3 de janeiro de 2015

The Cigar That Fell in Love With a Pipe. David Camus e Nick Abadzis (Self-Made Hero)

Misturando factos históricos e personagens reais com uma linha de desenvolvimento de pura fantasia, digna de um conto de fadas, e um gigantesco e profundo veio romântico informando toda esse concerto, The Cigar That Fell in Love With a Pipe conta a história de Conchita Marquez, supostamente a mais famosa torcedora, isto é, fazedora de charutos, da companhia Pinar del Rio, cadinho dos mais famosos, caros, procurados e saborosos charutos cubanos (para os aficionados, evidentemente). (Mais)
Todavia, desenganem-se de se tratar de uma biografia. Ou, enfim, não é somente isso, e nem sequer Conchita é uma personagem real (ou não nos parece ser, pelo menos), apesar dos seus passos se cruzarem com Orson Welles e Rita Hayworth. A acção começa precisamente com o realizador recebendo uma caixa de 25 charutos Puros Cubanos de um remetente anónimo, para celebrar a estreia de A Dama de Shangai (estamos portanto em 1948). Welles, conhecedor de bom tabaco e coleccionador de toda a parafernália que lhe está associada, desvenda quase de imediato – na verdade, depois de fumar 22 charutos numa só noite -, qual a origem, não apenas do país, cidade e fábrica, mas de quem moldou os charutos. Um desvendamento, aqui mostrado através do texto, mas não de escolhas visuais, pelos sentidos, numa bela descrição: “Os charutos eram levemente oleosos e moles ao toque – cobertos com uma fina camada de bolor branco, quase como pó”, diz o narrador. E Orson acrescenta: “Rico e encorpado… Um aroma picante, inebriante, sem qualquer laivo de agressividade, enche as narinas com um perfume doce…. Do suor de uma mulher gorda!” É assim que o realizador chega à conclusão de que tem nas mãos os últimos charutos enrolados por Conchita Marquez. E, através da sua introdução e de uma belas baforadas de fumo espesso dos charutos, dá-se início à história dessa mulher.  


O livro passa então para outro nível da narrativa, e reconta a biografia desta mulher, a sua luta contra a pobreza, o trabalho nas fábricas de charutos, o seu casamento com o dono da fábrica, por mero interesse económico deste (garantindo uma “empregada” fiel e gratuita)… Mas como o tom da história tivera início como uma história de fábulas (“Era uma vez…”, já para não falar do título) rapidamente entramos num ambiente feérico, digno da Gata Borralheira. Conchita misteriosamente contrai uma doença de alergia ao tabaco, o que a obriga a viajar de barco para a Suíça. Durante essa viagem, ela conhece, pela primeira vez, o que significa o verdadeiro amor, apaixonando-se por um pobre marinheiro endividado, um norte-americano que fuma tabaco barato, mas cubano!, em cachimbos que ele próprio esculpe. Este homem rejeita o interesse de Conchita e separam-se em vida para sempre. Conchita não chega sequer em vida ao seu destino hospitalar, e a sua alma acaba depositada no último charuto que enrolou na viagem, parte dos 25 que acabam numa caixa. Esta passará pelas mãos do marujo, que finalmente se apercebe do significado do amor que lhe fora dirigido. Todavia, antes que possa de alguma forma deliciar-se com essa após a morte, ele próprio acaba por morrer e, por sua vez, a sua alma enovela-se com o seu último cachimbo.

O grau de fábula e de serendipidade da novela continuarão, ao ponto de colocarem a caixa, como vimos, mas também o cachimbo, nas mãos de Orson Welles, a quem as almas revelam esse amor pós-tumular. Porém, apesar dele compreender e querer mesmo defender e permitir que esse amor pudesse continuar de forma mágica, as últimas páginas fazem com que o embate e a tensão entre ele e a sua mulher, Rita Hayworth, levem a um final trágico para os amantes fantásticos que se amam sob a forma de fumo.

Não se trata de realismo mágico aqui, mas sim de um mergulho de cabeça no mundo do maravilhoso, das fábulas. Ninguém se encanta com os acontecimentos, que para todos os efeitos têm o efeito de real no interior da narrativa: as aparições das almas, os pedidos que entregam, os desejos confessados e buscados pelos adjuvantes. Mas tudo flui como se fosse a mais natural das consequências dos acontecimentos humanos. Isto incute uma certa dimensionalidade plana a toda a narrativa, como é típico das histórias de fadas, onde é menos importante um desenvolvimento psicológico, ou uma reflexão complexa sobre as verdadeiras emoções humanas ou a condição das vidas reais, do que uma simples intriga que espelhe uma dimensão, mesmo que simples, sonhada, diáfana, leve, do ser humano. E é isso o que The Cigar That Fell In Love With a Pipe é, e pouco mais. Como diz o próprio Orson Welles, “pipe dreams”, mas porque não alimentá-los de quando em vez?

A voz que nos conta esta fábula pertence a um narrador omnisciente e externo, mas o qual parece ter um estranho acesso demiúrgico ao diálogo com as personagens. Isto é, não há propriamente uma total separação entre os níveis narrativos, uma vez que as personagens, de quando em quando tecem comentários ou ripostam em relação a algo “dito” pelo narrador. A menos que a entendamos como sendo uma projecção ou continuidade da do próprio Welles. No entanto, isto provoca menos um efeito metaléptico ou confuso do que aumenta o grau de fábula de toda a narrativa.

Não deixam de existir alguns desequilíbrios. Mesmo não conhecendo a vida íntima do casal Orson Welles e Rita Hayworth, num casamento atribulado que durou poucos anos, o foco de admiração de toda esta obra está centrado no primeiro, apesar de não seremos testemunhas de quaisquer acções ou sentimentos que nos permitam “arredondar” a personagem. Isto é, Orson surge aqui apenas como pivot da narrativa, a tal voz externa, e como fumador inveterado dos charutos que lhe foram enviados. Por seu turno, Rita acaba por surgir apenas como uma mulher levada pelas suas emoções “descontroladas”, e é representada como uma personagem egoísta, ensimesmada, vaidosa e vingativa, o que leva a uma representação desequilibrada dos sexos. Espelho dos valores em voga na década representada? “Homenagem” ao que testemunhamos nos filmes da época, citados ou não? É claro que os autores exploram essa faceta para não apenas utilizarem o antagonismo amoroso entre Orson e Rita como imagem distorcida do amor espiritual entre Conchita e o marinheiro, mas não deixa de resultar como algo mecânico, calculado, premeditado, retirando um pouco da emoção mais genuína que poderia ter tido lugar. Além disso, como ditam os mecanismos de muita da ficção “explicativa” – aquelas histórias que são contadas para finalmente explicar a razão de determinado evento -, todo o busílis dos charutos entregues a Welles revelar-se-ão a razão da separação absoluta do casal. Mas, mais uma vez, quer jogando essa razão contra a história real quer contra a representação das personagens, não encaixa na perfeição. Esta dimensão, estamos em crer, será da responsabilidade principal do escritor David Camus, autor francês (esta edição é a original, ainda que o texto tenha sido escrito em francês e traduzido [o que, não sendo inédita enquanto experiência de colaboração transatlântica, promete poder ser cada vez mais normalizada]). No entanto, mesmo a dimensão visual parece reconfirmar essa distribuição de papéis, dadas as formas de expressão dos rostos, posição dos corpos, enquadramentos das acções, etc.

Se a capa deste livro, simples e elegante, nos remete, e até corroborado um pouco pela matéria da história, para os irmãos Hernandez, o traço de Abadzis é menos rigoroso do que os autores chicanos. Na verdade, há um grau muito menor de consistência nos desenhos deste autor, que antes opta por explorar precisamente efeitos de grande diferenciação de cena para cena, ora utilizando abordagens mais minimalistas, ora mais expressivas, ora exagerando os contornos cartoonescos ou mesmo próximos de algum cinema de animação ora procurando uma acalmia mais próxima da caricatura clássica. Ainda assim, pode-se encontrar nessa flutuação alguma preocupação em buscar o mais correcto “tom gráfico” para condizer com a cena em particular, e se se seguirem as aventuras do seu Hugo Tate, compreender-se-á o nível de pesquisa que o autor gosta de fazer sobre essas abordagens divergentes num mesmo espaço de expressão.

Além disso, em determinados momentos - e sobretudo sublinhado pelo trabalho competente, sólido e expressivo da cor -, como as que mostram o estúdio cheio e detalhado de Orson Welles, ou as cenas que sobrevoam as paisagens rurais habitadas pelo corpo, a mente sonhando ou a alma de Conchita, ou a sequência final da alma, em dor mas liberta, subindo em direcção ao sol, tornam este livro guardador de algumas belas cenas.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. Imagens colhidas da internet. 

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