O
trabalho de Miguel Carneiro tem sofrido inflexões sucessivas no
traço desde os seus primeiros tempos de produção de banda
desenhada e ilustração. Se o autor iniciara a sua “carreira” em
pintura, e desde logo em territórios em que o controlo absoluto de
certas técnicas se aliava a um humor corrosivo que pregava rasteiras
na percepção e no posicionamento do espectador, as primeiras
histórias publicadas pelo pequeno colectivo A Mula (co-fundado com
Marco Mendes, mas contando sempre com uma mão-cheia de colaboradores
recorrentes) remetiam não apenas a um imaginário semi-popular como
a um desenho de aparente natureza tosca, como se se tratassem de um
encontro, pouco fortuito de resto, entre aqueles desenhos de cartoons
e gags dos anos 1950 em revistinhas cómicas e o rabisco de
casa de banho. Urgente, tremido, directo, franco, servia que nem uma
luva aos breves chistes, cobertos de trocadilhos, dislates, traduções
selvagens e filosofia de pacotilha, ou lições de vida profunda
interrompidas por flatulências, matéria perfeita para a eterna
galeria de personagens que se foram mantendo: o Sr. Pinhão, o cego
cantor, o dinossáurio que corria, o homem com cabeça de galinha, a
zebra, a catatua (ou seria arara?), as mulheres agravadas, e por aí
fora... (Mais)
Corre
que corre, o Sr. Pinhão (avatar do autor mesclado com uma espécie
de meta-Pessoa) foi ganhando outros contornos. Observar cada
episódio, cada desenho, cada fase, demonstrou transformações quer
em termos materiais – de folhas de mesa de restaurante desenhadas a
esferográfica e marcadores baratos a papel Canson desenhado na mais
perfeita das linhas a grafite ou tinta-da-China – quer em termos
ideológicos. As anedotas foram dando espaço a aforismos, e estes
foram ganhando uma densidade cada vez mais premente, como se fossem
acompanhando de modo cada vez mais próximo, crítico e virulento
mesmo, as transformações sociais e económicas que também tiveram
lugar no país. Na cidade do Porto, até certo ponto, a
desertificação cultural e a interpolação do político (ou melhor,
da “polícia” no sentido em que Jacques Rancière fala dos
mecanismos consensuais e habituais que o poder soberano se exerce)
sentiu-se com alguma antecedência. E se bem que este não é
propriamente o local para discutir esse aspecto (nem teríamos os
instrumentos ou a inteligência para tal), perguntamo-nos se isso não
se reflecte no facto de que o trabalho dos artistas daquela cidade,
neste território, não é mais interventivo e directo sobre essa
esfera do que noutros locais: veja-se a Buraco, que nasce de
uma constelação de autores próximos a este projecto, ou Our Library de Amanda Baeza. Os projectos da Chili Com Carne,
sobretudo a colecção Low Cost, tocam na raia deste posicionamento,
mas estende-se por uma área maior, logo atomiza-se. E o projecto de
Os Positivos, centrando-se nas suas questões, emprega antes
instrumentos gráficos e de género que cria um estranho e paradoxal
espaço discursivo, onde um aparente humor “leve” serve de
veículo à crise de certos valores consensuais.
Isto
para dizer que Em terra de cus, quem tem rei é cego é uma
espécie de corolário não apenas do trabalho gráfico e
exploratório do próprio autor, como fruto desse posicionamento,
igualmente colectivo, já que angaria, em primeira instância, os
esforços da Oficina Arara, associação de serigrafia com um intenso
trabalho cultural, e, a outro nível, ao número de colaboradores
textuais que aqui se encontram.
Basicamente,
poder-se-ia dizer que esta publicação enorme – impressa em
offset, mas com uma capa em serigrafia e um apontamento aplicado
manualmente, recordando a experiência singularizante da Qu'Inferno!
- colecciona uma série de desenhos do autor. Alguns deles são
acompanhados por frases soltas, aforismos ou provérbios modernos,
que nos obrigam a pensar duas vezes e sobretudo no que pretendem
atingir em termos políticos. Regressando a Rancière, o “político
propriamente dito”, isto é, a emergência de uma expressão onde
ela não se esperava ouvir e cuja intervenção é genuína e
pretende agir da forma mais intensa possível contra a ideia
de consenso. Sendo este a “situação tal qual ela está”.
Recordar-se-ão
os leitores de que em Zombie, de Marco Mendes, um grupo de
amigos se prepara para invadir a cidade do porto com esqueletos
dançantes. Independentemente de crermos no nível de “verdade”
da obra autobiográfica de Mendes, ela remete, seja como for, para um
número de práticas que abarca aquelas que deram igualmente origem
às imagens criadas por Miguel Carneiro (que também surge enquanto
personagem em Zombie, ou pelo menos podemos argumentar que uma
das personagens ocupa um espaço actancial identificável com a
pessoa real). Elas nasceram enquanto posters, enigmáticos,
interventivos e surpreendentes no espaço público da cidade do
Porto. Como escreve Mário Moura no seu texto na publicação, que a
fecha, “parece que se fundem sobre o granito escuro do Porto, como
se alguém tivesse descoberto uma maneira de desenhar directamente
sobre a pedra” e que fariam recordar um “predador camuflado”.
Agora
essas imagens encontram-se “arrancadas” à parede e ganham uma
segunda ou terceira vida sob a forma de desenhos em páginas,
organizadas e coladas num só corpo, acompanhadas por essas frases
soltas, e por uma série de textos por variadíssimos amigos. Poemas,
prosas, manifestos, citações, diálogos, notas autobiográficas, a
maior parte deles objectos literários não-identificados, ou pelo
menos para além das divisões textuais habituais. Encontraremos
textos de Benjamin Brejon, Ececanli, Joëlle Ghazarian, Júlio
Henriques, Usurpária, Nuno Marques Pinto, Arlindo Silva, Marco
Mendes, Manel Cruz, Andreia Farinha, Júlio Mendes Rodrigo, Inês
Viana, Frederico Lobo, Filipe Silva, como vimos Mário Moura, e ainda
este vosso criado (com um poema curto). As relações são criadas,
portanto, de forma invertida ao mais usual: são as imagens que
surgiram primeiro, e são os textos que a elas respondem, e as tentam
“ilustrar” de vários modos. As relações que emergem são
distintas e variegadas.
Existem
formas que unem as figuras criadas por Miguel Carneiro: personagens
semi-humanas cujas cabeças são mãos, quase sempre flectidas em
gestos mais ou menos claros, ou então de dedos engalfinhados uns nos
outros criando estranhos nós complicados. Mas há ainda outras
figuras com cabeça de cu. E a leitura atenta da relação entre uns
e outros será lida como uma tradução claríssima, e no fim de
contas quase literal, do que observamos hoje entre a classe política
e o poder soberano, as esferas do poder económico, internacional ou
doméstico, e os cidadãos ditos comuns que vão pagando a conta, os
discursos da “inevitabilidade” e da necessidade de
“empreendedorismo” e o vómito moral a que essas palavras levam,
o elogio dos ricos e o desprezo e contínuo esmagamento daqueles que
vão encontrando o seu espaço de expressão cada vez mais coarctado.
E nada disto precisa de discursos literais ou panfletários. Pois
apresentam-se aqui também cenas infernais, com demónios
divertindo-se em vários locais, desde o interior do crânio de
homens à paisagem urbana e nocturna do Porto. Existem marchas
macabras de tambores, e rictos flutuando em colunas de fumo (a que o autor chama “cínicos”, e se confirma pelo humor e os caninos expostos),
procissões e autos-de-fé, torturas contínuas da grafite e das
linhas estilizadas no papel. Não se tratam de símbolos, mas de
traduções.
Esta
pesquisa iniciara-se com um projecto anterior da Arara, Harpoemacto
(um poster, poesia, leitura, música), e foi ganhando linhas de
desenvolvimento. Com estas, Carneiro une-se a
longuíssima tradição de artistas do desenho que procuraram, com as
suas imagens, criarem um espaço de intervenção política muito
especial, que se move pelas areias do sarcasmo, da ironia e de uma
individualidade inegável. Pode-se recuar a Jacques Callot e a Goya (ou até antes, a tempos medievais, pelo termo "Emblemas" utilizado no sub-título),
ou revisitar Feliks Topolski, Ben Shahn, Ralph Steadman e até
Breccia: a liberdade do traço, a urgência de abandonar tinta no
papel acompanhando a idêntica vontade (no seu sentido nietzschiano)
de rasgar um novo espaço de expressão em relação às injustiças
e desequilíbrios sociais que nos rodeiam. Na sua localidade,
Carneiro transforma-se num artista mais universalizante. Como
havíamos escrito noutro local, e num registo bem diferente,
chamando-o “Topor
da Cedofeita, Daumier da Dobrada, Masereel dos Clérigos,
Artzybasheff das Fontainhas” (agregando esses outros nomes à lista
anterior), é no escavar do problema local, digamos assim, e na sua
linguagem gráfica absolutamente idiossincrática, que este livro se
ergue enquanto gesto global.
Mais informações e imagens, aqui.
"Para uma criança com um martelo na mão, o mundo inteiro parece um prego".
ResponderEliminarDe tudo o que fica sempre por dizer, queria apenas dar nota do prazer e privilégio criativo que foi idealizar e compor graficamente esta publicação em estreita, e muito próxima colaboração com o engenhoso Cumulonimbus. Que é como que diz: valeu, Nora! Assim como agradecer a todos os outros bandidos e salteadores que transpiram desta terra sem rei, só rock; com especial atenção à EceCanli, pelo apoio e inspiração crítica com que acompanhou os 9 meses de gestação desta edição.
E por último, agradecer ao incansável Pedro Moura, que continua a ser dos poucos observadores atentos a meter o olho e o bedelho literário neste tipo gestos editoriais. Foi com destemida imprudência que o mesmo aceitou o desafio de traduzir esta publicação — cheia de escarradelas idiossincráticas — para inglês, permitindo que este manifesto colectivo atinga outros palcos. Na calha, dentro de pouco dias!
Miguel Carneiro
A seguir a este livro era óptimo que houvesse uma compilação do Monsieur Pignon...
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ResponderEliminar"Para uma criança com um martelo na mão, o mundo inteiro parece um prego".
"terra sem rei, só rock;"
"9 meses de gestação"
Uau :)
Tem sido um prazer estar a bordo deste barco que balança mas não vira. Citando o Senhor Miguel Carneiro, "não dissemos que ia ser fácil; dissemos que ia valer a pena."
E obrigado ao Pedro Moura pela recensão tão fértil!
Filipe ("Raiz Quadrícula", in "Em Terra De Cus, Quem Tem Rei É Cego")
PS: Quem Tem Rei, Não Tem Rock!