20 de abril de 2015

Le straordinarie avventure di Pentothal. Andrea Pazienza (Fandango Libri)

Publicada originalmente em 1977 de forma episódica numa revista periódica, esta estranha saga onírica é o primeiro trabalho de grande fôlego do artista italiano Andrea Pazienza, e aquele que o colocaria no mapa da sua época, ainda que de uma brevíssima vida. Desconhecemos se esta é a melhor introdução ao autor. Poder-se-iam escolher, talvez, títulos mais normalizados (algo difícil de cumprir em Pazienza), ora aqueles com a personagem recorrente Zanardi, ora os que brincam com estruturas convencionais, como possivelmente o também semi-autobiográfico Pompeo ou a curta humorística “Perchè Pippo sembra uno sballato”. Le straordinarie avventure di Penthotal é antes uma alucinação, um percurso automático numa mente aberta, o que em nada aponta a existência de cartografias nítidas e indubitáveis. (Mais)

Já tendo sido alvo de várias reedições, ora em colectâneas do seu trabalho ora mesmo individualmente, esta nova edição pela Fandango (acompanhando outras pela Einaudi ou Coconino Press) pretende reformatar o mesmo sob os auspícios da nova circulação cultural, “literária”, da banda desenhada que tem sido permitida nos últimos anos pelo advento daqueles objectos alvos já de uma discussão anterior. Desta maneira, seja como for, criam-se as condições para uma sua redescoberta, releitura, ou chegarmos a ela em primeira mão.

Não é possível de todo fazer uma sinopse deste livro. Como foi dito acima, poder-se-iam angariar elementos de autobiografia, ou autoficção, ou de escrita automática, ou de desenhos soltos, e nennhum deles seria suficiente nem claro para compreender a experiência de ler Pentothal. Apenas podemos ir procurando aproximarmo-nos do livro, cujo cerne se desloca sempre a cada passo dos leitores. Um crítico italiano usa mesmo a palavra “convulsão” para a forma como as páginas – as imagens, as palavras, as relações entre estas, os episódios diegéticos, as personagens, as citações, as formas de composição - se sucedem. É muito exacta. Não há propriamente uma fluidez ou acalmia que pretendesse uma poesia de sossego, um ritmo apaziguador de elementos que depois, tranquilo, o leitor faria coalescer num sentido coeso. É antes um ataque febril de elementos heteróclitos que nos vão caindo em cima e, ainda mal estamos a tentar compreender como encaixá-lo no tecido até ali apresentado que já outra peça nova, tão enigmática como as demais, se nos surge. Não há tempo para respirar, para ponderar. Pentothal não nos convida à contemplação mas a uma catadupa de sensações.

Essa sequência caótica é corroborada pelo uso altamente variado de técnicas de desenho a todos os níveis. Em termos de marcas encontraremos desde a linha mais fechada e fluida, de figuras fluidas e plásticas à la Moebius, contemporâneo, até ao mais obcecado trabalho de tramas, a tracejado, ponteado ou redes mais orgânicas, como se se aproximasse dos autores conterrâneos mais clássicos e também mais ou menos seus contemporâneos, de Toppi a Micheluzzi. Em termos de material há tinta-da-china aplicada a pincel, caneta, ou lápis, ou aguadas. As mais das vezes, e numa mesma página, poderão surgir todas elas, misturadas ou distribuídas em personagens diferentes, ou planos distintos da acção. Nesse sentido, Pazienza será um exemplo maior daquilo que, mais tarde, Thierry Smolderen e Thierry Groensteen viriam, cada qual a seu modo, a chamar de “heterogenia gráfica”, uma decisão em não conter a criação de imagens numa mesma família ou coesão de marcas, mas explorar a sua variedade possível numa mesma unidade visual. Em termos de figuração, encontraremos na esmagadora maioria da prestação formas mais naturalistas, mas não é raro encontrar opções mais caricaturadas, ou abonecadas, ou simplesmente expressando-se através de modos mais drásticos, ora minimais ora maximais. De resto, estas flutuações ou potências seriam a assinatura de Pazienza durante a sua curta vida mas alargada obra.

Quanto aos episódios internos, também não é fácil propor um percurso coeso. Se começamos enquadrados num contexto realista, de um jovem artista em Bolonha envolvido na vida universitária, anti-fascista do seu tempo, e que aceita os breves sonhos que testemunhamos, rapidamente ele e outros companheiros que vão surgindo são lançados em territórios mais hostis: desde o policial à aventura na selva canibal, ao cruzamento com personagens à la Disney mas horríficas, por momentos de intensa violência ou de entrega cósmica ao universo. Talvez se possa mesmo pensar que Pazienza explora todos os territórios plásticos passíveis de serem tratados pela banda desenhada como elementos tangíveis e recombináveis para expressar a ideia a qual ele quererá fazer passar nas mentes confusas e surpreendidas do leitor. 

A própria língua, se não estamos em erro, não segue as mais férreas regras gramaticais, e há todo um polvilhamento de expressões idiomáticas, calão e provavelmente gritos inventados, no meio da raiva nutrida por aquela época de revolução política, os anni di piombo, mas também o mais singular círculo cultural de Pazienza, marcada pelo niilismo jovem e sonhos regados de heroína. É claro que nada nos permite fazer associações directas entre a biografia de um autor e a sua obra, mas o protagonista partilha o seu rosto com o de Pazienza, tal qual o de Zil Zelub partilhara o seu com o do autor Buzzelli, apontando também a aqui a uma espécie de autoficção desviada para um campo de pesadelo formal, mas que serve para expressar um certo desalento, ou mesmo terror, social e existencial. Pentothal é uma obra que tanto pode ser lida nos seus contornos políticos, da associação histórica que faz com os movimentos estudantis de esquerda da sua época, como com uma exploração poética extremamente singular, mas também os sonhos permitidos por outras vias.

O penthotal, ou tiopentato de sódio, como se sabe, é um anestésico. E mesmo que saiba que o “soro da verdade” tem mais de mito televisivo do que de, bom, verdade científica, é algo difícil de lavar esse sentido nesta alucinação épica. Falámos há pouco, em referência breve, de Moebius. Este autor francês é elogiado pela sua saga Garagem hermética, que começara nas páginas da Métal Hurlant um pouco ao acaso, como exercício de escrita automática, ou de sequência fantasma. Todavia, se Giraud rapidamente subsumiria as primeiras páginas mais livres e alucinadas a uma estrutura de clara coerência narrativa, e unidade de personagens, espaços e acções, o mesmo não se passa jamais com Pentothal. A presença da palavra “aventuras” não é mais do que uma ilusão, a menos que se a aceite como sendo totalmente desregrada das unidades aristotélicas ou, porventura, as subsumamos nós a uma qualquer centralidade da mente do protagonista, quiçá esfumada pelas asas da pedrada que está a experienciar. Afinal, vemo-lo a dormir e sonhar, a acordar do sonho e a voltar a deitar-se, até chegarmos a um ponto em não conseguirmos discernir se estaremos num momento de vigília ou numa travessia onírica ou, como dissemos, alimentada por narcóticos. O próprio Pazienza falou de “sprazzo”, “flash”. Um “romance gráfico” composto por “flashes”? Nada impediria a que surgissem imagens e personagens recorrentes, e estruturas temporais como flashbacks, elipses, etc.

Originalmente esta história havia sido publicada em episódios na revista Alter Alter, uma das linhas de fuga da Linus. Encontrá-la-íamos lado a lado a autores italianos ou internacionais mais convencionais, como Mario Siniscalchi, Marco Scalia, Sydney Jordan, mas também cultores do que, na época, eram linguagens gráficas inovadoras e arriscadas como as duplas Muñoz & Sampaio e Forest & Gillon, Moebius, Filippo Scozzari, Luc e François Schuiten, Guido Crepax, e ainda nomes famosos de linhas menos arriscadas mas que eram garante de sucesso crítico por outras razões, como Margerin, Corben, Nicollet, Palacios, Giorgio Cavazzano, etc. Todavia, mesmo na economia diversificada e mesmo madura dessas presenças, a obra de Pazienza não deixava de ser uma estranha, acategórica, talvez mesmo incómoda questão. Não havia dúvidas quanto à sua capacidade de desenho, mas a escrita levantava questões de sentido, significado, direcção, ontologia mesmo.


Apesar de ter sido largamente traduzido para várias línguas europeias, sendo publicado num circuito relativamente independente, como na El Vibora, por exemplo, os leitores de expressão portuguesa tê-lo-ão descoberto porventura na brasileira Animal, ao lado de outros seus companheiros de juventude da Cannibale e depois Frigidaire, e que se tornariam mais famosos, como Liberatore ou Mattioli, talvez por trabalharem em territórios mais rapidamente enquadráveis em categorias existentes. Mas também Scozzari e Tamburini, que convirá redescobrir tanto quanto Pazienza, ainda que este viva uma intensidade desigual, inoportuna, intempestiva, e por isso imperativa.

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