23 de junho de 2015

The Sculptor. Scott McCloud (Self Made Hero/First Second)

Supostamente, Miguel Ângelo terá afirmado que a arte da escultura é a progressiva libertação da forma aprisionada na pedra. Em The Mystery Play, de Grant Morrison e Jon J. Muth, uma das personagens (Lúcifer, na percepção do protagonista) inverte a equação para falar dessa forma de arte como um “forçar da pedra natural à submissão da vontade” do autor. Num seu famosíssimo e decisivo ensaio de 1979, Rosalind Krauss identificou formas modernas da escultura como um “campo expandido”, compreendo a um só tempo o nomadismo do conceito para abarcar outro tipo de objectos, e, ao mesmo tempo que ela entendia a essa forma de arte como sendo definível por uma série de negatividades – a escultura é não-arquitectura, não-paisagem, mas vai podendo dialogar com essas e outras noções para além de um mero monumento tridimensional – expunha as transformações que foram aproximando as várias disciplinas artísticas de uma noção mais alargada de arte (ou Arte, como entendida hoje em dia). A que ponto de entendimento se reportará o posicionamento de The Sculptor? Na verdade, a um estádio romântico e algo patético dessa mesma arte. 

É-nos difícil escrever sobre este livro. Não por ele apresentar quaisquer características que resistam a uma leitura crítica e analítica, mas por o discurso a que queremos nos entregar encontrar grandes resistências às regras implícitas deste espaço. Como já havíamos exposto noutra ocasião, quando um livro se apresenta num nível de qualidade abaixo do que nos estimula à sua discussão, é mais recompensador passá-lo em silêncio do que construir uma desmontagem negativa, até porque, informado que seria pelo desagrado, esse próprio discurso crítico sofreria nos seus instrumentos tentativamente objectivos – isto é, os quais seriam tornados o mais claros possíveis no próprio discurso de maneira a que o seu leitor os pudesse seguir também, concordando ou não, chegando à mesma ideia ou não. Quando falamos de objectividade, não estamos a querer arvorar o nosso próprio discurso como ponto último e inamovível, mas sim enquanto um processo que sublinha características intersubjectivamente verificáveis, convidando desde logo, portanto, à sua discussão e, dessa forma, à criação de uma comunidade estética, de pessoas disponíveis ao diálogo nesse sentido, mesmo que jamais se atinja um ponto comum ou concórdia absoluta.

O contrário, e abandono a essa negatividade, seria tombar naquele sentido mais popular, mas errado, do que passa por “crítica”. Escusado será dizer que a ausência de determinados títulos neste espaço não é, de forma alguma, um juízo de valor em si, como deveria ser óbvio, uma vez que não é possível escrever sobre tudo nem conhecer sequer tudo. Todavia, de quando em vez surgem obras que ganham uma certa presença e importância, muitas vezes por factores externos às suas próprias qualidades intrínsecas, e que merecem um certo posicionamento contrário. Como é o caso de The Sculptor, de Scott McCloud.

A expectativa e fanfarra com que este livro foi recebido foi significativa. Afinal de contas, McCloud é um autor que é sobejamente conhecido por entre os leitores de banda desenhada, atravessando “tribos” de géneros e mesmo de línguas e gerações, sobretudo devido ao seu Understanding Comics: The Invisible Art, de 1993, um livro sobre banda desenhada em banda desenhada e que rápida e consistentemente se tornaria uma espécie de “Bíblia” para muitos leitores, artistas e mesmo investigadores. A esse volume seguir-se-iam outros dois, Reinventing Comics e Making Comics, com menor sucesso e impacto crítico, mas que ajudariam a consolidar a imagem de McCloud como um sólido teórico e especialista desta arte. Não é este o espaço nem o momento ideais para discutir as virtudes mas também as significativas limitações dessas obras. Se somos críticos de algumas das suas “lições” e posicionamentos algo enviesados (sobretudo no que diz respeito à história, mas também ao seu funcionamento estético), desagrada-nos em particular o espaço que eles ocupam muitas vezes em detrimento e muitos outros nomes de investigadores, teóricos e críticos que pensaram os mesmos assuntos com maior propriedade, melhores enquadramentos teóricos e contextualização sócio-histórica, maior sofisticação de pensamento e diálogo intercultural, e mais abrangente trabalho-de-casa. Porém, por ser apresentado sob uma forma simples de consultar, a argumentação de McCloud parece ser por vezes suficientemente clara e sedutora para eclipsar outras soluções ou direcções. É um grande desalento, por exemplo, depararmo-nos com trabalhos que pretendem arrogar-se de abordagens académicas e teorizantes que apenas o citam a ele, desconhecendo por absoluto outras fontes fundamentais, e por vezes para cair nos mesmos erros categóricos ou a mesma incipiência de pensamento que McCloud.

Todavia, a contextualização autoral que mais nos importa é que Scott McCloud é sobretudo conhecido pelo grande público por esses mesmos livros, e não pelo seu trabalho ficcional, seja a série Zot, uma longa saga que misturava ficção científica, dramas familiares, e os mais díspares estilos visuais e códigos da banda desenhada, mas que se mantinha num ambiente “light”, seja The New Adventures of Abraham Lincoln, um desses objectos que ficarão na história como experimentações transitórias e péssimas de como utilizar um computador para “melhorar” a experiência visual de uma banda desenhada. E em ambos os casos, apesar de McCloud pretender “transmitir uma mensagem” com ambas as narrativas, a sua entrega ao prazer dos clichés mais populares é tão notória que é difícil compreender como é que pode ocorrer tamanha falta de habilidade e elegância na gestão dessas duas direcções. A verdade é que se McCloud perseguisse somente a vertente popular, desabridamente (e mesmo Destroy! Não contaria), ou procurasse outras formas de aliar as duas linhas (como Bone? Barks? This One Summer?), atingiria um melhor resultado. Em The Sculptor, as linhas divisórias são ainda mais gritantes.

 Talvez o problema esteja mesmo nas expectativas criadas pelo seu trabalho “teórico”. Afinal de contas, como é que o autor que criou um dos livros mais influentes (quer se concorde ou não com os seus resultados) de como criar uma banda desenhada, de como empregar esta linguagem de uma maneira efectiva tecendo e criando significado através da intrínseca aliança entre imagens em sequência e textualidade, poderia não cumprir essa mesma tarefa da maneira mais acabada possível? Contudo, é também natural que essas expectativas sejam goradas, pois a compreensão crítica, distante e ponderada não é necessariamente uma fórmula ganhadora de criação. E é esse precisamente o caso.

The Sculptor é, aparentemente, a história de um não assim tão jovem escultor norte-americano, que luta com o desejo de ver o seu trabalho reconhecido no “mundo da arte”. Muitos obstáculos se colocam à sua frente, constitutivos desse mesmo mundo. David Smith, é o seu nome, encontra-se com a Morte, e faz com que a história entre na esfera do fantástico. Smith faz um pacto com a Morte, e um poder é-lhe atribuído em troca de uma vida mais curta: a eterna questão da vida eterna pela fama gloriosa versus a sobrevivência diária mas banal de um artista menor. Pois esse poder que lhe é atribuído é também fantástico: Smith é capaz de modelar qualquer matéria com as suas próprias mãos, capaz de moldar aço, granito ou madeira com os dedos como se movesse plasticina. O último factor, nesta complexa equação da intriga, é a entrada de uma jovem mulher, Meg, que se torna a musa ou obsessão e paixão de Smith, tornando-se, a um só tempo, objecto de desvio dos afectos do protagonista, razão pela qual ele regressa à criação artística, mas também motivo de pressão e crise para a situação dramática em que se encontra. Meg, descobriremos, tem também os seus fantasmas, e Smith deseja ajudá-la a combate-los, tornando-se ambos então duas metades de um mesmo esforço.

Dizemos aparentemente, pois McCloud torna claro, ao longo do seu livro, que The Sculptor conterá um “tema”, uma espécie de crítica ao mundo da arte, ao seu cinismo face à genuinidade da criação e, acima de tudo, à pureza de espírito de David Smith, cujas resoluções não encontram forma de se expressar neste plano. A arte de Smith é sentida, vem de dentro, independentemente dos juízos de valor que possam ocorrer em seu torno. E a forma dele procurar essa expressão, mesmo com o elevado preço resultante do pacto faustiano, é a mais imperativa possível. McCloud quer ir ao osso da realidade da criação e das relações humanas.

O problema é que toda esta “realidade” é uma simulação patética, desprovida de qualquer compreensão e, provavelmente, conhecimento da realidade. Não existem mutos elementos que permitam compreender que haja de facto um reportar à realidade para além de uma rápida consulta de uma Artforum, uma conversa escutada por ocasião de uma vernissage ou coisa que o valha. É possível que McCloud, no fundo, queira metaforizar a criação da sua forma de arte preferida, a banda desenhada, através da escultura de Smith, mas a forma como este mundo é retratado – com galeristas homossexuais afectados e facciosos para com os seus amantes, mesmo sendo amicíssimos de Smith, ex-patronos que os abandonam por não “compreenderem a verdadeira arte”, críticos que falam com o ar mais blasé do mundo sobre abordagens teóricas totalmente desligadas da prática artística, clientes fúteis, e artistas de nível-do-chão arvorados como verdadeiros e genuínos – é absolutamente ridícula. McCloud cria uma caricatura de cartão abjecta da cena de Nova Iorque, digna das conversas superficiais de quem não o frequenta, mas deslocada de uma obra que pretende trazer algum nível de representatividade e “mensagem”.

Todas as personagens são superficiais, unidimensionais, inclusive o próprio protagonista, que se nos surge como um estudante incipiente e cheio de manias românticas sobre a arte. Como se as regras actuais da sua constituição, fabrico, circulação e recepção fossem as mesmas de há 100 anos, e existisse algo que correspondesse a uma “verdadeira” apreciação dela pela parte “do povo”… David Smith nunca se torna uma personagem simpática e interessante. Não acreditamos que as personagens principais tenham de ser simpáticas ou “positivas” para se criar uma narrativa interpelante. Veja-se um filme como Nightcrawler, de Dan Gilroy, cujo protagonista, desempenhado por Jake Gyllenhaal, é abjecto, apático, associal mas estranhamente carismático, e que alimenta uma tensão contínua na intriga que vive. Smith é um ensimesmado choninhas (acreditem ou não, ele é virgem, pois quer guardar-se para uma ocasião especial), que se abandona na autocomiseração e na ideia de que apenas ele compreender a verdadeira maturidade do acto criativo, em relação a todos os que o rodeiam. McCloud não ajuda a esta construção, já que o torna totalmente órfão – em duas páginas, McCloud mostra como os seus pais e irmã morreram, deixando-o sozinho (e, provavelmente, o pai terá morrido num acidente de avião, quiçá associando-se ao 11 de Setembro) -, e atravessando toda uma série de experiências que o colocam numa situação de extremos.

Meg, por exemplo, cai que nem sopa no mel naquele cliché conhecido como “manic pixie dream girl”: ela é jovem, bonita, meio tresloucada (depois, mais tarde, descobrimos que tem mesmo problemas do foro psicológico), e tem lições super-profundas (o “super” aqui deve surgir no seu sentido Floribelliano) para Smith e um repetitivo e absolutamente estúpido “carpe diem”.  Smith conheça num episódio totalmente improvável, mas que Mccloud cria para alimentar a ligação a “temas contemporâneos” (uma performance improptu para ser mostrada no Youtube). Smith conheça-a nesse contexto, num momento em que ele estava mergulhado no efeito da esfera fantasiosa do conhecimento da Morte, e assim interpreta ou “lê” os acontecimentos como sinais divinos. Mesmo depois de compreender a realidade chã, Smith continua a alimentar a esperança de que Meg é literalmente um anjo, e que o amor que ele sente é real. Aliás, a forma como Smith insiste nessa relação, ao início, fá-lo parecer um patético e até perigoso perseguidor, mas tudo é sempre entendido da melhor forma possível, pois Meg é, afinal, uma “bela alma”.

E depois temos o amigo, de longa data, galerista, Ollie, homossexual, mas que apesar disso, quando Smith demonstra grande afecto para com ele, com um abraço, tem de fazer aquela piada irónica de “não sou gay”… Ou o namorado e Ollie, outro artista aspirante, cujo trabalho tem algum sucesso comercial mas (óbvio!) não vale nada, é insípido, copia Smith num momento, e, acima de tudo, engana Ollie… Poderíamos continuar, pois todas as personagens parece cumprirem um papel predeterminado, e não uma necessidade interna de modelização do mundo real.

Aliás, uma das ideias que se nos surgiram para cumprir a leitura de The Sculptor é uma espécie de lista de “temas controversos” ou “maduros” que o autor parece ir assinalando e integrando na sua narrativa. Há um qualquer aspecto artificial na introdução dessas linhas e referências ao longo da narrativa que parece terem menos a ver com a necessidade interna do desenvolvimento psicológico e histórico das personagens, ou a moldagem dramática da intriga, do que com a necessidade de acrescentar esses ingredientes precisamente para, a posteriori, afirmar que The Sculptor aborda essas esferas. Esses temas incluem a sexualidade, a experimentação sexual, o consumo de drogas, a dependência, distúrbios mentais, a relação do mundo da arte e os meios de comunicação social, o 11 de Setembro, a interculturalidade, a perda da inocência, a morte, a solidão, o aborto, uma certa divisão entre o comercialismo desse mesmo mundo e a “criação genuína” (seja lá o que isso significar).

Também nós ocorremos no perigo de fazer uma lista já que a cada episódio há uma dimensão qualquer que nos surge como juvenil, mas não no bom sentido, de frescura, verve e urgência. Antes no de imaturidade e irresponsabilidade e até mesmo de “birra”. Os diálogos escritos por McCloud são sofríveis, e abandonam-se às mais gravosas platitudes sobre a vida, a natureza, o amor e as artes que se possam imaginar. Não é uma questão de serem inverosímeis, mas de serem patéticos na verdadeira acepção da palavra. Há uma carga tremenda de melodramatismo que rasga a estrutura que a intriga pudesse almejar. E a dimensão de fantasia – os poderes escultóricos de Smith, com que cria depois “arte” pelas ruas fora – são também utilizadas não tanto para criar uma ideia de arte mas de algo que até mesmo derrota essa pretensão. A verdade é que McCloud não é totalmente claro se a arte criada por Smith – quer aquela afecta somente ao “mundo” , visto como elitista, da arte, quer a que Smith torna “pública” – atinge algum grau de qualidade crítico. O posicionamento das personagens é variado e o veredicto da própria obra é ambivalente o suficiente para podermos imaginar ambas as hipóteses, mas ocorre-nos que, no fundo, a associação da obra de Smith é tão ténue face á prática artística escultórica ou de instalação contemporânea que nem sequer surge como uma questão. Aliás, haverá alguma bitola absoluta e universal de valorização? É Henri Moore comparável sequer a Thomas Hirschhorn, Boltanski a Cabrita Reis, Niki de Saint-Phalle a Kara Walker, Rebecca Horn a Jeff Koons? E claro que este último é visto como “modelo” de tudo o que está mal, não se compreende sequer ou sem que se avance, no livro, um só argumento que explicitasse essa posição. Tudo é apresentado como se todos estivéssemos desde logo do lado da opinião infundada do livro.

Sumariamente, a ideia que emerge de escultura e de arte em The Sculptor é uma ideia ingénua, própria de um certo classicismo fundado no século XIX e abandonado com a modernidade, não só pela crítica e teoria mas sobretudo pela própria prática. Depois de Duchamp, Beuys, Judd, Serra, Oldenburg, Nauman, Bourgeois, Kapoor, Smithson, Turrell, Christo, estaremos de facto com necessidade de ficarmos presos a ideias românticas de expressão, genuidade emocional, da psicologia individual e isolada do artista combatendo contra os “pricks” do mundo da arte? Será mesmo o conceptualismo inimigo da prática? Estas questões são tão complexas e levantam tantos pressupostos, e a forma como The Sculptor quer debatê-las é tão imatura que nem sequer se consegue compreender como aproximar umas do outro… Wolfgang Iser escreveu o seguinte: “ A arte moderna mostrou-nos como a arte não pode mais ser observada como a imagem representantiva dessas totalidades [a da noção de “verdade”, a que a arte acederia de modo superno], mas como uma das suas funções básicas é revelar e talvez mesmo reequilibrar as deficiências resultantes de sistemas dominantes” (The Act of Reading). Mccloud, a sua personagem, o seu livro, a intriga, o ambiente, imploram por uma espécie de regresso a esse estádio totalitário de uma verdade intrínseca, inamovível e eterna da arte, eliminando a contextualização e valorização do mundo contemporâneo. Mas onde de deseja atingir um grau, imaginamos, de “relevância”, tomba-se drasticamente num barato melodrama e inócuo.

Biografias reais ou ficcionadas de artistas têm sempre várias direcções para tomar. Não faltam livros, literários e de banda desenhada, e filmes sobre artistas. Todas as comparações são falhas, mas repare-se, apenas a título de exemplo, na diferença entre um tratamento feito por Mizoguchi (Cinco mulheres à volta de Utamaro) e por Im Kwon-Taek (Embriagado de mulheres e de pintura), ou algo mais extremamente afastado ainda, Minelli (Lust for life) e Jarman (Caravaggio). Todos seguindo instrumentos e posicionamentos diferentes, mas todos tirando partido não apenas das obras versadas (pela cor, composição, sexualidade, elação com os objectos, etc.) como do próprio meio empregue. The Sculptor abandona-se antes a um melodramatismo por vezes insuportável.

E mesmo no que diz respeito às ferramentas típicas da banda desenhada… McCloud tem um claro domínio, é certo, mas é como se sua preocupação teórica estivesse demasiado na dianteira, e procurasse aumentar os efeitos máximos no emprego das linhas cinéticas aqui ou em imagens metafórica ali. Há mesmo um abuso de espaços em branco que em nada ajudam a composição, e parecem antes abandonar algumas vinhetas em estruturas deselegantes. Ou pelo contrário, a ideia do que se deseja transmitir, enquanto “mensagem” é tão patente – o uso de vinhetas se texto, as divisões “brancas”, a concatenação de vinhetas sobrepostas, o uso de transições “momento-a-momento”, o abuso de onomatopeias estilizadas e “significativas” – que rompe a própria possibilidade de expressão subtil.  

Acrescentaria mais um ponto, algo desarticulado mas necessário: The Sculptor parece-nos ser precisamente uma daquelas obras a que o apodo de "pseudo-intelectual" pode ser aplicável com alguma propriedade. As mais das vezes, essa palavra é utilizada como uma espécie de defesa da parte de quem não deseja de forma alguma entabular um diálogo com aspectos mais densos, argumentativos ou mais profundos de uma realidade qualquer. Ao ofender-se aquele a quem se oferta essa palavra, está-se na verdade a fugir à questão que é compreender em que medida é que o discurso visado é ou não sólido na sua área. Mas como é possível saber-se que algo é pseudo-intelectual se não se é, em si mesmo, um intelectual? Como é que sabemos que algo não atinge um grau de rigor do pensamento, um estádio superior de poesia, uma posição crítica em relação a um assunto, se não se entrega ao mínimo exercício do pensamento, ao conhecimento da poesia, à aprendizagem desse assunto? A palavra deveria antes significar aquelas obras ou autores que procuram atingir um certo grau de profundidade em termos de compreensão de uma qualquer dimensão da vida humana, seja ela as emoções ou a arte, a política ou a ontologia, mas acabam por se emaranhar em platitudes, imagens feitas (e a estátua final de David Smith é de um tal cliché "lagrimeta" que se torna ridículo), pseudo-profundidades que as tornam quase livros de auto-ajuda, comiseração, confirmação da mesmidade, etc. Ora, é isso o que nos parece ocorrer em The Sculptor: aquilo que quereria fazer-se passar por uma profunda história interpelante da crise criadora e o papel que isso poderá ter na vida de um criador, e naqueles que o rodeiam, torna-se uma novela dramática, previsível, sofrível, bacoca e imatura nas sistemáticas "birras" que se vão espraiando ao longo das páginas.

Nota final: agradecimentos às editoras inglesa e americana, pela oferta do livro e dos ficheiros digitais, respectivamente. 

2 comentários:

  1. "quando um livro se apresenta num nível de qualidade abaixo do que nos estimula à sua discussão, é mais recompensador passá-lo em silêncio do que construir uma desmontagem negativa, até porque (...) essa negatividade, seria tombar naquele sentido mais popular, mas errado, do que passa por crítica."

    Tentador, tentador...! Acho que posso provar o contrário da primeira confirmando a segunda...

    Sim, vou ver o que se pode fazer :)

    ResponderEliminar
  2. Não sei se fui claro. Vou tentar novamente: se um livro apenas me estimula a um chorrilho de aspectos negativos, como foi o caso, sinto que o discurso que irei conseguir estabelecer vai sofrer em termos de qualidade, pois não conseguirei articular numa boa estrutura as razões de juízo de valor, e estarei cego somente pelo que penso mal-conseguido (os diálogos, o sub-desenvolvimento das personagens, o aparente desconhecimento do mundo retratado, a quantidade de ideias feitas que se esgrimam como se fossem tiradas filosóficas, etc.). É bem mais recompensador tentar argumentar porque é que uma dada obra tem qualidades que a tornam admirável, por características que diferirão de título para título. A tarefa da crítica não é elencar juízos de valor, se bem que esses sejam importantes, senão fundamentais. É criar um contexto de interpretação intersubjectivo com os leitores (duplos: da obra criticada e da crítica em si) que os convide a seguir o mesmo caminho e compreender o juízo de valor, e depois concordar ou não com ele. Sinto que, quando a negatividade é substancial, a argumentação sofre.
    O exercício contrário, como pareces desejar seguir, cairá apenas num exercício de desmontagem. Mas é uma hipótese.
    Pedro

    ResponderEliminar