Tal como em casos anteriores de leituras “gémeas”, gostaríamos
de ler estas duas antologias lado a lado, não como forma de as confundir ou
comparar na direcção de uma criação
de hierarquias, mas esperando somente que a sua colação possa despertar e
revelar linhas de interpretação mais sólidas e argumentadas.
E com estes dois "ramalhetes", ficam os votos de um bom 2015. (Mais)
E com estes dois "ramalhetes", ficam os votos de um bom 2015. (Mais)
Em primeiro lugar, é de notar como ambas as antologias são
projectos mais ou menos directamente associados à ideia de projecção internacional.
Quadradinhos foi criado no seio do
Festival de Treviso: sendo uma publicação da Chili Com Carne, é uma espécie de
projecto-companheiro da exposição dedicada aos autores portugueses naquele
Festival, a propósito de Portugal ser o país convidado. E a responsabilidade
editorial (desde as escolhas, ao design, impressão, etc.) estava nas mãos dos
organizadores italianos. Crumbs,
sendo fruto da vontade editorial da Kingpin, tinha no festival de Leeds a
plataforma ideal do seu lançamento oficial e divulgação “fora de portas”. Daí
que se justifiquem as suas escolhas linguísticas respectivas: a primeira
publicação é em italiano (com tradução em inglês nas badanas extraordinárias),
a segunda exclusivamente em inglês. De resto, esta é uma estratégia bastamente
comum numa série de editoras habituadas ao circuito internacional, como a Chili
Com Carne no caso português.
Em segundo lugar, é necessário entender que nenhuma delas
pretende ser uma representação “oficial”, a criação de um “ar português”, como
alguns projectos anteriores (Perdidos no
Oceano, para Angoulême, por exemplo, em 1998), mas antes um gesto assinado, isto é, em que uma visão
editorial particular é assumida e deve iluminar não apenas as escolhas em si,
mas o modo como são articuladas entre si e dirigem o objecto. Nada, todavia,
diferente do trabalho aturado que ambos os editores fazem logo à partida em
cada gesto, cada qual com instrumentos e/ou direcções bem distintas, ainda que
seja totalmente artificial chamá-las de “opostas”. Não obstante, não é nenhum
disparate ver num dos gestos uma tentativa em contribuir para a criação de
ficções para um público mais alargado (Crumbs)
e outro respondendo a um pedido particular (já que Quadradinhos, em muitos aspectos, não reflecte de modo holístico a
visão particular da CCC).
Em todo o caso, e em suma, não deixa
de ser curioso que haja em ambos os casos uma claríssima política de disseminação
“directa”, isto é, a intervenção dos editores no fornecimento de material
“nacional” composto para mercados internacionais (a CCC com mais experiência
nesse campo), o que revela uma dimensão fortíssima da sua importância, por
oposição a todos os agentes que para isso deviam ou podiam trabalhar: agentes
estrangeiros, é certo, cuja capacidade de abertura é extremamente limitada
(compreenda-se ou não as razões dessa limitação), mas também os nacionais,
desde agentes do livro a instituições supostamente especializadas, passando
mesmo pelos ditos editores maiores. Dito isto, a entrada em Itália é
acompanhada de outras iniciativas, como a edição italiana de Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher
dos meus sonhos, de Pedro Brito e João Fazenda, Airbag, de Pedro Burgos, e um projectado segundo volume deste último
autor. Tudo edições com apoio financeiro-institucional da parte portuguesa.
Não deixa de ser curioso, portanto, e se aceitarmos uma certa
polarização que cada vez faz menos sentido, e que em nada justifica a por
demais sentida “cegueira” aspectual de certos sectores da divulgação
(abstemo-nos de lhe chamar crítica,
na ausência de argumentação e critérios inter-subjectivos, já que os poucos
críticos que existem são capazes de contextualizar alargadamente cada projecto
e sopesam todos os sectores) da banda desenhada portuguesa em relação aos
territórios “opostos”, mas repetimos, não deixa de ser curioso ver estes dois
pólos, digamos assim, a criarem objectos de fitos relativamente idênticos.
Mas penetremos nos seus materiais, como se partilhassem uma
mesma capa. Que escolhas são estas? Existem histórias que se revestem de uma
abordagem mais convencional, no sentido de serem uma história sem rodeios. Isto
é, apresentam uma situação, colocam personagens prontas a exercer acções em
torno dela, e apresenta-se uma clara resolução no final. Nesse campo
encontraremos os trabalhos de Nuno Duarte, com Osvaldo Medina e Ricardo
Venâncio, Pedro Cruz (Crumbs), mas
também de Paulo Allor e Jorge Coelho, André Oliveira e Joana Afonso, e Afonso
Ferreira (Quadradinhos). Depois temos
aquelas que exploram antes vozes mais idiossincráticas, como se escutássemos um
monólogo interior que dá acesso a memórias e experiências das personagens: é aí
que agregaríamos André Oliveira e André Caetano, e as histórias de Francisco
Sousa Lobo em ambas as antologias. Há ainda as experiências fora de categorias
mais imediatas: João Fazenda mostrando uma cena de um quotidiano angustiado e
dubitável, Manuel Neto e Jorge Coelho provocando desacertos entre material
encontrado e uma forma de organização textual, Zé Burnay apresentando um breve
exercício de um teaser, David Soares e Pedro Serpa (cujos lápis e
grafites procuram dar uma prestação diversa do que até agora apresentou)
abrindo mais um capítulo à escrita tétrica, oclusa, e simbólica de Soares, que
obriga a uma paciente tarefa de decifração.
Esta distribuição é relativamente equilibrada, mas se
encontramos histórias mais convencionais em Crumbs
– assinalando, de certa forma, uma estratégia editorial clara -, é também nessa
antologia que encontramos material menos conseguido quer em termos narrativos
quer em termos visuais. Isto é, nem sempre o convencional, o imediato e o legível
são significado de “bem estruturado”. E se há casos de bandas desenhadas menos
alinhadas com as pesquisas de investigação formal e narrativa mais usuais do
catálogo da Chili Com Carne em Quadradinhos (como é o caso da prestação
de Nuno Saraiva, de André Oliveira e Joana Afonso, particularmente “delicodoce”
na restante companhia, a de Coelho e Allor – digna de uma antologia qualquer da
Dark Horse ou da Boom Studios, por exemplo), elas não destoam de forma alguma
em relação à “embaixada” proposta pelo comissário da exposição em Treviso,
Alberto Corradi. Nesse sentido, e ainda defendendo não se tratar de uma
representação “oficializante”, Corradi apresenta uma breve história da banda
desenhada portuguesa, suficientemente competente para a introduzir aos leitores
italianos, atenta a várias frentes diferenciadas. Por seu lado, Marcos Farrajota
providencia uma apresentação, como de costume muito sui generis, da cena actual, e também ela justa.
Aliás, o editor português não apenas sublinha que as suas
escolhas pessoais seriam diversas como qualquer escolha seria sempre diferente.
E é precisamente essa a força de toda e qualquer antologia (e até o seu sentido etimológico, como já assinalámos bastas vezes em títulos anteriormente lidos
neste espaço), mas que deve ser lida em confronto precisamente com o seu espaço
circunstancial, assim como com outras antologias. Ora tendo em conta o longo
historial e as variadíssimas experiências da Chili Com Carne com antologias,
nacionais e internacionais, temáticas ou livres, subsumidas a um programa
específico ou não, etc., e quer através da visão do seu editor principal quer
através de decisões mais colegiais (recordemos a Mutate & Survive, a
Zona de Desconforto, a Mesinha de Cabeceira no. 23, e apenas para
citar três dos mais importantes gestos antológicos na banda desenhada
portuguesa contemporânea), é relativamente clara a opção em deixar as escolhas
a uma outra pessoa assim como ao alargadíssimo leque de opções possíveis que se
poderia perseguir.
Ambos os livros têm tanto material inédito, criado de
propósito para estas antologias como histórias já antes preparadas mas que não
tinham poiso, como trabalhos “recuperados”. No caso de Quadradinhos, a
incidência de trabalho pré-existente é maior, uma vez que responde a um desafio
“externo” ao gesto editorial, por assim dizer. Por exemplo, o trabalho de Nuno
Saraiva é material provindo da sua prestação regular no Sol, as
histórias de Pedro Burgos são as que alimentaram o JA, a de André
Oliveira e Joana Afonso havia saído na revista Cais, a de Abranches no
último Mesinha de Cabeceira (ainda que agora com uma segunda cor). Em Crumbs,
onde o esforço do editor Mário Freitas, com ajuda de André Oliveira, incidiu
sobre trabalho original, convidando-se os autores a responder ao desafio
editorial mais centrado e dirigido, apenas apontaremos a história de Bernardo
Majer sobre argumento de Ana Matia, a qual, sendo inédita, havia sido
apresentada no concurso do Festival da Amadora, onde arrebatou sem grandes
dúvidas o primeiro prémio em 2012. Por outro lado, os autores participantes também
procuraram divulgar o seu trabalho de modos diferentes: Ana Biscaia e Mésseder publicaram
a sua história numa publicação de que demos conta aqui, e Rudolfo incluiu a sua
pequena história na Molly.
Inevitavelmente, haverá intensidades ou inclinações do momento
que levam sempre a preferências ou pelo menos a entendimentos de forças
específicas a actuar no trabalho dos autores. O trabalho de Jorge Coelho, na
sua colaboração com Paul Allor, encontra-se num ponto de grande perfeição dos
seus instrumentos, mas ao serviço de uma história relativamente formulaica e
que emprega muitos ingredientes clássicos, à la Lovecraft de 3º geração. A
colaboração de Oliveira e Caetano é visualmente sólida, mas faz desejar (e não
falta pouco, temos de aguardar pacientemente) um trabalho de maior fôlego.
Ambas as histórias escritas por Nuno Duarte são absolutamente bem estruturadas,
mas algo desinspiradas, e optando por alguns atalhos e clichés menos elegantes.
E se Afonso Ferreira é capaz de criar, e até de modo rápido (vejam-se as suas
duas últimas publicações pela El Pep), alucinações e devaneios gráficos
divertidos, a sua prestação em Quadradinhos
perde-se num acto de violência algo gratuita.
No entanto, não deixa de haver escolhas que são conducentes de
uma visão editorial bem distinta, sobretudo em Crumbs, onde inevitavelmente há uma preferência por autores que ou
já trabalharam ou trabalharão no catálogo da casa. O mesmo ocorre nas
experiências de Quadradinhos, é
certo, como nos projectos da Chili, mas no primeiro caso há clara e deliberadamente
uma estratégica de comunicação e marketing concertado, expectável e bem
estruturado. Isso não significa que não haja “trânsitos” felizes entre um
“território” e outro, e são esses trânsitos – fruto do trabalho dos próprios
autores e/ou dos editores – que demonstram a artificialidade das divisões,
mesmo que elas ajudem a uma cartografia de instrumentos expressivos, escolhas
genéricas, e estratégias de investigação formal e artística.
Repare-se como mesmo escolhendo-se um mesmo artista, como
Francisco Sousa Lobo, e sem que este desvirtue o seu programa contínuo – a
nosso ver, como Edmond Baudoin, Marco Mendes, e outros autores, Lobo pode criar
várias peças, algumas autobiográficas, outras fictícias, outras misturando
essas duas linhas, algumas curtas e outras mais alongadas, e nas mais variadas
formas possíveis, mas todas elas encaixando-se entre si numa espécie de linha
de investigação coesa -, há uma claríssima opção em criar uma peça mais
concentrada num episódio claro e distinto da sua infância com “The Green Pool”,
em Crumbs, ao passo que “Long Live the Silver Skates” já se abre a
maiores complicações que têm a ver com métodos de trabalho, obsessões
artísticas, valências filosóficas das suas opções em misturar um tom confessional
com um de ensaio artístico, etc. Em termos gerais, poder-se-á dizer que a
esmagadora das histórias de Crumbs são, afinal, “legíveis”, da classe
das “histórias”, “narrativas”, que levem a uma leitura suave e descomplicada. A
tal “ficção universal”.
Nenhuma das antologias se pode arrogar, como é de esperar, de
ser “a melhor”, “a última palavra”, “definitiva”, etc. Essa é precisamente a
prerrogativa de uma antologia de autores contemporâneos, é um retrato, uma
captura momentânea de um estado, o qual por definição se encontra num contínuo
mutável maior. Sendo criadas para dois contextos totalmente distintos – no caso
de Quadradrinhos, servindo de
“catálogo” da exposição dos autores portugueses que serviam de representação do
país-convidado do Festival de Treviso, no caso de Crumbs como uma pequena antologia que servirá de cartão de
apresentação em vários festivais internacionais -, e sendo as escolhas em si
presididas por duas visões diferentes – no caso da primeira, pelo director do
festival, ou seja, um “forasteiro” com um bom conhecimento do nosso panorama
mas inclinando-se sobre ele de forma “desinteressada”, no caso da segunda pelo
editor da Kingpin que inevitavelmente encontrará no “seu” catálogo as razões
das suas apostas -, os resultados seriam igualmente divergentes. O que é
curioso, porém, é precisamente encontrar grandes linhas de força idênticas,
para além da coincidência de alguns autores, que na verdade nos parece ser um
assunto de somenos importância.
Qualquer antologia é sempre uma “necessidade de balanço”, de
tomada de pulso ao momento, ao tal estado (sempre transitório, entre tantos
outros possíveis). Pode é por vezes ser mais próximo de um gesto editorial
acabado e capaz de perdurar enquanto projecção do futuro. Mas sobre o futuro,
só resta esperar. É possível que Crumbs
se repita, e com a esperada antologia portuguesa na Kus!, e um projecto há
muito falado de Beja, continuarão a ser estas plataformas independentes a esforçar-se
pela projecção internacional da banda desenhada contemporânea portuguesa.
Sempre de formas diversas, mas todas elas válidas e eficazes.
Gostaríamos de terminar com duas pequenas notas. No Quadradinhos houve um pequeno episódio
curioso, mas que precisaria de um melhor enquadramento e até mesmo entrevistas,
de todas as partes envolvidas, para se compreender. Pepe Delrey havia proposto
uma história que tecia comentários sobre o estado actual da política
portuguesa, e as suas implicações económicas e sociais. Por razões de vária
ordem, foi convidado a apresentar outra peça, que é a que foi publicada: nesta,
duas personagens parecem digladiar-se com histórias bem diferentes,
representadas por balões de fala preenchidos a negro retinto e outro com
floreados que alteram as molduras das vinhetas e da prancha... mas este
“delicodoce” perde o embate, e até se poderia lê-la, à história publicada, como
uma espécie de comentário meta-textual à experiência primeira, vetada... (para ler essa história e procurar mais informação, ver aqui).
Uma última palavra sobre os formatos. Quadradinhos opta
por um formato mais convencional, de livro, com menos de 90 páginas. A
impressão é num papel couché pouco feliz, e a impressão nalgumas páginas deixa
algo a desejar. O design está algo distante do rigor, elegância e até
tactilidade dos últimos volumes da editora, sobretudo ás mãos de Joana Pires. Ainda
assim, algumas páginas são gloriosas (as de Nuno Saraiva e as de André Coelho,
cada qual num “extremo” visual). Crumbs
tem um formato simpático, pequeno, quase de manual, que ficará bem ao lado dos
volumes grossos da Kus!, da última Mesinha
de Cabeceira, e outras experiências. A impressão, design e acabamentos do livro são também soberbos, com um único
senão aos quase imperdoáveis separadores, apresentando os autores de forma pouco
discreta e quase egomaníaca.
Nota final: agradecimentos à Chili Com Carne, pela oferta do Quadradinhos.
Sem hierarquizar, o Quadradinhos beneficia de uma pool de autores experientes e uma selecção de obras consumadas, onde Crumbs arrisca peças delegadas e novos autores, e paga o respectivo preço – é de resto onde o Quadradinhos também revela uma maior fragilidade.
ResponderEliminarPiadas fáceis, provocações desnecessárias e plug descarado ao Crumbs aqui: http://www.ospositivos.com/2014/12/crumbs.html
Quadradinhos: a breve estória de Corradi da bd portuguesa é realmente competente na sua brevidade, mas não passa de cliff notes. O texto do Farrajota, sui genesis que seja, é um miss que poderia ter assumido maior relevância - considerando o chancela de edição, prerrogativa de quem paga as contas? :)
Gostei bastante de ambas as antologias, apesar de ser pena o Quadradinhos ter tanto material reciclado. Já quando aos textos do Quadradinhos, se o texto publicitário do Marcos Farrajota não me surpreendeu, confesso que esperava bem mais da Breve História da BD portuguesa de Corradi. Entre outras falhas menos graves, ignora ostensivamente o trabalho de José Carlos Fernandes que é um dos mais importantes e produtivos autores nacionais de finais do século XX e inícios do Século XXI e, a seguir a Paulo Monteiro, o que está mais divulgado a nível internacional, sendo o único autor nacional a ter direito a exposições individuais no Museu de BD de Angoulême e no CBBD, de Bruxelas.
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