 comentários:

  1. Sem hierarquizar, o Quadradinhos beneficia de uma pool de autores experientes e uma selecção de obras consumadas, onde Crumbs arrisca peças delegadas e novos autores, e paga o respectivo preço – é de resto onde o Quadradinhos também revela uma maior fragilidade.

    Piadas fáceis, provocações desnecessárias e plug descarado ao Crumbs aqui: http://www.ospositivos.com/2014/12/crumbs.html

    Quadradinhos: a breve estória de Corradi da bd portuguesa é realmente competente na sua brevidade, mas não passa de cliff notes. O texto do Farrajota, sui genesis que seja, é um miss que poderia ter assumido maior relevância - considerando o chancela de edição, prerrogativa de quem paga as contas? :)

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  2. Gostei bastante de ambas as antologias, apesar de ser pena o Quadradinhos ter tanto material reciclado. Já quando aos textos do Quadradinhos, se o texto publicitário do Marcos Farrajota não me surpreendeu, confesso que esperava bem mais da Breve História da BD portuguesa de Corradi. Entre outras falhas menos graves, ignora ostensivamente o trabalho de José Carlos Fernandes que é um dos mais importantes e produtivos autores nacionais de finais do século XX e inícios do Século XXI e, a seguir a Paulo Monteiro, o que está mais divulgado a nível internacional, sendo o único autor nacional a ter direito a exposições individuais no Museu de BD de Angoulême e no CBBD, de Bruxelas.

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