20 de maio de 2015

Fatale, Tony Chu, Saga. AAVV (G. Floy)

Uma vez que não acreditamos em causalidades simplistas (as quais implicam que o consumo de certas substâncias só poderá levar a uma sua escalada, que existe uma correlação entre o uso de um determinado tipo de jogos, livros ou música a um comportamento também determinado, etc.), mas antes numa fenomenologia social complexa que toma em conta os mais variados factores, num contexto sócio-económico, relacional, familiar, alargado, também não acreditamos numa necessidade de cadeias de leituras fechadas. Isto é, a chegada de um leitor a certos textos poderá advir dos mais variados quadrantes. Todavia, penso que não será muito errado imaginar que a existência de alguma variedade editorial num país, isto é, a fabricação de um “mercado”, poderá contribuir para uma consolidação da circulação de textos, leitores, e até mesmo recepção, crítica ou outra. (Mais) 

Os projectos da G. Floy poderão ser chamados de “mainstream”, num duplo sentido: primeiro pois desejam conquistar um espaço que seja garante da sustentabilidade comercial, apostando em títulos que se mostrem populares, necessariamente abdicando de linguagens experimentais ou modos não-consensuais de criar as narrativas desenhadas que se propõe; depois, porque procuram precisamente géneros relativamente consolidados, reconhecidos, que não levem a uma grande negociação conceptual da parte dos leitores, mas antes a um efeito de familiaridade. Todavia, existiriam várias formas de o fazer, e tratando-se de um projecto que parte da escolha de títulos produzidos noutro local (no caso, os Estados Unidos), as escolhas poderiam recair nas mais diversas áreas territoriais. Os três últimos títulos que trazem para Portugal são todos advindos da Image e, tal como Fell e Hellboy, que haviam editado há uns anos, também estes se tratam de cruzamentos entre vários géneros, provocando não uma desarrumação mas uma curiosa mescla dos elementos de cada um para criar um objecto de algum interesse.

Tendo já falado do projecto recente da Image noutro texto (se bem que existam muitas outras dimensões a estudar, dessa espécie de “auto-editora”), e tendo mesmo referido dois dos títulos presentes, retomaremos aqui apenas uma breve apresentação de cada um deles. Sublinharemos, todavia, que estes títulos são boas adições a um catálogo alargado de banda desenhada de género, popular, contemporânea, que se concentra na fundação de personagens bem vincadas em ambientes personalizados e com claras competências na linguagem empregue. Se não reinventam a roda da própria banda desenhada, não é esse o seu objectivo, mais humilde e, por essa razão talvez, conquistado quase sem esforço.

Fatale. Ed Brubaker e Sean Phillips. De todas as séries “policiais” criadas por ambos os artistas, talvez Fatale seja a mais “popular”, no sentido de escapar do mundo relativamente real dos outros títulos, e por usar uma estrutura central com peças de necessária atracção central: afinal de contas, o próprio título remete para a protagonista, se bem que descubramos rapidamente que o charme que Josephine possui não é tanto a de uma sedução carnal Bacalliana, mas antes demoníaca. Mesmo que não haja jamais uma explicação cabal, Josephine tem uma origem que a remete a um mundo pejado de sombras lovecraftianas, e há toda uma série de apontamentos pulp que tornam a narrativa mais densa, sem nunca a tornar um hard-boiled. Brubaker está neste momento a comandar outra série com Phillips sobre o mundo de Hollywood da década de 1940, The Fade Out, que é perfeita na construção do ambiente, e, com Epting, Velvet, com mais acção, e digna de uma série de televisão retro, entre James Bond e Os Vingadores (a dupla Steed e Peel, não os da Marvel). Fatale aproxima-se da primeira precisamente na ideia de criar as paisagens sociais que atravessa, bastante diversas tendo em conta as décadas que a acção atravessa, em arcos cada vez mais alargados. E da segunda nos seus aspectos fantásticos.

A já conhecida equipa apresenta uma trama tão densa quanto as sombras com que as imagens se cosem. A maneira como Phillips gere os desenhos em grande plano, detalhados, naturalistas, belos, e as formas quase caligráficas com que desenha as mesmas personagens em planos mais afastados, cria ritmos convencionais mas competentes, e legíveis suavemente. E mesmo que a intriga em si seja algo debilitada por ser unidimensional, na sua concentração pela personalidade de Josephine, a sua relação com todos os homens ao longo da história, que podem ou não estar relacionados com Nicolas Lash (a personagem que servirá de filtro de consciência da narrativa), com os estranhos rituais, etc., a grande força dos autores encontra-se na maneira como desenham personagens com profundidade, personalidade, e veracidade mesmo em enquadramentos de fantasia.

Tony Chu, Detective Canibal. John Layman e Rob Guillory. Desta pequena constelação, este é o título mais estrambólico. A premissa de um homem que é capaz de, num só laivo de gosto, aperceber-se de toda a história do que come (como foi semeado, nutrido, tratado, alimentado, colhido, morto, etc.) – portanto, ele é um “cibopata” capaz de “impressões psíquicas” - e que é contratado para uma agência que verifica a venda ilegal de galinha, uma vez que se deu uma catástrofe num futuro próximo que dizimou a população mundial, parece ser uma descrição digna de uma anedota curta, mas é de valorizar o facto de que os autores são capazes de fazer desdobrar a partir disso uma trama com um elenco variado, de personalidades distintas e talentos idiossincráticos, e uma geometria entre eles que torna vivaça o avanço das páginas.

Como se compreenderá, o casamento aqui é entre o policial, apresentando desde logo um mistério, uma conspiração a resolver, crimes a explicar, e o humor, absurdo e frenético, como se se seguissem os sketches mais físicos e bas-fond dos Monty Python. Não quer dizer que todas as dimensões da série sejam descerebradas, mas estamos longe de um cálculo frio à la Brubaker, procurando antes que a sucessão rápida de eventos espectaculares e pormenores escabrosos se empilhem num efeito final que corrobore a parte da intriga.

Desta forma, o desenho agitado e distorcido de Guillory, que ainda assim consegue manter uma coerência linear sólida ao longo do livro, é perfeito para esse tom. Se o trabalho de cor não é particularmente feliz, e até a composição das páginas parece fazer escolhas óbvias para a navegação das páginas, elas criam um denominador comum, aliado à forma como os diálogos flutuam entre os clichés expectáveis, as frases improváveis (“este louco está chateado por eu me recusar a comer um dedo em decomposição!”), fazendo de Tony Chu um divertimento um furo acima de Bad Taste, de Peter Jackson.

Saga. Brian K. Vaughan e Fiona Staples. Como havíamos dito, Saga convida a uma “leitura espontânea e desembaraçada”, na sua capacidade de navegar por entre os mais variados territórios de género. Habitado por personagens e criaturas memoráveis, de uma maneira que não nos parece se dever simplesmente a uma catadupa de criatividade de “criar mundos”, mas procurando que cada uma das personagens tenha um papel fundamental e único nesse universo (desde os actores principais, a uma adolescente ama fantasma, o gato que detecta mentiras, a assassina profissional de pernas de aranha), o entusiasmo com que a série tem sido recebida em vários quadrantes poderá torná-lo um título de extrema popularidade. Mesmo que não acreditemos que a transição de um trabalho de banda desenhada para outros meios (sobretudo o cinema ou a televisão) seja o garante da sua qualidade, o seu desejo é porém um factor de alargamento dessa popularidade, já garantida pela forma como tem sido recebido no mundo da banda desenhada.

Vaughan tem outros títulos mais maduros do que Saga, que é propositadamente leve na sua exploração de uma linha “telenovelesca”. Os diálogos são quase banais, as reviravoltas rocambolescas são dignas de um episódio de Anatomia de Grey, mas é precisamente o contraste dessa natureza com um fundo de fantasia sci-fi que o torna um projecto curioso. Seja como for, a franqueza desses mesmos diálogos, aliados à maneira como o sexo é tratado – na sua forma mais chã e natural como se tece entre os seres humanos -, torna as relações entre as personagens desarmantes, mesmo quando entre criaturas que acharemos fisicamente estranhas (pernas de aranha, televisores por cabeças, etc.).

Os desenhos de Staples são muito elegantes, e, tal como Tula Lotay, parecem nascer de uma área da ilustração informada pela airosidade e delicadeza da (alguma) ilustração de moda. Até quando as personagens têm expressões de enfado, ou inexpressivas mesmo, elas surgem-nos como seres humanos apanhados sem consciência de serem observados. A artista tira partido total das várias paisagens diversas que se visitam (um truque aprendido com Star Wars, sem dúvida), e a cor, sendo cumprida por meios digitais relativamente fáceis, é feita com cuidado e brio, dando aos desenhos uma maior textura, e planos profundos.

Da três séries aqui trazidas à colação, é talvez Saga aquela que poderá conquistar um número maior de leitores, quer em termos de diversidade (de idade, sexo, estilos preferidos, etc.) quer mesmo escapando ao interesse, muitas vezes particularizado, da própria banda desenhada.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos volumes.

5 comentários:

  1. Boas, Pedro: obrigado pela resenha das nossas edições. Apenas uma correcção, o Velvet do Brubaker é com desenhos do Steve Epting (com quem tinha já colaborado em Capitão América: O Soldado do Inverno). E sim, confirma-se, SAGA é sem dúvida a nossa série mais vendida, mas é surpreendente como CHU parece estar a ganhar leitores e a distanciar-se de Fatale.

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  2. Que parvoíce. Obrigado, já está corrigido.
    Quanto às vendas, não me surpreende, já que o "Saga" tem tido muita publicidade, em várias frentes e leitores bem distintos. O "Chu" é um "acquired taste", e nunca essa expressão fez tanto sentido...

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  3. Curioso que sãs as 3 séries em que tenho andado interessado, e só Saga (leio digitalmente) para já me conquistou.
    Estou agora a par (infelizmente) do último número e considero que se tornou uma banda desenhada sólida, apesar de perceber a natural comparação a dramas 'fáceis' como os que foram apontados, tem realmente algo de especial mesmo para as pessoas que, como eu, não são propriamente fãs do género de fantasia ou sci-fi representado.

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  4. Caro Valter,
    Não é o meu papel adivinhar as razões pelas quais as pessoas acabam por se apaixonar por uma série, afinal temos fãs do "Ric Hochet" e "Michel Vaillant"... O "Saga" tem um ar "leve" e "telenovelesco", como disse, mas penso que essa é precisamente a dimensão pela qual conquista (grande?) parte dos seus leitores: criar personagens redondas, autosuficientes,colocá-las numa relação forte e depois criar crises nessas mesmas ligações, com as mais diversas peripécias. Eis a fórmula de qualquer "serial" bem-sucedido, seja ele de que género ou formato for. E penso que os elementos de sci-fantasy (à la "Star Wars", mais uma vez,mas igualmente "John Carter" e até "Flash Gordon", etc.) se tornam apenas o pano de fundo que sustenta essas histórias.
    Quanto às outras séries, tenho em mim que fãs de bandas desenhadas policiais saberão que Brubaker é um cultor exímio do suspense e das acções rocambolescas dos seus protagonistas; simplesmente em "Fatale" isso está subsumido também a um significativo grau de fantasia.
    "Chu" é pura e simplesmente um divertimento descomplicado, e tem ideias estrambólicas nada displicentes.
    Obrigado,
    Pedro

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  5. Acabaste de me fazer ganhar o dia, Pedro!

    "..."Chu" é pura e simplesmente um divertimento descomplicado, e tem ideias estrambólicas nada displicentes...."

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