11 de fevereiro de 2015

Shoplifter. Michael Cho (Pantheon)

Como já tivemos oportunidade de o discutir noutras ocasiões, um qualquer bibliómano, bibliófilo ou pura e simplesmente anal retentive bookworm escolherá as suas leituras por vezes por sinais superficiais de beleza. Atrai-nos uma capa, um desenho solitário, um pormenor de acabamento, um material. As mais das vezes esse instinto coloca-nos na senda um livro que nos devolve um conteúdo digno dessa primeira impressão, mas há também casos em que essa promessa não é cumprida. (Mais) 

Michael Cho é sobretudo conhecido como ilustrador, com um distintivo estilo de alto contraste empregando sempre uma ou duas cores (cores básica e fortes) para além do preto. As suas imagens são aparentemente simples, mas a sua elegância é burilada cuidada e conscienciosamente, revelando uma atenção particular para com a estratificação de vários planos nas paisagens, sobretudo brilhantes quando urbanas, e cujas linhas rectas e pontos de fuga perfeitamente centrais (isto é, não-naturais dada a bifocalidade do olho humano, e que por isso surge de uma forma gráfica incrível). Na esteira de todo um historial clássico da banda desenhada, contra esses fundos exactos, detalhados, que possivelmente bebem de referências fotográficas, o autor coloca personagens de contornos pretos, sólidos e fechados, de linhas estilizadas e arredondadas (próxima de alguma animação), também elas devedoras de uma tradição vetusta. Uma tradição na qual encontraremos artistas tais como Darwyn Cooke, David Aja e Nick Dragotta, numa outra geração Michael Allred, e o pai-de-todos, Alex Toth (precisamente o artista que deu o mote para a estilização de todo um conjunto de séries de animação dos anos 1960 na Hanna-Barbera). O uso de estruturas em lápis e depois camadas de guaches límpidos ou meios digitais (é possível que este livro já tenha sido produzido exclusivamente assim) aumentam a “nitidez” dessas imagens.

O artista coreano-canadiano trabalha como ilustrador para revistas, jornais, editoras (capas de livros), e alguns projectos narrativos de vários escritores. Mas a esmagadora maioria do seu trabalho passado, ou pelo menos o mais divulgado, também porque fruto da cultura da web 2.0 das “encomendas” (commissions), é aquele que ronda toda a panóplia da cultural popular norte-americana em torno da televisão dos anos 1950 e 1960, e a banda desenhada, o que o aproximaria de um respingador dessa cultura tal qual um Maurice Vellekoop, seu conterrâneo canadense (minus a gay campiness, claro). Não há provavelmente super-herói que ele não tenha representado, sempre numa abordagem “clean”, nostálgica e dinâmica, reminiscente da dita “Silver Age”. E apesar de ter já feito alguma banda desenhada anteriormente, esta é a primeira vez que ele se lança à escrita de uma “novela” (não estamos a traduzir o termo inglês, mas a salientar o género/forma literária curto e concentrado a que Shoplifter pertence).

A história tem algumas parecenças com toda uma série de outras narrativas da banda desenhada, cinema e literatura, em que temos uma protagonista jovem, criativa, talvez coreana-americana, chamada Corrina Park, que se encontra presa a um trabalho “seguro” e “confortável” numa agência publicitária, mas que a faz sonhar com a aventura que sempre a movera na juventude. Soa familiar? Então se indicarmos que se trata de uma licenciada em literatura, que tem um gato, que o seu sonho é escrever o “seu” romance, e que o “defeito” dela – que imbui a intriga com o ingrediente expectável do “inesperado”, “maravilhoso” e “divertido”, e dá o título ao livro – é surripiar umas revistas na loja de conveniência perto de casa, fechamos as contas. Porque com isso ela “sente-se mais viva”. Ha!, e a segunda cor escolhida pelo artista para esta narrativa de uma protagonista feminina é... rosa. Algo esbatido e sombrio, mas rosa.

A verdade é que procurar ver os pormenores para encontrar inflexões de surpresa nesta narrativa acaba por se tornar contraproducente. O nickname dela num programa de namoros online é “virginiawoolf” e os homens que lá apanha são ou bestas quadradas ou predadores com nomes tais como “mastrblastr” e “hawkwinder”. Quando ela mostra finalmente algum interesse por um homem real e interessante, é a melhor amiga que acaba por ir para a cama com ele. E há um episódio de sucessivos acidentes de comédia física (fica sem água no chuveiro, não tem nada que comer, apanha uma molha na rua, etc.), criando camadas contínuas de clichés hiperbolizados. Parece uma dessas negligenciáveis comédias românticas que Hollywood produz todos os anos para alimentar a máquina usual...

De facto, Shoplifter é algo que parece desejar ser “quirky” e liberador em relação à sua personagem feminina como muitos outras obras dessa produção cinematográfica. Mas é possível pensar em títulos de banda desenhada que o conseguem conquistar, através dos mais distintos géneros, desde o “alternativo” Ghostworld, ao mainstream da She-Hulk no run de Charles Soule e Javier Pulido, ao contemporâneo The Nao of Brown, mas sem conseguir o mesmo tipo de textura psicológica ou complexidade dessas obras tão diferentes entre si. É mais basilar que isso.

Visualmente, o livro é de facto belo – as páginas duplas de paisagens urbanas “silenciosas”, em que Corrina as atravessa pensativa valem o bilhete de entrada, digamos assim -, e até o seu formato, tamanho e material o tornam um objecto delicado, mas pensamos que há um limite para aquilo que a beleza consegue conquistar. Nesse sentido, recorda um pouco a presença de Brecht Evens (apesar do que escrevemos sobre o seu livro), em que há um grande desequilíbrio entre a gravidade, serenidade e elegância das imagens por oposição ao enfermiço da intriga e da psicologia tentada. Um agradecimento final é dirigido a Chipp Kidd, e também poderíamos regressar a Batman: Death byDesign para um outro livro que se esgota na sua superficialidade visual e não na sua relevância narrativa.

É claro como há uma espécie de esforço desejado em criar uma narrativa “significativa” para os leitores que se “identificariam” com a protagonista, mas se ele for lido por quem faça um esforço cultural pela sua parte, ultrapassará esse desejo para compreender os limites de Shoplifter. De certa forma, pode-se dizer que este livro pretende representar aquela espécie de aborrecimento, de ennui, que é apanágio de toda e qualquer nova geração que procura entender qual o seu papel numa sociedade que já está pronta quando a ela chega, e não entende se há ou não espaço activo para ela. Tal qual a banda desenhada “alternativa” do início dos anos 1990 teve o seu papel de representação, na banda desenhada, nos Estados Unidos (ecoando a cultura slacker, grunge, e todas as outras), este livro parece querer servir de “hino” (será exagerado dizê-lo?) de uma geração económica e culturalmente privilegiada mas que ainda assim se sente avisada a sentirem-se “pouco realizados”. Daí os vários momentos em que se critica o consumismo dos nossos dias, surjam vezes sem contas “temas relevantes” (a ecologia, a pobreza das crianças no Terceiro Mundo, a dependência de tecnologias em vez de comunidades humanas, etc. quase em presenças de cartão, bidimensionais). “Cry me a river”, apetece dizer.


Por alguns detalhes – aqui, superficiais - da personagem e pela identidade do autor, Shoplifter poder-se-ia inscrever eventualmente na diáspora “asiático-americana” (ou “asiático-canadiana” ou num complexo social maior), na esteira de um Adrien Tomine. Mas Cho não é Tomine, nem mesmo um Tomine num mau dia... Talvez aqui se demonstre que o trabalho necessário para a “escrita” - separando por um momento, e apenas a título analítico, a tarefa da narrativa da das imagens, da sua estruturação, como se não fosse um corpo holístico – é tão-necessário como o do desenho, e que a curva de aprendizagem não se conquista com facilidade com uma banda desenhada de longo hausto. Haverá excepções, sem dúvida (as primas Tamaki, Miguel Rocha, Nunsky), mas esta não é uma delas.

2 comentários:

  1. Olá Pedro,

    Só um breve comentário ao primeiro parágrafo desta entrada. É curioso como me pré identifiquei com o que nele escreves. Realmente por vezes somos atraídos por sinais superficiais, geralmente por qualquer questão identitária ou reminiscência afectiva a alguma referência que encontramos nos objectos que nos passam pelos olhos. Isto para dizer que há algumas semanas que esta crítica ao shoplifter vem anunciada no teu blogue e que desde aí tenho espreitado todos os dias para ver se já teria saído só pelo mero facto do título do livro me lembrar uma faixa dos smiths que eu ouvia repetidamente na minha adolescência e que ainda retomo muitas vezes subconscientemente: "unite and take over".
    O estilo darwyn cook atrai-me, devo confessar, e o minimalismo no (e desde o) zorro do alex toth foram (talvez) o meu melhor contacto com a bd na infância. Este livro pode não ser grande coisa, mas aquele título tem qualquer coisa de profecia autorrealizável: "hand it over!" :-)
    Aquele Abraço
    José

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  2. Olá, José.
    Não tenho grandes regras de entrada no lerbd, a não serem princípios muito gerais (não tentar falar de livros com mais de dois anos, dar prioridade a títulos menos mencionados nos nossos círculos, ser consistente com a leitura de títulos portugueses, falar sempre - ou quase sempre - dos livros que peço activamente às editoras, mesmo quando não são a maior revolução do mundo. Quanto às compras, que são cada vez menores, dadas as dificuldades, sou por vezes movido por aquilo que nos movem a todos: curiosidade, conhecimento, um q.b. de nostalgia, e coups de foudre. Por vezes, estas últimas levam-nos a pequenas desilusões. Eles livro está na estante para ler há muito, e colocar títulos na secção "brevemente" servem para me obrigar a lê-los rapidamente. Foi o caso deste título, que muitos autores portugueses parecem terem apreciado (depois de uma conversa no último Festival da Amadora), mas a sua leitura efectiva demonstra que é algo bem menos consistente e maduro do que aparentava ser. Enfim...
    Quanto aos Smiths, é uma boa referência, e estes livros são precisamente um "thorn in one's side".
    Pedro

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